Volume 2
Capítulo 3: Justiça ou hipocrisia?
A lua em seu ápice, junto ao brilho das estrelas, cobria a floresta com um manto de prata. Mas, quebrando todo aquele cenário de penumbra, existia o brilho alaranjado de uma fogueira.
Iluminava os cavalos presos a uma árvore próxima - tinham pelagem castanha, mas que ficava avermelhada pela luz -, dava cor a branquitude das charretes com toldos de lona e dava uma silhueta longa e sinistra ao grupo de homens sentado próximos a fogueira - três ao todo.
Cada um tinha em mãos uma tigela de madeira velha e desgastada, cheia da comida que havia na grande panela de ferro posta acima da fogueira. Um guisado de coelho, com pão velho e temperos encontrados naquele mesmo mato.
"Ainda acho que devíamos ter conseguido uma pousada." Um dos três comentou, com a boca fumegando pelo calor do guisado.
"Não temos dinheiro para isso, e não podemos arriscar alguém roubar a carga." Um segundo retrucou, esse de uma postura ereta e mais determinado no que dizia que os outros. Sua tigela de guisado estava vazia, com a colher descansando em seu colo, enquanto olhava ao redor, para a plenitude daquele noite e seu contraste com os sons da floresta.
"Mas também não deviam estar aqui!" Ouviram repentinamente de seu líder.
Os três homens se levantaram, completamente despreparados, um deles até mesmo derrubando a sopa. Diante deles, com parte do rosto escondido pelas sombras, uma mulher com cabelos cor de fogo estava de pé, sua presença causando calafrios nos dois mais próximos dela.
Mas não ao homem que já terminou sua comida.
"Quem é você?" Perguntou, lentamente, endireitando a própria postura e tentando ver a totalidade do rosto daquela mulher.
"Estão em propriedade privada." Disse, começando a se aproximar e perdendo sua máscara de sombras. Os dois mais distantes se entreolharam confusos. O líder ainda mantinha a desconfiança no rosto.
"Propriedade privada?" Ele perguntou, agora, pronto para qualquer ameaça. No entanto, a mulher não aparentava maiores riscos que antes. Ainda tinha o olhar firme de suspeita, mas nada além disso. Ainda assim. Algo nela despertava naquele homem um medo instintivo.
"Não finja ignorância. Tem uma cerca farpada a meio quilômetro daqui que cerca todo esse hectare." Disse, apontando para a escuridão da floresta, ao norte dali. "Se entraram aqui, vocês viram a cerca."
Eles se entreolharam depois disso. Olhares de verdadeira confusão.
"Vocês viram uma cerca?" Um dos mais distantes perguntou. Os outros dois negaram com a cabeça.
"Mentir não vai retirar o fato de não poderem estar aqui." A mulher comentou, num tom mais ameaçador que antes.
"Não estamos mentindo…" Começou a dizer o líder. "Vimos o que parecia ser um pedaço de estrada que entrava na floresta…"
"Pedaço de estrada?" A mulher o cortou, olhando-o com incerteza, como se estivesse dizendo uma loucura. Algo impossível.
"Sim. Um pedaço de terra amassada e queimada. Não tinha nenhuma cerca e essa estrada, que mais parecia uma trilha, trouxe a gente para esta clareira." O líder apontou na mesma direção que a mulher havia apontado antes, mas mais próximo do chão. "A trilha que eu estava falando está ali."
Ela hesitou para tirar os olhos do líder. Foi a passos lentos e sem tirar os olhos daqueles três enquanto caminhava até onde ele havia apontado. Se virou para de fato ver uma trilha de grama queimada.
“Vocês não fizeram isso, né?” Perguntou, voltando-se aos homens e com a confusão estampada em seu rosto, ao invés da desconfiança ameaçadora.
“Por que faríamos?” O líder perguntou, se levantando e lentamente se aproximando da mulher. “Escute, deve estar havendo apenas algum mal entendido okay? Por que não começamos do zero?"
Ele começou a dizer, esperando alguma resposta ou reação da outra parte. Mas, ao contrário do que esperava, recebeu sequer o olhar dela. Ela apenas olhava para as três carroças próximas dali, com a desconfiança mais uma vez voltando ao seu rosto.
"Sou… Sarney." Disse o líder, com um nome que era obviamente falso. "E vo-"
"O que tem nas carroças?" O cortou antes mesmo de terminar a pergunta. O olhar afiado como navalha caindo sobre as carroças.
"Mercadoria, senhorita." Respondeu, com a irritação clara como a alaranjada e temerosa luz da fogueira que caia sobre a mulher ruiva. "Mercadoria esta que já foi vendida para um cliente, e por isso não podemos tomar riscos desnecessários." Ele continuou, mas nada parecia abalá-la.
Continuava a olhar para as carroças, mas dessa vez, deu o primeiro passo até. Todos os homens do grupo começaram a se entreolhar, o desespero vazando pelos próprios poros. O segundo passo foi dado, a grama seca da floresta parecia estalar mais alta do nunca, quando de repente. Um ronco alto quebra e leva toda a apreensão nos olhares dos presentes, e o substitui por surpresa. Confusos, tentaram entender de onde vinha aquilo.
Quando soou uma segunda vez, descobriram que era o estômago da mulher. Sua figura parecendo ficar menor pela vergonha.
O líder deu um suspiro de alívio, como se um peso tivesse sido tirado de seus ombros.
"Olha, todos aqui estamos de cabeça cheia. Por que não fazemos o seguinte…" Se aproximando mais uma vez da figura, agora praticamente indefesa como se fosse uma pequena garota, ele tenta olhá-la nos olhos quando termina sua frase. "Nós quatro temos uma breve refeição do meu, modéstia a parte, excelentíssimo ensopado de coelho. Esfriamos nossas mentes e decidimos, sem maiores contratempos, cada um o seu rumo. O que acha?"
Deu um sorriso largo, como se já soubesse a inevitável resposta daquela mulher.
Uma troca de olhares cheios de antipatia depois e mais um ronco tão alto quanto um estrondo de canhão, o grupo formou um círculo improvisado ao redor da panela com ensopado.
Encheram uma quarta tigela para a mulher e aqueles que haviam derrubado sua comida anteriormente, enchiam e comiam mais uma vez.
Ficou algum tempo olhando para os homens naquele grupo suspeito. O barulho de talheres e bocas abertas enquanto mastigavam preenchendo o silêncio da floresta que ela tanto gostava e que há muito havia se familiarizado. Tentava se manter firme diante deles, temendo o pior. Mas o cheiro da comida a atraía. Culpada, colocou uma colherada daquele ensopado na boca, e não notou quando o líder do grupo olhou na direção dela com uma expressão de vitória.
"As estradas tem estado bem complicadas…" Começou a dizer, ignorando a tensão que existia antes de Lira ter começado a comer. "Os militares têm se movimentado muito da capital para as fronteiras."
"Se movimentado?" Lira perguntou, sua figura fraquejada de fome sumindo em um único instante. Parecia interessada no assunto que o líder começava a dizer. E ele percebeu isso.
"Sim!" Disse, afirmando num tom quase lírico. "Caravanas e mais caravanas movendo centenas de homens para postos de defesa próximos a Gaia."
"Mas por que?"
"O rei quer guerra." Um segundo homem no grupo disse, ainda de boca cheia. "Os impostos que aplicava subiram também."
"Ta fazendo de tudo pra se preparar. Tem movimentado até máquinas de produção."
"Forjas, fornalhas, oficinas moveis…" O líder começou a dizer mais uma vez, puxando um graveto e pontuando na terra seca tudo que já havia sido dito. "Tudo pra que não hajam problemas."
"Problemas no que?" Lira perguntou, agora totalmente imersa naquilo. "Que tipo de plano ele tem para acabar com a guerra?"
"Parece ser uma invasão..." Deu uma pausa no que disse, que fez Lira digerir a informação seguinte com ainda mais atenção. "Ele quer atravessar Gaia e invadir a capital."
"Outros reis já tentaram…" Lira começou a dizer, soando um pouco incrédula com o que o homem havia dito. "Se o rei fosse realmente invadir e tivesse chance, já estaria em todos os meios da imprensa, isso não é o bastante."
"É apenas um burburinho entre os soldados. Boatos de um ataque em massa, como atravessar uma montanha pelo meio ao invés de desviar pelo rio, ou passar por cima dela."
"Muito recurso vai numa brincadeira dessa…" o líder voltou a dizer, apontando para o colega que havia comentado antes. "Dinheiro que aposto que não deve ter ainda, por isso aumentou os impostos."
"Até o movimento de escravos cresceu..." O terceiro do grupo começou a dizer, recebendo olhares de aviso dos outros dois, mas não os havia notado. "Temos vendido menos deles para nobres."
"Vocês o que?" Lira perguntou, soltando a tigela de sua mão. Os dois do grupo olharam irritados para o terceiro, ele notara o próprio erro e começou a suar frio. Lira agora não era mais a garota com fome que apareceu no acampamento deles, nem a mulher interessada na guerra.
Diante dos três estava uma figura de olhar ameaçador, com uma postura de uma assassina. Assim como no primeiro momento que apareceu, os dois homens mais próximos a ela deram um passo para trás, temendo o pior. Mas o líder não se afetou.
"Foi o que você ouviu." O líder respondeu, com uma calma estranha, egocêntrica. Como se já tivesse ganhado. "Vendemos escravos, este é nosso trabalho."
"E acha correto fazer isso?" Lira gritou por instinto, a raiva a dominando mais do que gostaria.
"É um dinheiro fácil, e esses demônios estão pagando por tudo que fizeram conosco na guerra." Disse, sem tirar os olhos de Lira, um sorriso de canto aos poucos se formando no seu rosto. "E não entendo sua irritação. Você soava antes como se quisesse o fim da guerra."
"Eu quero o fim da guerra."
"Então um dos lados tem de perder." Disse, virando de lado a cabeça e olhando a Lira de cima, como se falasse com uma criança. "Imagino que saiba disso."
"Escravidão não tem nada haver com isso."
"Estão pagando pelas atrocidades que fizeram, já disse."
"Fomos tão violentos quanto eles, e não somos escravizados por isso."
"Eles que estão perdendo. São idiotas orgulhosos que não aceitam a própria derrota."
"Ainda não ganhamos a guerra."
Um silêncio pesaroso caiu sobre o grupo. Lira e o líder trocavam olhares que faiscavam semelhantes as chamas da fogueira. Os únicos dois outros presentes se entreolharam confusos, sem saber o que fazer naquele momento.
"Você é uma hipócrita." Disse por fim, como se aquilo saísse do fundo do âmago.
Lira nada disse, apenas respirou fundo por um longo instante. Longo o bastante para parecerem horas aos homens próximos a ela. No entanto, quando voltou a si, não estava de mãos vazias.
Havia sido rápido demais para o líder notar, mas num mísero instante, aquela garota de cabelos ruivos e atitude infantil, tinha em sua mão um revólver. Uma arma opaca que pouco reluzia sobre as chamas da fogueira e que naquele momento, tinha seu cano virado na sua direção. Não havia hesitação, ela sequer tremia.
E então, veio o estouro.
Despertando todo e qualquer animal próximo dali, o líder viu por um mísero segundo a pólvora de dentro da arma estourar. Logo em seguida, uma sensação aguda veio de seu ombro. A incredulidade não o deixava colocar as mãos na ferida. Apenas olhava na direção daquela garota. Não, não era mais uma garota para ele.
Agora via o mesmo que seus homens. Talvez não temesse tanto quanto eles, mas sabia do risco.
Com um esforço tremendo, já sentindo o suor frio escorrendo na face e a adrenalina passando, dando lugar a dor, se levantou. Olhando para seus dois homens e os ordenou a irem até as carroças com um balançar de cabeça.
E eles se moveram. Mas assim que um deles começava a subir um dos cavalos, Lira disparou mais uma vez, agora próximo do lugar em que o animal estava. A montaria se jogou com força, fazendo o homem voar e temer que as patas do animal caíssem em cima dele. Com o mesmo movimento que se levantou, correu dali. O segundo do grupo fez o mesmo.
Restava apenas o líder e a figura ruiva e armada. Sua silhueta sendo sombreada pela luz das chamas o fez lembrar do instante que ela apareceu da primeira, mas agora no entanto…
Agora ele a temia.
Olhava-a nos olhos e via pupilas tão escarlates quanto as chamas da fogueira.
"Já entendi o recado." Disse, mancando para longe dali, a grama seca sendo encharcada pelo seu sangue.
Levou algum tempo até ela abaixar a arma. Ficou parada alguns instantes olhando na direção em que os homens correram. O crepitar da fogueira, as respirações curtas e assustadas dos cavalos, a volta dos sons da floresta após toda aquela comoção. Lira dava atenção a esses detalhes numa tentativa frustrada de acalmar seus pensamentos.
"Hipócrita… em?" Murmurou, as palavras lhe saindo densas, quase palpáveis.
Hipócrita pelo que exatamente?
Ainda que sua mente estivesse uma torrente imparável, seu olhar repousava nas três carroças dos vendedores de escravos e seus cavalos. Se lembrava das palavras de um deles no começo de tudo. Carga que não podia ser roubada.
Lentamente, se aproximou do cavalo na carroça mais a direita, com o animal já começando a bufar conforme ela se aproximava.
Quero o fim desta guerra tanto quanto ele… tanto quanto todos!
Com suas mãos à frente do corpo, tentava acalmar o corcel. Ele balançava a cabeça em recusa, jogando a crina negra para os lados. Mas Lira insistiu. Segurou a sela e as correias, lentamente as desfivelando. A respiração do animal lentamente se apaziguando.
Logo, todo o equipamento estava no chão. Sela, fivelas, cintas, mas nada segurava a carroça e Lira bateu em seu cangote. Num salto, o animal correu.
Mas escravizá-los não é justiça. Não é nada além de desumano…
Mas eles sequer são humanos.
Partiu até o segundo e terceiro cavalo e fez o mesmo que havia feito anteriormente. Todos correndo em direções diferentes quando tinham seus cangotes tapados.
São monstros… sabem nada além de destruir… Esses pensamentos a assombravam como uma antiga dor de dente. Sorrateira, surgia apenas nos momentos mais oportunos para atazanar Lira. Mas algo a quebra dessa dor.
Em meio aos sons de cascos em fuga e do fogo estalando, ouviu algo se remexer, um som baixo e seria perceptível se logo em seguida um pedido de silêncio fosse feito. Lira procurou ao redor, percebendo que não havia lugares para alguém se esconder que não dentro das carroças.
Puxando sua arma, lentamente deu a volta nela, seus pensamentos finalmente lhe dando alguma trégua. Estava de frente com a traseira da carga e num movimento só, escalou e mirou para seja lá o que estivesse lá dentro.
Viu uma gaiola - não caberia nada muito maior que um porco acima do peso -, seu ferro fosco e enferrujado lhe dando uma aparência asquerosa. Seus olhos desceram por entre as finas barras dela, finalmente repousando em seu conteúdo.
Notou duas crianças. Um pequeno rapaz, que talvez mal tivesse dez anos, protegendo uma garota com feições semelhantes às dele, mas muito mais nova.
Ambos tinham chifres que apontavam para cima, de pele vermelha, como o fogo da fogueira. Ambos com olhares de medo sobre a arma da Lira e de sua silhueta sombreada. Pareciam frágeis, insignificantes. As mãos do rapaz tremendo enquanto suava.
Isso são os monstros?
Abaixou o revólver no mesmo instante e se aproximou da tranca da gaiola. Foi fácil destrancá-la com força bruta, e agora os dois demônios estavam libertos e olhando para aquela figura amedrontadora incrédulos.
"Sigam a trilha de grama queimada." Lira disse, sua voz saindo mais baixa que o convencional e abrindo caminho para os dois. Uma breve troca de olhares hesitantes entre eles depois, as duas crianças correram. Tropeçando várias vezes, seguiram pela trilha que Lira os aconselhou.
Eram só crianças… como eu fui naquela noite…
Caminhou até a segunda carroça, agora esperando pelo pior. Mas nada encontrou, além de caixotes cheios de suprimentos.
Qual a diferença deles para mim? O fato de terem chifres?
Suspirando levemente aliviada com a falta de um demônio na carga da segunda carroça, já se preparava para ir até a terceira. Quando ouviu... uma respiração entre-cortada e exausta, cheia de uma dor pesarosa. Mesmo antes de subir na carga, já começava a temer pelo pior.
Uma gaiola exatamente igual a das duas crianças de antes, mas o demônio ali dentro fez Lira hesitar em como agir.
Eles até sangram como nós…
Viu uma Sukubo, a pele vermelha cheia de cortes putrefatas, encharcadas de pus e suor, amareladas pela terra e pelo tempo. Tentava procurar pela sua cauda, mas nada viu. Temia que eles a tivessem arrancado. Seu rosto tinha hematomas e marcas de corte tão feias quanto as de seu corpo, mas eram mais marcantes pelo olhar que ela tinha.
Não estava viva por dentro. Olhar vazio, como se fosse uma casca que apenas sabia respirar com dificuldade. Via Lira sem vê-la de fato. Não a temia porque sequer sentia algo. Até a dor parecia ter sumido, junto de sua vontade.
E perdem tudo.
Engolindo em seco, Lira se aproximou. A Sukubo lentamente a olhou nos olhos, a respiração não se alterando. Não conseguia olhá-la por muito tempo pela confusão que estava em sua mente e pela angústia do que fazer. Apenas tentava tomar coragem para olhá-la de igual para igual. Merecia ao menos isso.
Mas era uma tarefa árdua.
Eu os odeio… os odeio tanto. Mas ainda assim, por que é tão difícil olhar para ela?
A demônio começou a se remexer. Lentamente levou uma das mãos até a grade, mostrando apenas quatro dedos para Lira e uma ferida mal cicatrizada e apodrecida. Sua respiração se agitou, como se ela chamasse a silhueta de cabelos ruivos. Hesitando, ela se aproximou. Fez o máximo de esforço para ouvir as palavras do corpo que ainda respirava, lentamente deu forma a suas palavras…
"Me mate…" para então ouvir pela primeira vez em anos o sofrimento genuíno na voz de alguém.
Se afastou da gaiola, surpresa com as palavras da mulher. Mas ela continuava a dizer a mesma coisa. Seu olhar não mudava e sequer tinha o esforço de tirar a mão da grade. Apenas olhava Lira, com aquele seu olhar vazio e doloroso.
A cabeça estava a milhão mais uma vez. Sentia aquela dor de dente mais forte do que nunca e agora, como se estivesse a levantando pela primeira vez, começava a apontar o revólver de ferro fosco na direção da Sukubo em sofrimento. A arma tremia tanto em sua mão. Não tinha lembranças de uma situação tão dolorosa quanto esta.
Não… tinha uma sim. Mas não gostava de admitir que ali, naquele momento, tremia tanto quanto naquela noite a três anos atrás.
Seus olhos marejaram, a arma parecia pesar como chumbo e sua visão embaçava quando tentava focar a mulher em sua frente.
"Sinto muito por ter de fazer isso..." Começou a dizer. A voz rouca, como se não a molhasse a vários dias. "Mas pelo menos agora sua alma estará livre."
Recitou palavras de conforto que já havia ouvido certa vez, mas não conseguia se lembrar da onde. Só tentava aproximar o dedo do gatilho, temendo o som do disparo.
"Libereco." Disse por fim, seu disparo sobrepondo toda a dor e sofrimento da casca viva na sua frente.
E foi ali, naquele momento, que Lira se deu conta.
Enquanto as lágrimas corriam pelo seu rosto, percebia que havia matado seu primeiro demônio.