Volume 1

Capítulo 11: Os Fracos Também Podem Lutar

26/10 - Ciclo das Rosas - Algum Lugar no Inferno… 

As coisas saíram um pouco do controle…

Não tem como alguém em sã consciência chamar essa tortura de treinamento! Uma noite, apenas uma noite, foi tudo o que a assombração me deu de descanso, depois disso, nem mesmo uma noite tranquila de sono! Se eu parar de correr, estou morto! Se eu fechar os olhos por alguns segundos, mortinho da silva! Um passo errado e viro presunto!

Quando ele disse que iríamos começar o treinamento, não era isso que eu estava esperando. Pensei que iríamos para o pessegueiro e ele iria me ensinar a criar feitiços e controlar magia, não que iria me jogar no meio do bosque e me caçar até a morte! Nem um pedaço de pão o desgraçado me deu, apenas as roupas do corpo, meu canivete e um tapinha nas costas. Como se não fosse o bastante,  ainda me fez deixar o cachecol em casa. Foi sorte ter trazido meu caderno para esse inferno. 

E toda essa merda só aconteceu por eu ter caído naquele papinho falso dele. 

—Antes de começarmos, duas regrinhas para nosso bom convívio: Essa vila é território proibido, você só volta aqui quando me mostrar um feitiço. Segundo, eu não vou te ajudar de forma alguma. Entendeu?

—Sim, maestro!

— Não temos tempo para te ensinar do jeito chato, então vamos liberar sua magia à moda antiga. Não se preocupe, é divertido! É só não morrer que vai ficar tudo certo… — O desgraçado começou a se alongar. — Sou um homem de princípios,  vou te dar dez segundos de vantagem. Então é melhor começar a correr. 

— Como assim? Não vou aprender o básico antes? Digo… não sei nem conjurar direito. 

— Relaxa, o básico está aí dentro de você, a gente só precisa fazer ele sair com algumas pancadas. — O ruivo me encarava com um sorriso maligno, pendurado no canto da boca. — Tudo pronto… dez… nove… oito… 

Senti mais uma vez uma pressão sobre todo o meu corpo, suor frio escorrendo pelas costas e aqueles olhos vermelhos, sedentos por sangue, me encarando. Então fiz o que qualquer homem que teme a morte faria em meu lugar: virei as costas e corri, corri e corri. Só parei quando notei que não sabia mais onde estava. 

 Quando parei para me localizar, senti algo passando rente a minha orelha. Obviamente, me virei para ver o que era e não gostei nada do que vi. Atrás de mim, havia uma árvore robusta. Presa no tronco dessa árvore, uma adaga de lâmina negra e cabo dourado. Como se quase perder uma orelha não fosse suficiente, a árvore simplesmente decidiu se incendiar… 

Eu tentei me esconder, e ele me achou todas as vezes. Dentro de troncos? Eles são inflamáveis. Buraco de toupeira? Aquelas botinas são melhores que estacas. Dentro d’água? As adagas mais parecem peixes! 

Acho que a parte mais insuportável sobre isso são os comentários do ruivo, não importa o quanto me derrube, ele sempre encontra um ponto para esfaquear. A coisa que mais ouvi nos últimos dois dias foi: “Já vai desistir? É fácil, garoto, é só voltar para casa que a dor acaba. Talvez aventureiro não seja sua praia, por que não vira padeiro?” Isso quando não são ofensas… a minha favorita até agora foi: “Corra, garoto, corra! Já vi cadeirantes correrem mais rápido que isso!”

 Só tive paz quando anoiteceu, ou foi o que pensei. O maldito parou de me perseguir, mas quem disse que a floresta parou? Quando não eram os mosquitos tentando me devorar, era o frio congelando os ossos, por isso, dei graças a Deus quando encontrei uma caverna quentinha para me esconder. 

Eu tentei ficar acordado, mas o cansaço venceu a fome e a dor. A falsa segurança do lugar e a canção de ninar que os lobos cantavam ao longe foram o bastante para me fazer apagar… 

Me arrependi amargamente dessa decisão no dia seguinte. Já que quando acordei, encontrei um bilhete preso no chão.

27/09 - Ciclo das Rosas  - Algum Lugar no  Purgatório

 A pior parte disso tudo é não conseguir usar essa maldita magia! Não importa o quanto eu tente, não sai nada! Não chego nem perto do que fiz com as cartas anteontem e estou a mil léguas de distância do que a assombração carmim consegue fazer. Não bastasse as adagas, o corno ainda consegue lançar bolas de fogo.

Sinceramente, me sinto um inútil. Não consigo me concentrar o suficiente para tentar usar magia, e desviar das investidas de Nystin tem ficado cada vez mais difícil. Não importa o quanto eu tente, é impossível. Não consigo despistar ele, não consigo contra-atacar, nem mesmo consigo me esconder e logo, logo, nem mesmo fugir vai ser uma opção… minhas pernas não aguentam mais e duvido que eu consiga manter esse ritmo patético até o Sol se pôr amanhã… 

Cada tropeço e queda só mostram o quão fraco sou… 

Ofensa preferida do dia: “Parabéns, rapaz, você é um caso raro, é impossível te subestimar!”

 

29/10 - Ciclo das Rosas - Alguma Caverna Escura

Não sei como continuo vivo. Deus me deu mais uma chance e não a jogarei  fora choramingando, dane-se a dor e o sono. Cada dia que jogo fora aqui é um dia mais longe do sonho. 

Ontem não foi de todo ruim, encontrei algumas frutas enquanto fugia. 

Não sei como fugir daquele desgraçado vai me ajudar com essa magia, mas sei que ficar parado nesse buraco também não vai ajudar em nada. Como não tenho aquele baralho estranho comigo, vou pegar algumas flores do oceano e ver o que consigo fazer com elas. 

Ofensa preferida do dia: “Hahaha, você dá uma ótima presa, até parece uma gazela correndo!”

 

30/10 - Ciclo das Rosas - Sobre uma Velha Árvore 

Esse desgraçado veio mais cedo hoje, dei sorte de estar fora da caverna. 

Queimar as flores parece mais difícil do que usar aquelas cartas, consegui fazer apenas uma brilhar ontem. A sensação é diferente de antes, essa neblina dentro de mim parece mais instável. 

Ofensa do dia: “Corra, garoto, já vi mexilhões mais graciosos que isso!” 

 

03/11 - Ciclo dos Lírios - Algum Lugar no Meio do Nada 

Ficar acordado até de madrugada trouxe alguns frutos, consegui queimar três flores antes de desmaiar ontem e espero conseguir mais algumas logo, logo. As coisas dentro de mim parecem mais calmas, agora só sinto o peito esquentar quando tento queimar as flores e quando aquela aberração da natureza começa a me perseguir. 

Nystin tem ficado cada dia mais agressivo, uma das lâminas fez um belo rasgo no meu braço. Felizmente, consegui estancar o sangramento. 

Talvez eu morra amanhã… 

Ofensa do dia: “Você tem bosta no lugar do cérebro? Mal consegue colocar uma perna na frente da outra!” 

 

06/11 - Ciclo do Lírios - Algum Lugar Encharcado 

Mais um dia vivo. 

Nem essa tempestade conseguiu parar o ruivo…

A assombração tem inovado nas formas de me torturar a cada dia. Ontem mesmo, descobri que o miserável além das adagas consegue lançar bolas de fogo mesmo com a chuva.

 Bolas de fogo, no meio da chuva! Só de pensar naquele ruído de vapor já me dá arrepios.

Estou ficando preocupado, não consigo aumentar o número de flores diárias. Não desmaio mais na quinta flor, porém queimar uma sexta parece impossível. A pior parte disso tudo é que não posso pedir ajuda ao ruivo e olha que eu tentei, mas sempre que fazia uma mísera pergunta, a resposta vinha em forma de  chamas. Por sinal, foi assim que descobri sobre as bolas de fogo.

Talvez seja sobre isso que ele quis dizer quando disse que não tenho boas reservas de energia… 

 

7/11 - Ciclo dos Lírios - Algum Lugar Insano. 

Devo estar ficando louco. Comecei a ouvir vozes quando começo a queimar as flores. Talvez seja só o vento me pregando peças, mas, se não for, espero que seja bom sinal. 

 

10/11 - Ciclo dos Lírios - Algum Lugar nos Céus.  

As coisas não andam nada bem, quase morri várias vezes hoje e tenho certeza que amanhã não vai ser diferente. O ruivo nunca sai de perto, não tenho tempo nem de pensar no próximo passo. Além disso, as bolas de fogo agora desviam das coisas! Foi uma delícia ver aquilo desviando das árvores para me acertar.  

Não fosse o bastante, agora nem dormir eu consigo, esse desgraçado tem vindo cada vez mais cedo e largado do meu pé só de madrugada. 

Além disso, as vozes começaram a aparecer enquanto fujo do ruivo. Não bastasse quase morrer todo dia, ainda estou desenvolvendo esquizofrenia… 

As coisas não podem continuar assim. Escondi algumas armadilhas no bosque, talvez assim fugir desse sociopata fique mais fácil.

 

11/11 - Ciclo dos Lírios - De Volta ao Chão.  

“No fim, Ícaro voou perto demais do Sol e teve suas asas tomadas…” 

Contra-atacar foi uma péssima ideia. Ele não só desviou de todas as investidas como não passou nem perto das armadilhas. E aqui estou eu, com o corpo roxo dos pés à cabeça e com apenas mais uma chance de fazer tudo certo.   ♡♡

 

14/11 - Ciclo dos Lírios - Algum Lugar Cantante. 

Nunca pensei que fosse precisar usar as canções de marcha do papai… tenho repetido essa oração sem parar nos últimos dias.

 

“Ó Senhor, ouça a oração do infante

Tu que disseste ao guerreiro: 

Dominai sobre toda criatura

Fazei-me forte de corpo e alma

Dai-me a graça de saber lutar com lealdade 

E vencer pela sua justiça 

 

Mas, caso a vitória eu não mereça

Aceite-me em seus braços com dignidade”

 

20/11 - Ciclo dos Lírios - Taberna do Quati Dourado

Pensei que nunca mais veria esse lugar… principalmente depois que desisti de correr de Nystin. 

Foi estupidez pensar que bolas de fogo fossem o máximo que ele poderia fazer. Depois das bolas de fogo, vieram os pássaros para me perseguir pela mata. Quando ele se cansou dos pássaros, começaram as armadilhas por todo lado.

Conforme os dias passavam, a vontade de desistir se tornava cada vez mais recorrente, mas sempre que eu pensava em parar e voltar para casa, podia ouvir aquelas vozes dentro de mim. Depois de um tempo, comecei a entender o que elas diziam. Diziam para não fraquejar, aguentar apenas mais um pouco, mais um dia, mais uma hora, mais um segundo que fosse. 

Podia ouvi-las enquanto corria daquele lunático. Nessas horas, pareciam gritar para mim: 

—Vamos! Mais um passo, corra, corra!

— Você consegue, mostre para ele, mais um passo!

— Lute! Lute! Lute!

Mostla pla ele quem é você!

Parece bobagem, mas se não fosse por elas, acho que não teria conseguido.

O sofrimento só acabou quando consegui enfim liberar minha magia e mesmo assim, ainda parece mentira. 

No meu último dia, as coisas não caminharam nada bem. Nystin estava especialmente agressivo, quase não me dava espaço para escapar, e pela trajetória dos golpes, tinha certeza de que estava indo atrás do meu coração. Fossem as lâminas ou os canários de fogo, todos miravam no meu mesmo lugar. 

A perseguição continuou por pouquíssimo tempo já que fui guiado para um paredão de pedra perto das montanhas. Eu até tentei fugir quando vi a montanha chegando mais perto, mas o desgraçado instalou armadilhas por todo lado antes mesmo de começar a me perseguir. Quando percebi, já estava encurralado com as costas contra a pedra e com o demônio em pessoa caminhando em minha direção.  Não havia rotas de fuga, estavam todas fechadas pelas chamas. 

Nystin parou de correr e começou a caminhar em minha direção. 

 

Os passos lentos ressoavam na minha cabeça e faziam o céu tremer. A temperatura começou a subir ao ponto de fumaça começar a sair do chão. Os pássaros gritavam em seus ninhos e os lobos uivavam ao longe. Cada fio de cabelo no meu corpo se arrepiou e as pernas queriam ceder. A pressão que vinha dele não era normal, era muito diferente do que senti nos outros dias, algo dentro de mim o medo lutando com o coração. Respirar já era um desafio e me manter em pé era um sufrágio. Não havia vozes lá para me apoiar, apenas eu e a morte flamejante.

Não sei por que, mas não conseguia parar de olhar para aqueles olhos vermelhos. Ironicamente, eles eram a  única coisa fria ali, me encarando como um mísero peão pronto pro abate. Eu queria desviar o olhar, mas não podia, ao menos essa batalha eu estava determinado a não perder. 

Muitos diriam que foi estupidez, até mesmo suicidio, mas eu comecei a fazer a única coisa que sei fazer nessas horas, comecei a narrar uma velha história. Se fosse para morrer, seria do meu jeito, mesmo que apenas eu pudesse ouvir aquela história. 

A história do Paladino Sol sempre foi minha favorita, e por isso achei justo ser a última que contaria antes de morrer. 

— Quando a terra ainda era coberta por trevas e caos, nasceu um ponto de esperança. 

Dei um passo.

— Finalmente criou coragem? Gosto disso!

— Seu nome era Raphael. Era o mais corajoso dos homens e o mais valente entre eles. Ele caminhava pelo vale das trevas e não temia, pois o Senhor era com ele. 

Mais um passo. 

A boca da  assombração se movia, mas eu não conseguia escutar. 

— Raphael lutou contra os mais terríveis monstros, mandou-os de volta para a escuridão onde pertenciam. Fez todo bem que pode em nome de Deus. 

Mais um passo. 

— Mesmo com tanto esforço, ainda houve uma criatura que não pode ceifar. Um ser de puro ódio e caos, um monstro dotado de inteligência e ganância.

Um passo. 

— A criatura trouxe guerra aos povos e fez incontáveis vítimas com sua língua de prata. Deixou um mar de sangue por onde passava e não pararia até devorar tudo e todos. 

Um tropeço. 

— Nosso herói não pensou duas vezes, juntou armas e armadura e correu atrás da criatura. Passou noite e dia cavalgando, procurando a morte do demônio. Até que chegou em sua cidade natal. 

 Um passo. 

— A batalha não saiu como esperado. O herói teve sua espada quebrada e armadura perfurada. Mas sabia que não podia parar, haviam vidas que deveria salvar. Sua amada estava atrás daqueles portões, e, se ele se deixasse cair, perderia algo mais importante que a própria vida. 

Fiquei cara a cara com Nystin. 

— Naquela noite chuvosa, o herói se jogou na boca da criatura. Raphael portava uma meia-espada e um coração quebrado. A criatura foi rasgada por dentro e deixou esse mundo com um último suspiro de dor. Quanto a Raphael, sua alma descansa ao lado do Senhor. 

Nystin sorriu e colocou a mão em meu ombro. 

Nesse momento, algo estranho aconteceu. Pude ouvir infinitas vozes, gritos e canções, mas nada além disso. O som do vento parou, o crepitar da chama já não existia mais, e os uivos estavam longe de serem ouvidos. 

As cores do mundo foram apagadas, restando para trás apenas preto e branco. As chamas pareciam mortas e sem movimento, nem mesmo seu calor eu pude sentir mais. Quando voltei a olhar para Nystin, pude ver duas figuras atrás dele. Uma de aparência adulta e outra pequena como criança. Ambas sorriam para o ruivo, sinto que estavam orgulhosas dele.

Infelizmente, não durou muito, já que Nystin tirou a mão bruscamente do meu ombro e se afastou alguns metros. 

De repente, tudo ganhou vida, o mundo ganhou suas cores, as chamas o calor, e vozes voltaram a se calar. O ruivo me olhava com um misto de surpresa e apreensão, parecia não saber o que dizer. 

Ficamos nos encarando por algum tempo, até que ele quebrou o silêncio: 

— Vamos para casa, tem algumas crianças sedentas por histórias te esperando, Miguel.

 



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