Volume 1

Capítulo 10: As Flores Também Podem Dançar.

24/10 - Ciclo das Rosas I - Vila Carmim. 

A segunda coisa que reparei quando acordei foi Nystin descansando ao meu lado. O ruivo encostado no pessegueiro com os olhos fechados enquanto acariciava a bola de pelos em seu colo. Até fiz menção de me levantar, mas a fala do ruivo me impediu: 

— Me surpreendeu, garoto. Pensei que fosse dormir por uma semana. — Nystin se levantou enquanto espantava a sujeira das roupas com alguns tapinhas. Depois de colocar Quanty no chão, prosseguiu — E então, como se sente?

— Terrível, tive um pesadelo daqueles…

— Quero saber como está o corpo, garoto, não como foi a soneca. Mas já que a bela adormecida tem forças pra falar besteira, deve ter forças para voltar sozinho. — Nystin se virou e fez menção de partir, porém, me jogou algo antes de sair — Quase me esqueço, beba tudo antes de voltar.

Miserável…

E assim o ruivo partiu, me deixando a sós com o pessegueiro. Até aí tudo bem, o problema começou quando tentei me levantar, não sei se por ficar muito tempo sentado, ou se pelo enjoo, mas tudo ao meu redor parecia girar e as pernas não sabiam onde se firmarem. Não fosse a árvore, eu já estaria de cara no chão.

O tempo passou e a situação parecia não melhorar, as pernas até recuperaram um pouco da força, mas o enjoo e a tontura não iriam passar tão cedo. Então, decidi seguir as instruções do ruivo, fui me arrastando pela árvore até encontrar uma pequena garrafa com um líquido roxo dentro.

O odor à parte, o conteúdo arroxeado não poderia ser descrito de outra forma além de veneno. Engolir aquilo foi um verdadeiro desafio, cada gole era como engolir pedras, mas por pior que fosse, funcionou, não iria conseguir tirar o gosto da boca por semanas, mas funcionou. Só saí de perto da árvore quando o chão ficou do lado certo com o céu.

 

 

Fui caminhando suavemente pelo mar florido, tanto para não acabar comendo terra, quanto para aproveitar ao máximo o dia que estava lindo. Não importava o quanto eu sentisse, não me cansava da sensação da brisa perfumada batendo no rosto, além da vista deslumbrante que me cercava. O vento correndo pelos montes, levando as flores para passear, hora passando sobre o velho poço e na outra já rodeando as montanhas ao longe. As ondas formando figuras mágicas que somente as flores poderiam descrever e no meio disso tudo, estava eu, cambaleando de um lado para o outro tentando chegar o mais cedo possível na cama.

Eu não era o único aproveitando a vista, já que ao longe, avistei uma senhora de cabelos castanhos tendo um piquenique com sua filha. As risadas que ecoavam e a alegria estampada nos rostos delas me inspiraram, especialmente quando vi a menina se jogando no colo da mãe e ambas rolando colina abaixo. Com as forças recuperadas pela fofura da cena, continuei cambaleando para a vila sentindo um pequeno calor familiar no peito.

 

 ☼

 

Depois de chegar à vila, fui atropelado por uma garotinha com asas de tecido que se jogou com todas as forças em cima de mim, me abraçando firme.  

— Miguel! Você acordou, eu sabia que ia acordar, eu disse pra eles! Fiquei triste sem minha histólinha. 

— Eita, que bicho te picou, Lana? Eu só tirei um cochilo muito ruim, ainda vou contar uma história para vocês hoje — tranquilizei a pequena com tapinhas na cabeça.

— Nananina não, Miguel dormiu por um tempãaaaao, mamãe ficou pleoc, pleocup, pledocu…

— Preocupada?

— Isso, pleocupada com você! Mamãe disse que dormir três dias não faz bem. 

— TRÊS DIAS? Como assim, três dias?

— Yep, tlês dias inteirinhos. Você ficou deitado na árvore igual um pleguiçoso, os meninos até tentaram te acordar, mas nem quando pularam na sua baliga você acordou. Ai o Ferrugem bateu neles o caminho todo. Ele gritou até comigo que não fez nada! 

— Vou brigar com o Ferrugem, pode deixar. Mas antes, Nina, você pode me fazer um favor?

— Clalo!

— Dá pra sair de cima de mim um pouquinho? Acho que cai numa pedra…

— Eita!! Desculpa…

Os amiguinhos de Nina vieram depois dela, todos animadamente me cumprimentando, todos pareciam animados, exceto por Tonie que tinha a esperança de ficar com meu cachecol caso eu tivesse ido pro outro mundo, mas quando prometi arrumar um cachecol para ele, logo se animou e começou a cantar sobre ser o herói do cachecol. 

A trupe de crianças me ajudou a chegar até a taverna, mas só me deixaram entrar depois de prometer contar uma história incrível para eles pela noite.

 

 

Quem diria que a parte mais difícil do dia seria abrir uma mísera porta? Tinha certeza que estava destrancada, mas ainda assim parecia firme como rocha. Acho que era a ansiedade de não saber o que me esperava pela frente, aquele seria o primeiro de muitos outros passos para um sonho que parecia mais real e o fraco calor no peito dizia isso com todas as letras. Só abri a porta depois de sentir uma mão grossa me empurrando para dentro.

 

 

O salão estava mais escuro que o habitual, com apenas uma vela lutando contra a escuridão, iluminando apenas o ruivo que bebia calmamente no balcão. Ele olhou para trás de mim com olhos semicerrados e pediu para que fechasse a porta. Nystin caminhou com a vela até uma mesa no canto do salão e pediu com a cabeça para que eu me sentasse à sua frente.

— Eu geralmente só faria isso após um mês, mas você não tem todo esse tempo. Além do mais, quem liga para essas regras estúpidas? Não sou burro de deixar alguém explodir por descuido… — O ruivo retirou um baralho bem gasto do bolso e começou a embaralhar as cartas — Akai fez o teste de escriba com você? Aquele para incendiar o pergaminho. 

— Fez, mas não consegui nem uma mísera faísca, e olha que fiquei boa parte da viagem rabiscando.

— Não me surpreende, quando não se tem…

— Quando não se tem mão para feitiçaria dificilmente se tornará escriba. Eu sei, eu sei, Akai disse isso umas mil vezes.

— Não me corte quando estou falando, mas sim, escrever necessita de certos dotes, assim como qualquer outro tipo de conjuração. Esse brinquedinho aqui é semelhante ao teste que Akai fez, porém um pouquinho mais sofisticado, vai me mostrar que tipo de conjurador você se tornou. 

Ferrugem parou de embaralhar o carteado e foi colocando uma carta de cada vez sobre a mesa enquanto narrava: 

— Como era mesmo o encanto? Ah, sim… uma carta para a espada que governará, uma carta para a riqueza que surgirá, uma carta para a paixão que te guiará e uma carta para a semente que germinará. Faça das cartas parte de si, faça da vida um carteado, embaralhe seu destino e permita a magia escrever as linhas no livro da vida. 

No fim, quatro cartas repousavam sobre a mesa, todas com as costas ricamente ornamentadas, mesmo que gastas e marcadas. A frente das cartas era completamente branca, com apenas um pontinho de tinta preta no meio. Vendo minha estranheza, Nystin prosseguiu com sua explicação: 

— Quero que pegue uma carta por vez e deixe a energia fluir sobre elas, assim como fez na árvore. Depois disso, é só deixar a mágica acontecer. Entendeu?

— Acho que sim… 

— Primeira regra, garoto: você não “acha” nada. Ou você entendeu ou não entendeu. Agora, mais uma vez, entendeu?

— S-sim. 

— Agora, me mostre o que aprendeu.  

Peguei uma carta com as mãos trêmulas e ainda sujas de seiva e tentei repetir o que fiz com a flor, mesmo que inconsciente. Passei algum tempo tentando em vão repetir o feito, mas tudo parecia confuso, não sabia bem como fazer. Tudo que me passava pela cabeça eram aqueles últimos momentos na escuridão, as emoções conflitantes se misturando e tentando se manifestarem de uma vez. 

Tentei fazer como no sonho, juntar aqueles sentimentos conflitantes que permeavam meu peito e colocá-los para fora, mas nada parecia acontecer. 

— Moleque, você não é uma flor, não tem só energia aí dentro, tem sentimentos, medos, ansiedades. Se continuar empurrando tudo junto vai se machucar, separe antes de guiar. Entendeu?

Separar e guiar… Não deixar a ansiedade e o medo passarem… 

Me concentrei no calor que permeava meu peito desde que acordei. Era um sentimento fraco, mas constante que pulsava aos poucos. Foi difícil no começo, mas consegui ter alguma ideia do que envolvia meu coração. Não podia ver, mas podia sentir uma fina neblina quente e reconfortante que continuamente se expandia e se contraia com meus batimentos cardíacos. Tentei trazer a névoa para as mãos, mas era como tentar empurrar água com as mãos nuas. Cada avanço resultava em retrocesso e quanto mais eu falhava, mais hesitante ficava, tornando o trabalho mais e mais difícil.

— Separe e guie, garoto, quer explodir é?

Respirei fundo para me acalmar. Fui deixando a ansiedade de lado e afastando o medo de falhar. Depois disso, fui aos poucos tentando dar forma ao nevoeiro, demorei muito para conseguir formar uma pequena esfera pulsante, mas consegui. Demorei mais ainda mais para conseguir levar um feixe dela para longe do coração. A parte mais complicada foi encontrar um caminho para o calor fluir, muitas vezes, acabei em becos sem saída. Até que enfim consegui, guiei aquele filete de esperança até a ponta dos dedos e da ponta dos dedos ao papel. 

Abri os olhos quando senti meu pescoço esquentando, pude ver a pequena carta se iluminando com um cálido brilho esbranquiçado e o tecido em meu pescoço se iluminando em azul, expulsando as trevas para bem longe. Após o brilho se esvair, encontrei a figura de uma ampulheta gravada na superfície da carta. Repeti o processo nas demais cartas com um sorriso no rosto. 

No fim, quatro figuras repousavam sobre a mesa: uma ampulheta quebrada, uma estante vazia, uma pena e por fim uma velha torre de pedra. Não sabia o que significavam aquelas figuras, mas sentia certa conexão com cada uma delas. 

Nystin encarava as cartas seriamente, seus olhos tremiam um pouco e pareciam brilhar com um misto de surpresa e medo, como se tivesse visto um fantasma. 

— Isso é bom? — Soltei a pergunta que estava presa na garganta. 

O ruivo ficou encarando as cartas por algum tempo até me responder. 

É… medíocre… talvez até pior… — murmurou o ruivo após um longo gole em seu cantil.

— Senhor? Fui tão mal assim? Eu posso tentar de novo se não for problema. 

Nystin começou a gargalhar quando a última gota do cantil caiu. Era uma gargalhada seca com uma pitada de entusiasmo. 

— Hahahaha… é suficiente, garoto, é suficiente. Vamos nos divertir muito. Vou adorar ensinar um autor.

— Autor? Mas Akai disse que não tenho talento para ser escriba.

— Palavras parecidas, conjuradores diferentes. Olhe para as cartas, pirralho. A primeira carta diz duas coisas: elemento e conjuração. Se você fosse escriba, teríamos palavras e não figuras. Já as figuras, representam que elemento gosta de você, uma vela representaria fogo por exemplo.   — O ruivo correu o dedo para a segunda carta sem tirar os olhos de mim. — Essa aqui mostra quanta energia tem dentro de você e como pode ver, não é muita — passou o dedo para a próxima — Já essa aqui representa as entrelinhas dos seus feitiços, algo como sua forma de conjurar, embora seja mais simbólico do que qualquer coisa.

— E a última carta, o que quer dizer? 

— Akai gosta de dizer que é o seu futuro, já eu, só vejo uma dica do seu potencial.

O ruivo guardou com cuidado as cartas que voltaram a se esbranquiçar

— Lembre-se, nada disso é uma lei, são apenas pistas que você deu a si mesmo, não são verdades absolutas e não devem ser vistas assim. Entendeu?

— Sim, senhor.

— Bom, agora você está oficialmente entre meus dedos. Então corta essa baboseira de “senhor”, não sou tão velho assim. Quero que me chame de MAESTRO a partir de agora.  

— Com prazer, Maestro! Quando começamos?

— Com toda certeza não vai ser hoje, principalmente com você fedendo tanto, tem um banho te esperando atrás da porta. — Disse apertando o nariz com cara de desgosto. 

— É, acho que um banho seria ótimo. Com sua licença.

Antes que eu passasse pela porta, ouvi o ruivo dizer: 

— Seu treinamento começa amanhã, esteja pronto.  

 

Devo dizer que tirar seiva da pele é complicado. Esfregar parece só espalhar as manchas escuras. Mas um banho era tudo que eu precisava para me acalmar, foi tão bom que tratei de tirar um cochilo antes de contar um novo conto para as crianças.



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