Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

Revisão: Hide


Volume 2

Capítulo 5: Ela amadureceu rápido...

Tá todo mundo ferido aqui, Merlin!

Era distante. Em meio a tantas coisas, tantas sensações e sons, aquela voz se destacava nos ouvidos dele. 

O sangue escorria pelo seu pescoço e peito, encharcando toda a sua roupa em um vermelho fúnebre. A poeira e a terra sujavam as feridas espalhadas ao redor do seu corpo e os seus músculos pareciam querer saltar da pele pela fadiga.

Use de uma vez!

Aquela voz se destacou mais uma vez. Parecia mais nítida e impaciente. Em meio a um cenário borrado pela poeira, ele procurava de onde ela vinha. 

Se continuar assim, talvez possamos retornar sem a necessidade dos reforços! 

O mesmo de antes aconteceu. Estava ainda mais perceptível, parecia estar imediatamente atrás dele. Quando olhou, viu algumas silhuetas conhecidas. Pareciam exaustas, ainda mais do que ele, com feições desesperadas e cheias de pressa. 

Não conseguiu evitar um sorriso leve ao ver uma delas. Seus pés pareciam pesar diversas vezes mais, enquanto caminhava em direção àquela silhueta. Já conseguia diferenciá-las e seu sorriso só se alargava conforme se aproximava.

Está quase acabando Merlin...

Pensou.

Seu pé afundou na terra e ele desviou o olhar por um momento para que pudesse continuar. Quando voltou na direção da silhueta, a poeira do campo de batalha era de um carmesim denso, difícil de se ver por entre. Tentou ajustar a visão ao desconforto que sentia, enquanto tentava, um passo de cada vez, caminhar em direção a silhueta. 

A poeira baixou e o sorriso crescia mais uma vez em seu rosto ao conseguir vê-la, mas então, seus pés pararam e sua força pareceu cessar até para manter-se de pé.

A silhueta que observava com tanto afinco e carinho, estava tombada no chão e não entregava sinais de que se levantaria logo. 

Merlin!

Ele tentou gritar na direção da silhueta, mas tudo ao seu redor se escureceu antes que conseguisse. 

Abrindo lentamente os olhos, tudo pareceu estar cinza naquele momento. As fissuras do teto pareciam gigantescas crateras intransponíveis. A poeira da mesinha ao seu lado parecia ser muito mais antiga do que realmente era. A leve dor nas costas de um homem que acabara de dormir no sofá, parecia um golpe dado diretamente na alma. 

Se levantou com dificuldade do seu sofá velho e olhou ao redor da sua sala, que a algum tempo não passava por uma limpeza decente, com certo temor. Ficou ali, sentado, por alguns minutos. Não soube ao certo quantos, tudo parecia mais lento ali. 

Foi então que ouviu o reconhecível grasnado de um velho conhecido. O olhando de um suporte de madeira próximo à janela um corvo de asas dúplices o observava, aparentemente intrigado. 

“Não se preocupe, Plumo… Isso já virou rotina, não me abala tanto…” Comentou, levantando com dificuldade do sofá. “Se bem que estou falando com um corvo, não é?” Coçou a cabeça quando disse isso. 

Saiu a passos lentos da sala. Sentindo-se ainda cansado, esticou e espreguiçou o corpo inteiro, enquanto se aproximava das escadas para o segundo andar.

“Lira! Venha tomar seu café!” Chamou, enquanto olhava para o teto do segundo andar. 

Recebeu como resposta o silêncio soturno dali de cima. Se ali no primeiro piso, tudo parecia cinza e frio, cada degrau lá para cima parecia um poço congelado, cada vez mais fundo e largo. Apertou com força o corrimão das escadas. 

Sua boca se abriu, no que pareceu uma tentativa de chamar alguém, mas chamar a quem? A mão que antes se prendia com força ao corrimão, se soltou mole e impotente. 

Pouco depois disso, caminhou até a cozinha mais uma vez a passos lentos, enquanto a madeira a seus pés rangia com certa facilidade. Se moveu no que parecia ser uma rotina. As facas eram confortáveis em suas mãos, quase como se fosse natural carregá-las. Como se sempre tivesse feito isso.

Diversas eram as razões para tal, e todas o faziam apertar o cabo delas com mais força e fechar o próprio rosto numa carranca de insatisfação.

A comida era fria e mórbida em sua boca, por mais que tivesse acabado de aquecê-la e prepará-la. O café era mais amargo que o de costume, ainda que tivesse posto algumas colheres de açúcar. 

A cozinha, abundante na cor marrom-clara pela madeira de pinho, nunca pareceu tão cinza e monótona. 

“Tenho que dar uma saída!” Disse para a brisa fatigante daquela casa, enquanto forçava uma expressão de indiferença. 

Ainda não havia terminado o café amargo, quando começou a ir em direção à porta da frente. Foi no meio do caminho para a maçaneta, que ele sentiu um repentino peso sobre seu ombro. 

Quando olhou para ele, viu as pequenas garras e patas de Plumo. O corvo olhava quase que de maneira inquisitiva. Não conseguiu evitar abrir um sorriso de canto. 

“Certo, te levo comigo dessa vez.” 

Ouviu-se um rangido leve da porta, enquanto uma brisa morna já lhe invadia o meio dos cabelos grisalhos. 

O lado de fora da casa parecia um mundo completamente diferente. As cores, todas mais vivas e quentes. Até mesmo o ar parecia mais fácil de se inalar ali. Olhou ao redor, vendo as ferramentas fora do lugar e os animais já soltos de seus currais. 

“Lira já cuidou deles, pelo visto.” Deu um suspiro, enquanto colocava as mãos na cintura. 

Essa menina já não está deixando mais nada para esse velho fazer. Pensou. 

Caminhou até o pequeno galpão próximo a casa, ainda com Plumo em seu ombro. A porta de madeira envelhecida abriu em um rangido alto, e ele olhou cansado para os equipamentos ali dentro. 

Levou algum tempo para encontrar as coisas que precisava. Aparentemente, Lira havia passado por ali e ainda não havia aprendido a ser organizada. Quando finalmente conseguiu encontrar o que procurava, rédeas, arreios e o colar, foi até o estábulo dos laraltos.  

Não foi exatamente fácil colocar aquelas coisas neles. Sentia um cansaço que ia além dos músculos e os laraltos mais jovens não pareciam querer lhe facilitar o trabalho. 

Vinte minutos depois, estava com as rédeas e os arreios presos a eles, a carroça já estava praticamente pronta e o suor lhe escorria as costas como uma cascata. Não conseguiu evitar a sensação nostálgica que era aquilo. Contorcia o rosto cada vez que tentava ignorar aquelas memórias. 

Foi só quando  Plumo posou mais uma vez em seu ombro, fincando suas pequenas garras, que sua mente se distraiu daqueles pensamentos. Olhou para o corvo de asas dúplices e ele o olhou de volta. 

“Vamos então?” Perguntou com um meio sorriso. 

Pouco depois, pode ser ouvido um estalo alto junto dos pesados cascos dos laraltos sobre a terra. As árvores lhe pareceram velhas amigas o vendo partir mais uma vez.

Em dado momento, Plumo se cansou de ficar ali parado, aos ombros do carroceiro. Abriu suas asas e voou para a imensidão azul acima deles. A vista se abriu para o imenso campo além da floresta em que a fazenda ficava.

Foi então que Philip ficou verdadeiramente sozinho. 

Não haviam árvores ao seu redor para vê-lo partir. 

Não tinha uma pequena menina de voz irritante o perguntando quando treinariam tiro ao alvo mais uma vez. 

Não estava ali a mulher que sempre lhe lembrava o que tinha de comprar no centro da cidade. E muito menos tinha um corvo para lhe servir de companhia. 

Estava sozinho… Completamente. 

Tentou segurar as lágrimas do próprio rosto, mas elas foram mais fortes que ele. 

"Tá tudo bem aí, Philip?" Ouviu de repente, à sua direita.

Ainda sentia o rosto quente das lágrimas, quando olhou para o lado. 

Um homem acompanhava a carroça. Encapuzado e vestindo roupas longas, Philip mal conseguia ver seu rosto ou pele. 

"Sim…" Respondeu sem tirar os olhos da figura estranha. "Apenas me lembrei de algo." 

"Deve ser um algo bem triste, não é…" O encapuzado respondeu.

Um momento de silêncio ficou entre os dois. Philip secou as lágrimas do rosto com certa dificuldade pelo movimento da carroça, e a figura ainda não havia saído de perto dali.

Tentou manejar sua atenção entre a estrada e o homem ao lado. Algo nele fazia os instintos de Philip aguçarem. Instintos esses que ele não usava, ou sentia, a muito tempo.

Os laraltos estavam anormalmente quietos, por mais que tivesse um estranho praticamente os acompanhando lado a lado. Mas se fosse somente por isso, Philip poderia até achar que estava desconfiado por nada.

O problema foi o cheiro. 

Em um breve momento, uma brisa forte veio do leste. Forte o bastante para fazer as roupas do homem encapuzado erguerem-se por um momento. 

Antes, a brisa carregada do cheiro da primavera, calma e serena, foi impregnada por um odor nostálgico para Philip. Não se lembrava exatamente do quando havia sentido ele pela primeira vez, mas se lembrava do onde. 

Olhou para o homem à direita da carroça, e em meio a um silêncio desconfortável e soturno, ele se lembrou do campo de batalha e das enfermidades que o assolaram por tantos anos. Se lembrou do cheiro de sangue e morte.

"E você de onde é?" Perguntou, tentando evitar que seus dentes trincassem de ódio. "Nunca vi alguém como o senhor pelas bandas." 

“Bem, não sou da região. Tenho apenas viajado nos últimos tempos. Um vagante alguns vem me chamando.” Ele respondeu, olhando para frente. 

“Então como sabe que eu me chamo Phillp?" Forçou seu tom para algo mais grave e, com um olhar nefasto e ameaçador, olhou para o homem encapuzado. 

Um silêncio ansioso surgiu entre eles dois. O encapuzado ainda olhava para frente, enquanto Philip mantinha sua atenção nele. Uma tensão estranha surgiu e se tornou cada vez mais densa conforme o tempo passava. 

Quando ela já era quase palpável, Philip já preparava as rédeas para uma corrida. Foi então que o encapuzado falou mais uma vez. 

“O senhor é bem popular pelas bandas…” Ele comentou, ainda olhando para frente. “Ouvi sobre o senhor algumas cidades atrás. Um ex-militar, que agora cria e vende laraltos. Que reviravolta na vida, não?” 

"É…" Respondeu, ainda desconfiado. "Bela reviravolta."

"Bem, a conversa e o clima está bom…" O homem encapuzado começou a dizer já se distanciando da carroça. "Mas tenho coisas a fazer na cidade ao leste, até outro dia Philip!"

O encapuzado então partiu, abanando as mãos na direção de Philip ainda sem mostrar seu rosto.

Mesmo após a figura ter sumido no horizonte, Philip ainda mantinha seu olhar sobre ela. 

"Não existem cidades ao leste daqui…" Comentou, quando ouviu um bater de asas à sua direita. Plumo o olhava da mesma maneira inquisitiva que de manhã. "Vamos ter que tomar cuidado, não é?" 

Ainda olhando na direção em que a figura misteriosa partiu, ele bateu as rédeas mais uma vez e sentiu os laraltos acelerarem, mais apressados que o costume. Foi então que Philip viu a enorme torre da igreja se erguer na distância.

A cidade estava com seu comum movimento. Mercadores iam e vinham trazendo seus produtos, fossem eles armas, comidas, tecidos, ou pessoas. 

O comércio de escravos parecia ter crescido nos últimos meses. Philip teorizava que lutas próximas às fronteiras renderam novos produtos para circular. Revirou os olhos com aquele pensamento, enquanto um gosto amargo de vergonha aparecia em sua garganta. 

Bateu as rédeas mais uma vez, enquanto os sons altos dos mercadores começavam a se distanciar. O número de pessoas nas ruas começou a diminuir também, e as casas a aumentar. 

Cada vez mais, Philip via a enorme torre da igreja se tornando mais próxima. Olhava para os vitrais com certa nostalgia, se lembrando de quando havia sido refém de um papilio há pouco tempo. 

Pouco tempo… Já fazem três anos. Pensou, olhando para as rugas nas próprias mãos. As rédeas ganharam um peso estranho quando as segurou mais uma vez. 

Só naquele momento, Philip percebeu que Plumo não estava ali. Procurou pelo corvo olhando para o céu azul e sem nuvens acima dele, enquanto se distanciava da igreja da cidade. 

Voltou a olhar para frente, e seus olhos repousaram numa figura negra como carvão, pousada sobre um pedaço de ferro. A carroça se aproximou de Plumo e então Philip viu a vitrine da loja em que o corvo descansava. 

Ali, em um velho pedaço opaco e desbotado de latão, estavam os dizeres Bijuterias e outras coisas. 

“Me leu como um livro, não é?” Perguntou, olhando na direção do corvo que levantou voo mais uma vez e pousou no ombro de Philip. Com um empurrão leve a porta de madeira se abriu e o pequeno sino de latão tocou. 

Ali, dentro da loja, a poeira se espalhava como um tapete de luxo e os itens luxuosos estavam expostos em vitrines levemente rachadas nos cantos. De trás do balcão era possível ouvir o tilintar velho de metal contra metal. Philip se aproximou a passos lentos de lá e em um sobressalto, um senhor de idade apareceu de trás dele, com alguns pedaços de metal presos a sua roupa. 

O rosto sem cabelos e sobrancelhas daquele homem à sua frente foi uma visão estranhamente agradável para Philip. 

“Bom dia, Maleke.” Disse, sentindo Plumo voando para longe dali e pousando em uma estante alta. 

“Com esse corvo de novo, Philip?” Maleke disso com uma voz fraca e esganiçada, enquanto tirava os pedaços de ferro preso ao corpo. “E quanto a Lira? Não a vejo há tempos.” 

“Deve ter ido treinar na colina de novo, mas sumiu sem nem deixar um recado.” 

“Ela ganhou isso de você…” riu brevemente quando disse isso. “Mas a que devo a honra da visita?”

“Vim ver se já completou aquele projeto, que encomendei com você.” Disse, virando na direção de Plumo.

“Sim, eu terminei.” Virou-se em direção a porta atrás do balcão, enquanto dizia isso. “Mas podia ter ligado, sabe disso não é?” 

“Tinha outras coisas para resolver na cidade.” Comentou, enquanto mostrava o antebraço para o corvo. O pássaro bateu os dois pares de asas e voou até lá, abaixando a cabeça e recebendo carinho das mãos ásperas de Philip.

“Devo dizer, é um dos meus melhores trabalhos.” Maleke comentou, colocando um caixote largo de madeira sobre o balcão. “Ela vai adorar.” 

Philip olhou para o caixote e se aproximou do balcão, enquanto Plumo pulou em seu ombro. Abriu o tampão para ver um produto que o fez abrir um sorriso. 

“É perfeito.” Comentou, o tirando do balcão e colocando-o debaixo do braço. “Diga para a sua senhora que mandei melhoras.” Já se afastava do balcão, quando: 

“Andam dizendo que a Lira matou um demônio. Mande meus parabéns para ela.” Maleke falou a suas costas. Philip, no entanto, estancou enquanto saia. 

Suas mãos estavam prestes a tocar a maçaneta e vendo do balcão, Maleke enxergava facilmente os ombros de Philip tensionando. Uma aura estranha e opressora começou a emanar dele.

"Sim…" Começou a dizer, com a voz estranhamente rouca. "Vou dizer a ela."

Saiu do estabelecimento, enquanto batia com força a porta de madeira.



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