Volume 2
Capítulo 4: Sozinho na multidão
O mar se abria diante dele. Era de um azul límpido, quase hipnótico. A brisa da maré incomodava suas asas, mas era reconfortante senti-la em seu cabelo e rosto. Uma sensação ambígua e fatigante.
“E então, com uma distração tão poderosa que nem o Arnok, eu consegui pular em cima do Leocero e fatiei sua cabeça num único golpe.” Ouviu Vincent vangloriar-se por trás dele. O Homalupo estava rodeado de alunos da academia e comerciantes, todos tripulantes passageiros na caravela em que estavam.
E que caravela… Pensou, olhando para o triplo mastro e para o convés de madeira negra com - pelo que conseguia contar - três dezenas de tripulantes caminhando por ali. Os alunos e soldados recém saídos dos treinamentos conversavam entre si, os comerciantes fofocavam e discutiam, enquanto a companhia do navio trabalhava arduamente. Os cheiros - grande parte era o de suor e do álcool, abundante nos barris dos comerciantes - e os barulhos de ambos os grupos pareciam se misturar aos do mar.
Arnok, no entanto, não se importava de verdade com tudo aquilo. Parecia um incômodo distante comparado aos sentimentos ambíguos que tinha.
“Amanhã à noite…" Murmurou sem perceber.
“Já ansioso para amanhã?” Ouviu alguém dizer do seu lado direito. Se virou para ver Kaesar, com um meio sorriso e um copo de água em cada mão. Entregando um para Arnok, se juntou ao lado dele no parapeito do navio.
“Não, só pensando alto.” Tomou a água com certa relutância. Parecia inquieto quando abriu a boca para perguntar algo a Kaesar. “Quanto tempo acha que vai levar até o navio chegar ao porto?”
“O capitão disse que vamos conseguir ver o porto antes do sol se pôr...” Disse, suspirando depois de tomar o conteúdo no copo. "E as caravanas que vão nos levar chegam apenas quando não tiver mais navios no porto."
"Talvez devêssemos encontrar alguma trupe para nos levar mais cedo. Já tô cansado desse trabalho."
"Vai ficar bem mais caro se fizermos isso."
"Mas ao menos vamos estar na capital antes do raiar de amanhã." Se espreguiçou ao dizer, sentindo o balanço do navio.
"Por quê quer chegar tão cedo à capital?" Kaesar perguntou com um olhar inquisitivo. Recebeu como resposta um silêncio fúnebre de Arnok.
"Só quero logo terminar tudo isso…" Disse em fim, mais se dirigindo ao mar que para seu amigo ao seu lado.
"Bem, eu não vou pagar mais caro por uma viagem que farei de um jeito ou de outro. Com esse dinheiro que gastaríamos viajando, poderíamos beber em algum lugar, o que acha?"
"Você está estranhamente animado, pra alguém que completou uma missão de cinco dias hoje."
"Arnok, você foi o único que trabalhou nisso. Tive apenas o bel prazer de te acompanhar."
"Quando você usa palavras difíceis é porque está se menosprezando…" disse advertindo. "Para com isso Kaesar, você sabe que fez muito nessa missão."
"É, fiz minha cobra envenenar um touro enquanto vocês seguravam e fatiavam." Apoiou-se no parapeito, recuado e olhando para o mar. Com o olhar baixo, sua figura pareceu diminuir. "Fiz muita coisa, com certeza."
Suspirando, Arnok ficou de costas para o parapeito. Viu os ombros de Kaesar, curvados e amuados, e inevitavelmente os comparou ao de Vincent, de pé e conversando não muito longe dali. Completos opostos diria de imediato e continuaria dizendo mesmo após uma longa olhada.
"Se não fosse pelo seu veneno, eu jamais teria derrubado o Leocero." Disse por fim.
"Agora só está tentando fazer eu me sentir bem." Retrucou. "E não é meu veneno, só controlo quem o tem.
"Um animal resistente como um touro enraivecido, com a ferocidade e sagacidade de um felino caçador, esses são os Leoceros. Posso estar tentando fazer você se sentir melhor, mas é fato que se aquela coisa não estivesse enfraquecida, teria me alcançado no primeiro minuto de corrida. Agora chega disso, o alabastrino vem aí."
Dando ouvidos a Arnok, Kaesar se vira de volta para o barco e com as costas retas. Vê Vincent se aproximando, com a juba de lobo branco o destacando na multidão, ele se recosta ao lado de Arnok suspirando como se tivesse levantado o navio inteiro nos ombros.
"Eles sempre perguntam o que fizemos nas missões." Disse por fim, com uma voz grave e direta.
"Querem cair nas suas graças, sabe disso." Arnok o informou, com um meio sorriso irônico.
"Antes mesmo de pisar no porto, vou ter me esquecido de metade dos rostos e nomes desses homens. Não sei nem porque tentam."
"Melhor tentar o sim que garantir o não." Disse Kaesar num tom irritado.
"Eles deviam logo ficar quietos e no canto deles, e você também cinzento." Aquele tom arrogante de Vincent soou nos ouvidos de Kaesar e abruptamente virou-se na direção dele cheio de fúria. Os olhares que trocaram faiscavam, ao ponto do ódio de ambos ser quase palpável.
"Tá legal, já deu." Arnok se intrometeu, distanciando os dois e se afastando do grupo, soltando um longo bocejo. "Eu realmente preciso de um sono decente, então não se matem enquanto eu estiver lá embaixo, entenderam?"
Ele esperou a resposta dos dois, que voltaram a trocar golpes e ameaças pelos olhos, agora ainda mais próximos já que Arnok não estava no meio.
"Entenderam?" Deu mais advertência e força em sua voz e ambos os Homalupos se viraram para ele. Ainda tinham um olhar enraivecido de insatisfação quando se viraram e partiram cada um para seu canto no navio. Arnok deu riso curto com a atitude dos dois.
Deve ser o suficiente… Pensou.
Caminhou - a passos tortos, ainda não acostumado ao balanço do mar - até as partes inferiores do navio, o primeiro deque sendo para cargas e o segundo, os alojamentos dos tripulantes. Um lugar apertado, ao ponto das asas de Arnok roçarem grande parte no teto. O cheiro de sal úmido parecia fechar sua garganta e o ranger das tábuas de alguma maneira o deixavam apreensivo ao ponto de sentir náuseas.
Teria sorte se conseguisse dormir. Talvez até começasse a acreditar em milagres.
Riu daqueles pensamentos no mesmo instante, com uma ironia carregada. Acreditar em milagres, para Arnok, por tabela significava acreditar em um deus ou uma força protetora.
Não existe nada disso, existe somente eu e minha própria força.
Olhou para as redes de juta penduradas por ali, sentando na mais próxima logo depois. Tentou sentir o balanço e percebeu que se acostumar com ele era uma tarefa árdua e infrutífera. Relutante, apenas amassou as próprias asas contra a juta áspera e pregou os olhos.
Sua respiração se mesclava ao balanço do mar, que carregava ele e o navio para longe do arquipélago em que concluíra a missão. Um lugar cheio de animais exóticos "e de perfeita pele para roupas de pompa" Ilja comentou com o grupo de amigos - Arnok, Kaesar e Vincent - certa noite num bar.
"É por isso que há tantas missões de caça para lá…" continuou, num tom ainda mais desgostoso que antes. "Porquê nobres mimados querem se vestir bem, às custas dos outros."
Kaesar rira e concordara com ele, mas Arnok se lembrava da expressão desagradável de Vincent. Uma mistura de raiva e aceitação. Uma concordância a contra gosto.
Retirando-o de todo aquele devaneio, Arnok sentiu um solavanco, que o lançou da rede. Bateu com força contra o chão do navio e teve dificuldades para se levantar. Pareciam que as ondas haviam voltado.
A trôpegos e lentos passos, subiu os deques até o convés do navio. Seu nariz se encheu do cheiro de peixe e marina, e seus olhos das luzes de lamparina da cidade. O navio havia chegado e atracado no porto de Vento-Sul, com o sol já se pondo, banhando toda cidade e a eles de uma bruxuleante luz laranja.
Em uma situação mais oportuna, Arnok aproveitaria aquele momento por mais alguns instantes. Mas ali e agora, estava preocupado sobre algo:
Cadê aqueles dois? Pensou, olhando cada um dos rostos saindo do navio, enquanto ele ficava para trás.
Sem muitas outras opções, se juntou à multidão e começou a sair do barco para o cais. Um lugar abarrotado de pessoas ocupadas com suas próprias tarefas, envolvem-sem elas o mar ou não. Via em meio a tantos rostos demoníacos, algumas figuras humanas e mais discretas ainda, estrangeiras. Raças de demônio, ou humanos usando roupas que nunca vira na vida, caminhavam e gritavam palavras a seus semelhantes que Arnok não compreendia.
Uma verdadeira bagunça, mas tão diversa e movimentada que fazia o asa negra sentir-se pequeno. Escondido, ínfimo, ao ponto de suas enormes asas não fazerem diferença. Um sentimento bom, que durou pouco.
Logo alguém esbarrou em sua asa, não foi por acidente, sentiu isso. Uma pancada forte, cheia de ódio. Fez ele se virar, encarar seja lá quem tenha feito aquilo de frente, mas não havia nada lá. A figura se misturou à multidão diversificada, esta que agora notara Arnok. Olhares pesados. Apreensivos. Cheios de temores e pensamentos que o colocavam em destaque.
Tiravam-no de seu mundinho. Faziam-no lembrar-se de tudo. Da dor, da solidão, da massa enorme e negra nas suas costas que o destacava na multidão.
Eu sou um asa negra… Pensou, com certo temor ao notar o quanto "um" parecia pesar tantas vezes mais. Apenas um…
Suas preocupações cessaram quando sentiu um puxão no ombro. Alguém agarrou sua mão e começou puxá-lo para longe dali. Era difícil ver a silhueta dela naquele lugar apertado. Mas era possível reconhecer sua voz.
O chamando e pedindo para acelerar o passo, Arnok ouviu um tenor conhecido. Algo entre o infantil e a seriedade de um ancião. Tentou ter um vislumbre da figura que o puxava para confirmar sua hipótese.
Viu o contraste da pele escamosa e falhada, entre o negro do carbono e a albinez de uma pele que nao recebia sol respectivamente, e abriu um sorriso ao reconhece-lo.
"Ilja, aonde diabos você tá me levando em?" Perguntou olhando para o amigo.