Volume 1
Capítulo 20: Crisântemo manchado
Depois de muito tempo sem se ver, o neto e o avô se abraçaram com emoção. Eles conversaram por um tempo, com Lucca contando um pouco sobre o que viu em sua última viagem. Mas um som terrível os interrompeu: eram uivos abafados e desesperados, que só eles podiam ouvir com seus sentidos aguçados. Os gritos vinham de uma mulher, mas não dava para saber quem era.
O homem de cabelos prateados enrugou o nariz em desgosto. Ele achava que era um caso de abuso com uma serva. Ele nunca aceitou a escravidão de Olirion, onde isso acontecia muito. Desde que sua família recebeu uma proposta para se mudar para o reino de Edhen, onde as pessoas não eram tratadas como propriedade, ele esperava que esse tipo de ato acabasse na família.
― Será que algum empregado da família está sendo castigado por um idiota? ― ele perguntou ao seu avô, que tinha sentidos mais aguçados do que ele.
― ...
Diego estranhou o rosto duro de seu ancião, que o encarava com um olhar difícil de compreender. ― O que foi?
Os gritos logo se tornaram lamentos mais baixos, que ele pôde reconhecer. O fazendo congelar por alguns instantes, seguindo uma linha de raciocínio que o assustou. Suas pupilas dilataram e seus pelos arrepiaram. Quando finalmente se moveu, uma grande pressão se apoderou do ambiente e ele desapareceu como um fantasma, deixando linhas azuis de eletricidade que estalavam no ar.
Em um alojamento de treino ao norte da mansão, três jovens na casa dos vinte anos saíam conversando. Um deles amarrava as calças com um ar satisfeito.
― Será que ele vai sacar? ― o mais novo perguntou, roendo as unhas nervosamente.
― Que se dane ele. Quem liga pra uma serva vagabunda dessas? ― Augusto sacudiu a roupa, sem dar bola pro amigo.
― Ele vai ficar na dele ou a gente conta pra todo mundo que ele leva essa piranha pro quarto dele.
― Mas ela era virgem, cara. ― O rapaz apreensivo não disfarçou a aflição.
― Hahaha, só nós sabemos disso. Eu ia pagar pra ver a cara dele quando visse ela naquele estado. ― O outro, que era o mais gordo, se meteu.
A conversa foi interrompida por um raio prateado que atravessou a calçada de pedra, deixando fios de eletricidade pelo caminho.
(…)
A luz do sol entrava pelas janelas da sala de treino, iluminando os tatames e o rosto perturbado de Diego na porta. O cheiro forte de produtos de limpeza não o incomodou. Seus olhos ágeis reconheceram Clara chorando em um canto, encolhida. Ela estava com o vestido branco em trapos e uma mancha de sangue perto dela.
As pupilas dele tremiam sem parar. Sua mente estava à beira do colapso. Ele se aproximou para tocá-la, mas ela se encolheu ainda mais, como uma tartaruga buscando proteção.
Diego recuou a mão, sem dizer nada. Seus olhos sem vida foram se enchendo de ódio, que escurecia sua mente. Quando seus olhos se focaram novamente, faíscas elétricas começaram a ressoar pelo ambiente, criando linhas azuis que cortavam o espaço à sua volta.
Antes que ele alcançasse a saída, Lucca surgiu em sua frente, encarando seus olhos prateados com amargura.
― Não vou pará-lo. Você sabe as consequências. ― disse seu avô.
O homem que parecia um ser sobrenatural, pronto para destilar seu ódio, passou por seu avô sem dizer nada.
(...)
Os três ficaram parados perto do salão de treino, assustados com o raio que surgiu. Eles se entreolhavam tensos, sem saber como reagir àquela cena absurda. Afinal, só quem dominava sua energia primordial e seu elemento no nível de um rank S podia fazer algo assim.
De repente, um trovão ecoou no céu, fazendo a terra tremer. Um raio brilhante e fulminante desceu do alto e atingiu o centro do grupo, ofuscando-os com uma explosão de luz.
Ao tocar o solo, a corrente elétrica se ramificou em fios mortais que se espalharam pelo chão. Joseph e Darius foram eletrocutados, enquanto Augusto escapava por pouco, perdendo pedaços do seu cabelo azulado.
Em meio ao caos, Diego saiu do redemoinho luminoso com uma expressão gelada, dominado por um ódio fervente que despertava o demônio dentro dele.
Sem dizer nada, ele caminhou lentamente em direção ao abusador que fugiu dos raios. O indivíduo à sua frente não conseguia disfarçar o medo. Seus olhos arregalados o encaravam como se fosse um deus.
― Eu cometi um erro ― disse a figura endeusada, enquanto encarava sem expressão a própria palma eletrificada. ― Acreditei que com a mudança de reino, poderiam melhorar, deixando de ser os aristocratas arrogantes.
Augusto recuperando um pouco do terror que o afligiu, apontou o dedo tremido, buscando uma confiança inexistente naquele momento: ― Que porra está falando? Se tocar um fio meu, nem seu avô vai poder te salvar.
Com um semblante recheado de desprezo, Diego ignorou completamente aquela falsa representação de coragem, direcionando um olhar fuzilante para os rapazes congelados pela eletricidade.
― Vocês sempre me irritaram, peças ridículas que não percebem o quão descartáveis são.
As figuras deploráveis, tinham seu corpo duro como dois postes presos ao chão, completamente travados pela energia elétrica jogada em seu corpo, babando desenfreadamente e com olhares aflitos de dor.
Foi quando uma enorme nuvem se formou acima da cabeça dos quatro, escurecendo o céu antes brilhantes, agora tomado por uma tempestade pesada, carregada de raios.
― Você sabe o que é isso, certo? ― disse Diego voltando sua atenção ao jovem de cabelos azuis.
Augusto estava petrificado no lugar, vidrado no céu tempestuoso, pois sabia o quão monstruoso alguém deveria ser, para causar tal mudança ambiental.
Com um estrondo ensurdecedor, raios furiosos rasgavam o céu e se chocavam contra o solo, liberando uma força devastadora que abalava a terra e abria crateras profundas e largas. Onde os raios tocavam, surgiam fulguritos, delicados tubos de vidro que brilhavam como cristais entre as cinzas.
Tentáculos elétricos permeavam o solo seco como fios agarrados aos dois seres agoniados, enquanto pareciam raízes grossas de uma árvore ancestral, causando uma dor torturante a aquelas almas.
A figura central daquela cena apocalíptica, mantinha sua face fria perante os eventos cataclísmicos, mesmo quando raios desciam em seu corpo, o tornando uma figura gradualmente mítica.
― Não tenho tempo para sua covardia, verme que só faz peso na terra. ― Afirmou contraindo a face, denotando o nojo que sentia daquele ser pútrido.
Desenhando com os dedos no ar, um martelo composto por raios, apareceu no horizonte, apontando para a figura aterrorizada no solo, que parecia uma formiga diante daquele colosso desenhado no céu.
― Se não quiser morrer pelo martelo de Thor, junto deles ― disse Diego apontando para as figuras deploráveis em meio as cargas elétricas. ― Escolha entre você ou eles.
― O que?
Sem responder, a figura prateada levantou sua mão direita aos céus, convocando um raio que caiu em sua mão direita, se materializando em um machado rústico com aspecto de ser mais antigo que os homens. Jogou próximo ao abusador, e ordenou com um tom seco.
― Use em si, ou neles.
Augusto pegou o machado no chão de boca aberta, abismado com a possibilidade de ser o rompe-tormentas, a arma lendária da família.
Não fazia sentido em sua concepção, tal item estar em posse do seu algoz, mas cá estava essa dádiva.
― Você quer que eu vos mate?
Os olhos prateados de Diego, cintilavam com a energia do campo elétrico que os circundava, fitavam com um ódio palpável. Essa expressão silenciosa era uma declaração firme de sua resolução em manter-se calado.
Diante do silêncio obstinado de seu algoz, o jovem de cabelos azuis se viu diante de uma escolha terrível: sua própria vida ou a dos seus companheiros. A decisão pesava em seu coração, um fardo inesperado que ele nunca imaginou ter de carregar.
Contudo, uma resolução firme começou a clarear sua mente atormentada. Ele avançou, os olhos antes azuis agora tingidos por uma sombra, enquanto se aproximava da antiga arma posicionada à sua frente. Cada passo refletia a transição interna de hesitação para uma determinação inabalável.
― Se eu os matar, você vai me deixar viver? ― Sua voz vacilante oscilando entre a esperança e o temor.
― Irei encerrar o julgamento de Thor ― respondeu Diego com pouco emoção, enquanto apontava para o martelo gigante no céu, pronto para desferia sua sentença final.
Augusto, segurando o machado em suas mãos, sentiu mais do que o peso físico do metal. Uma energia intensa e avassaladora fluía para a arma, como uma correnteza impetuosa, drenando suas forças e deixando-o quase exausto.
Seus olhos, outrora de um azul vibrante e cheio de vida, agora eram espelhos de sua alma abalada, refletindo a imagem de um homem atormentado, cujo corpo não conseguia conter o tremor de medo.
Com um desespero angustiante, Augusto arrastou o machado em direção aos seus amigos, agora figuras atrofiadas e indefesas no chão. Cada passo que dava parecia consumir o último resquício de sua humanidade, enquanto ele se aproximava da decisão fatídica. Sua mão tremia, agarrando o cabo da arma com uma força contraditória.
Com um movimento abrupto e uma determinação trágica, ele desferiu um golpe devastador no peito do amigo mais jovem, que jazia imóvel e silencioso diante dele.
As lágrimas que deveriam expressar o horror e a dor da traição eram tragadas pelo calor da eletricidade, secando antes mesmo de poderem marcar sua jornada pela face. Era como se a própria natureza se recusasse a testemunhar tal ato de desolação.
O machado, inicialmente cravado no peito de seu amigo, não foi suficiente para lhe tirar a vida. No entanto, o que se seguiu foi um ataque frenético e implacável.
Augusto, consumido por uma mistura de desespero e determinação, desferiu uma sequência de golpes brutais, cada um mais violento que o anterior. Ele agia como um lenhador em uma missão sombria, cada golpe descendo com força devastadora cortando a carne.
Com uma ferocidade implacável, o machado desceu repetidamente, cortando o tecido da vida e da amizade. O som dos golpes era ensurdecedor, um eco macabro da destruição em curso. Finalmente, com um golpe final e decisivo, o corpo do jovem foi dividido em dois, uma cena grotesca que selou o destino de ambos.
O desespero que antes permeava o corpo mutilado deu lugar a um silêncio mortal, um testemunho mudo do ato terrível que acabara de acontecer.
Logo o gordinho teve o mesmo destino. Parado ali, com o machado ainda em mãos, olhava para a carnificina que causara. Seu rosto, agora marcado por salpicos de sangue, refletia uma expressão de horror e incredulidade.
Ele havia cruzado um limite do qual não havia retorno, transformando-se em algo irreconhecível, mesmo para si mesmo.
Augusto, com os olhos agora nublados pela barbárie que acabara de cometer, sentiu uma náusea avassaladora subir pela sua garganta. O cheiro metálico do sangue misturado com a eletricidade no ar formava uma atmosfera quase insuportável. Soltando o machado ensanguentado, ele caiu de joelhos, vomitando até soltar tudo que tinha no estomago, limpando a boca falou.
― Eu fiz o que mandou.
Diego, com uma expressão inabalável e uma calma quase sobrenatural, observava a cena desdobrando-se diante de seus olhos.
Com um movimento discreto, porém repleto de autoridade, ele estendeu a mão, seus dedos traçando um arco sutil no ar.
Esse gesto simples, mas carregado de poder, sinalizou o fim do espetáculo celeste, fazendo com que o imenso martelo de raios no céu se dissipasse lentamente. Era como se as próprias forças da natureza obedecessem a um comando silencioso, mas imperioso de sua vontade.
Com a dissipação do martelo nos céus, a tempestade elétrica que consumira o ambiente começou a diminuir gradativamente, mas a tensão ainda era palpável.
― Você fez sua escolha ― disse Diego, sua voz era fria, mas carregava uma sombra de lamento. ― Mas lembre-se, as consequências de tais atos são eternas e irrevogáveis. Em um momento de decisão, se aproximou, com os raios ainda estalando ao seu redor, e pegou o machado.
Augusto, com os olhos vazios e perdidos, mal conseguia processar as palavras. Elas soavam como um eco distante em sua mente turva.
O olhar do rapaz ensanguentado, agora misturado com medo e antecipação, seguiu cada movimento de seu algoz.
Com uma expressão implacável, Diego levantou o machado e, num golpe rápido e preciso, atingiu a virilha de Augusto, separando seu membro lascivo do corpo, que soltou um grito agudo de dor e choque.
Ahhhhh!
O sangue começou a jorrar, manchando o chão de pedra. A dor era insuportável, e ele caiu para trás, segurando o local do ferimento.
Enquanto isso, seu agressor permanecia imóvel, a expressão ainda inalterada: ― Suas ações têm consequências, Augusto. Você escolheu este caminho.
Enquanto o rapaz jazia no chão, contorcendo-se em agonia, o ambiente em torno dos dois começou a mudar. Uma leve brisa surgiu, carregando consigo um murmúrio suave, quase como um canto distante.
De repente, um grupo de anciãos apareceu, como se emergissem de uma neblina que os escondia no ambiente ainda carregado pela tempestade elétrica. Eles se moviam com uma graça e serenidade que contrastavam fortemente com a violência que acabara de ocorrer.
À frente do grupo, havia uma mulher de aparência venerável, com cabelos azuis celeste que caíam em ondas sobre seus ombros. Seu rosto, sem marcas do tempo, irradiava sabedoria e autoridade. Seus olhos, de um azul profundo, fixaram-se em Diego com um sorriso no canto dos lábios. Enquanto arrastava com facilidade um Lucca cheio de cortes pelo corpo.
No momento em que Augusto, sangrando e em agonia, olhou para a mulher de cabelos azuis celeste, um lampejo de reconhecimento cruzou seu rosto contorcido pela dor. Com uma voz fraca, ele murmurou: ― Mãe... por quê?
A mulher, Luiza, olhou para ele com um sorriso debochado e respondeu: ― Ah, meu querido Augusto, sempre tão ingênuo. Você serviu ao seu propósito. ― Ela então se virou para a direção da sala de treino e gritou ― Clara, você terminou de limpar aquele lugar? Precisamos manter as aparências, não é mesmo?
Diego, observando a cena, sentiu uma onda de raiva e desgosto inundar seu ser. Aquela mulher finalmente mostrou não ter resquícios de escrúpulo.
No entanto, antes que ele pudesse agir, Luiza se aproximou de Lucca, ainda ferido, e colocou uma lâmina afiada contra seu pescoço. ― Acalme-se, Diego. Seu avô é muito precioso para nós. Seria uma pena se algo acontecesse com ele.
Mantendo o refém, dirigiu-se ao detentor do rompe-tormentas com um tom frio e calculista. ― Recebi notícias de Elion. O torneio dos reinos começou os preparativos, e você é a chave para a nossa ascensão. Enviei uma carta explicando tudo. Você aceitará a missão?
Com o olhar fixo em seu avô ferido, e a mulher que lhe parecia mais uma cobra peçonhenta, percebeu que não tinha escolha. Ele assentiu lentamente, com relutância.
― Eu aceito...