Volume 2
Capítulo 6: Entra em um bar, um asa e um meio-demonio
“Que cada gota de álcool que entrar no meu corpo, se transforme em bênçãos luxuosas para os demônios e humanos no campo de batalha!” Ilja gritou com um copo de vidro na mão e recebendo os olhares de todos no bar. Olhares de indignação com o brinde daquele Demonkin sem chifres. “Um brinde a isso!”
Bateu seu copo contra o de seus amigos, que também tinham olhares estranhos ao discurso de Ilja, mas era uma estranheza familiar. Uma sensação cômica, misturada ao susto de se ouvir uma coisa daquelas. Ele se sentou enquanto virava parte de sua bebida, uma cerveja barata de gosto questionável. Combina com este Porto Vincent havia comentado antes de partirem na missão, um sabor misturado de poucas coisas boas e muitas ruins.
"Que ideia de brinde foi essa?" Kaesar perguntou, secando as lágrimas que tinha por tanto rir.
"Apenas o brinde mais sincero de minha parte."
"Vai arranjar problema para a gente de novo desse jeito." Vincent advertiu. Dos 4 que estavam na mesa, ele havia sido o único que não riu do discurso de seu amigo. Apenas olhou envergonhado para ele - como se não o conhecesse - e evitava os olhares que os outros homens, humanos e demônios, no bar davam ao grupo.
"Que venham, um homem que briga por causa de um brinde é um tremendo infeliz. Principalmente um brinde ao álcool que bebo. Tão sagrado quanto as asas de Arnok, se me permitir." E deu uma risada longa logo depois, olhando para o homem no canto mais distante da mesa. O homem a quem dirigiu aquele comentário.
Arnok parecia não ter ouvido ele, e se ouviu, não se importou. Olhava não para os amigos ou para sua bebida, - servida numa taça de vidro fosco, algo melhor que a cerveja barata que os outros na mesa bebiam, pega não por opção, mas obrigação - e sim para o bar. Via de relance os olhares que recebia. Homens e mulheres, humanos e demônios, o encaravam com diferentes intenções. Carrancas de ameaças, ombros afundados como se temessem pela própria vida.
“Não acho que seja muito educado comparar essa cervejinha tua com as asas de alguém.” Vincent falou, irritado, seu olhar indo entre Ilja e Arnok, mas nenhum dos dois parecia ver problema naquilo. Enquanto o Demonkin bebia o restante de sua cerveja com um estranho sorriso de satisfação no rosto, apesar do conteúdo de gosto questionável, o asa negra parecia sequer estar no mesmo ambiente que eles.
Fitava a porta dupla e de madeira velha daquele bar. O sino de latão enferrujado acima dela batendo e um casal adentrando o recinto enquanto conversavam, ambos humanos. Pareceram distraídos, até mesmo felizes, até o instante em que a mulher olhou na direção de Arnok. Seu semblante se tornou puro terror, como o de um rebanho que se depara com um lobo faminto. Em desespero, ela saiu do recinto com seu amante vindo logo depois.
“Kaesar, que horas a caravana vem mesmo?” Arnok perguntou, quebrando o silêncio que o rodeava já fazia algum tempo, seu tom cheio de pressa e impaciência.
“Quando o último navio partir do porto. O que deve ser quase a noite."
"Isso ainda vai levar muito…" disse sem perceber, todos na mesa agora notando a sua pressa.
Todos exceto um.
"Mais tempo para bebermos." Ilja comentou rindo, virando o copo vazio de cerveja na sua mão, com a singela esperança de ter sobrado algo. Depois disso, chamou uma servente que passava ali por perto, uma mulher humana de decote farto e beleza amena. Mas ela não o atendeu, ainda que fosse óbvio que tivesse ouvido ele. "O serviço aqui é pior do que eu me lembrava."
"É que eles não querem atender essa sua cara feia." Vincent ironizou com um meio sorriso.
"Olha quem fala…" Retrucou, apesar de não parecer ter se importado realmente com a zombaria do amigo. Olhava ao redor, procurando alguém para encher seu copo. "Não tem ninguém pra encher uma caneca vazia aqui!?" Gritou ao ver que não se aproximavam, sua voz soando como um estrondo em meio às conversas alheias. Ao som de sua voz, todas as cabeças do bar se viraram na direção do grupo, fossem elas humanas ou demoníacas. Ilja não pareceu se importar, mas dois de seus amigos sim.
Vincent parecia ainda mais envergonhado que quando aconteceu o brinde. Tentava esconder o rosto usando parte de sua juba branca, falhava pelo fato de nunca deixá-la crescer demais. Kaesar ria da situação dele e logo mais, os dois trocavam faíscas com o olhar. Ilja ria da sua situação toda vendo aquilo. O bar parecia desconfortável com a barulheira deles presenciando aquilo, e Arnok finalmente cruzara os braços.
Seu pé batia com força no chão, enquanto podia sentir os olhares quentes em sua nuca. Sua bebida parecia amarga, pior que a cerveja de Ilja. O assento da cadeira desconfortável como se sentasse em pregos.
"Vou embora daqui." Disse por fim, empurrando a cadeira com força ao se levantar e já caminhando para longe da mesa e atravessando os grupos de clientes que estavam de pé. Kaesar e os outros o olharam confusos, enquanto o restante do bar estavam surpresos e tentando descobrir se aquilo era uma coisa boa, ou ruim.
"Qual é Arnok, como assim?" Ilja começou a se levantar, empurrando a cadeira da mesma maneira que seu amigo. Mas ela não tinha o caminho livre. Sentiu um baque por através da madeira velha e mal cuidada e olhou para trás para entender o que aconteceu.
O encosto da cadeira - em sua parte mais alta - batera contra a virilha de um homem. Seu rosto, cheio de uma barba desgrenhada, suja de álcool e farelo de comida, se contorceu de dor. Todo o salão do bar ficava tensamente em silêncio, enquanto as mãos do homem iam lentamente até onde doía mais e um grupo de outros três homens se levantavam de uma mesa próxima, todos com um olhar de fúria.
"Malpura miserável!" O que estava à frente do grupo gritou.
Nota do escritor: Malpura em esperanto (antiga língua dos demônios) pode significar sujo, ou impuro.
"Do que você me chamou?!"
"Lá vamos nós de novo…" Vincent disse suspirando e olhando para Ilja. O Demonkin sem chifres encarava o homem que o insultou, enquanto suas mãos abriam lentamente.
"O que? Além de te faltarem os chifres, é surdo também?!" O homem se aproximou, sua estatura era muito maior que a de Ilja. Mas o Demonkin não pareceu se abalar. Mantinha a mesma posição, agora movendo os dedos como se desenhasse linhas retas desconexas. "Vai pagar pelo que fez ao meu amigo, malpur…"
Sua boca se calou antes que sua frase terminasse, o som alto de seus dentes mordendo a própria língua seguidos de seu agonizante grito de terror e surpresa. Todo o bar olhou assustado para aquela cena. Um pilar de terra, fino como um copo de vidro, saltou do chão de madeira, com sua ponta lisa e redonda acertando com toda força o queixo do homem. Ilja abriu um largo sorriso enquanto via a surpresa no rosto dos outros atrás do homem de meia-língua.
"Alguém mais?" Gritou, abrindo os braços e chamando-os. Os outros dois retribuíram sua pose brincalhona com punhos fechados e olhares afiados. Se aproximavam lentamente, prontos para qualquer coisa, quando ouviram um grito raivoso.
"Já chega!" Estas breves palavras carregadas de insatisfação e raiva vinham de um homem na parte mais distante do bar, de trás de uma bancada longa de madeira lisa e polida, talvez a parte mais bem cuidada de todo aquele lugar. Era o dono daquele lugar. Um sujeito enrugado até a ponta dos dedos e com o mínimo de cabelo possível. "Vocês da mesa com o asa negra, pra fora. AGORA!"
Ilja olhava para ele com a incredulidade estampada no rosto, mas nada podia fazer. Apertou os punhos, enquanto aos poucos seu rosto se fechava em insatisfação. Começou a se afastar dali, com Kaesar e Vincent vindo logo atrás. Caminharam de cabeça baixa, os três, atravessando os clientes que estavam em seu caminho até a porta, a grande maioria o encarando com certa alegria.
Parado ao lado da saída, estava Arnok. Encostado de costas na parede, enquanto mantinha as mãos nos bolsos de seu sobretudo. Seus amigos se aproximaram e já pegavam na maçaneta para sair, mas ele não pareceu se mover. Apenas encarava o bar, devolvendo o olhar de cada um ali. Principalmente o do dono, que em momento algum desde do começo da briga despregou os olhos do asa negra. Encarava-os como se ameaçassem sua vida.
"Arnok, vamos?" Kaesar o chamou, com os outros dois do grupo já tendo passado pela porta.
"Já vou… Só esqueci algo na mesa." Começou a dizer, se afastando do amigo e da única saída do bar. "Vai sem mim. To logo atrás."
Kaesar não se moveu. Observou os ombros do amigo se erguerem de tensão e as penas de suas costas enrijecerem, como se começasse a ficar arisco. Sabia daquele comportamento de Arnok. Também sabia que era incapaz de fazer algo por ele, ou pelas pessoas naquele lugar.
Virou o rosto como se não quisesse ver o que aconteceria ali, enquanto puxava uma porta que parecia pesar centenas de vezes mais. Ela se fechando soou em sua mente como o ensurdecedor som de uma trombeta, anunciando o começo de uma calamidade.
Arnok estava parado no meio do bar e, assim como antes, olhares de diferentes intenções repousavam nele. O medo nos olhos dos clientes humanos era reconfortante comparado às ameaças que recebia dos demônios, incluindo o dono de todo aquele lugar.
"Eu disse para irem embora…" Começou a dizer, enquanto via a lenta aproximação de Arnok até a mesa em que estavam. "Eu nunca devia ter deixado um asa negra entrar nesse lugar. Só deixei que ficasse por ter pego a bebida mais cara."
O asa negra não tirava os olhos do dono do bar, agora estando ao lado da mesa, tirou as mãos do bolso enquanto sentia algo crescer em seu íntimo. Um sentimento sufocante e cegante. Já havia sentido-o antes.
Também sabia que ali naquele bar não seria a última vez.
"Não bastasse você afastar meus clientes, aquele maldito demonkin quebrou o piso do bar…"
"Ilja foi bondoso com você. Até mesmo piedoso, eu diria…" O dono do bar parecia que iria dizer muitas outras coisas, mas a voz de Arnok o cortou. Grave como um instrumento desafinado, lhe dava arrepios em lugares que não gostava de admitir. Viu ele pousar lentamente a mão no tampo da mesa. Os dedos enrijecidos como pedra. "Mas eu não sou igual a ele."
Seus dedos faiscaram e Todos no bar taparam os olhos pela luz repentina, os mais próximos ainda saltaram e já sentiam as costas e a cabeça suarem
Toda a mesa acendeu em uma chama viva, tão alta quanto Arnok e ainda mais volumosa que as asas em suas costas. Bradejava o ódio que seu invocador sentia e parecia queimar e se alimentar do medo que os clientes dirigiam a ele, como se fossem folhas secas.
Suas asas, iluminadas pelas luzes perturbadas das chamas, lhe davam um ar diabólico. Os olheiros sombreados, pareciam dois buracos infinitos de escuridão, como se o fundo do poço o observasse de volta e cheio de ódio.
"Não são merecedores dele e nem da minha paciência."
O pilar que Ilja havia levantado anteriormente também se acendeu em chamas, como um pequeno vulcão. Os clientes próximos da porta correram do bar, mas os que tinham de passar por Arnok para fugir, ficaram engessados no lugar, como se tivessem sido cercados pela morte.
Deu um longo passo em direção ao dono do bar, o fogo o seguindo como a cauda do diabo em pessoa. O homem de trás da bancada bem cuidada tremia por inteiro, seus olhos abertos como que prontos para o pior e seu nariz inalando o calor da fumaça e queimando por dentro. Logo começou a lacrimejar quando o asa negra estava diante dele, tentava olhá-lo nos olhos, mas o temor fazia ele encarar o homem à sua frente como seu próprio coveiro. Cada golfada de ar queimava seu pulmão e sequer havia percebido quando todos os clientes fugiram, ficando sozinho com o asa negra.
Com uma das mãos na bancada, chamuscando a pintura, ele puxa algo de um dos bolsos do sobretudo. O joga na frente do dono do bar, aquele pacote pequeno e justo de couro tilintando quando cai.
"Quero meu troco." Disse, olhando de cima o encurralado dono do bar. Apressado, o homem apenas tirou uma quantidade aleatória de dinheiro de dentro dos bolsos, com suas mãos tremendo a todo momento. Começava a colocá-lo diante de Arnok, quando o asa negra apertou seu pulso. Sabia que aquele diabo encarnado em demônio podia quebrá-lo a qualquer momento, mas mais do que simplesmente isso…
Podia queimá-lo.
As mesmas faíscas que o dono do bar havia visto quando sua mobília começou a queimar, agora estava ali, colada em sua mão.
"Não é esse tipo de troco que eu quero."
Notas do autor:
É nesse clima de treta, morte e queimadura, que quero dizer...
Feliz haloween!