Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

Revisão: Hide


Volume 2

Capítulo 33: Bagunça pela manhã

A manhã seguinte veio de maneira turva e barulhenta. Era hora de partir. Todos arrumavam seus objetos e malas, equipamentos e itens para viagens. Os cadetes pareciam ansiosos para partir para a próxima cidade, Lira, no entanto, não estava tão ansiosa.

Ainda tinha vivido em sua mente a conversa da noite passada. Após ter dito que era filha de Phillip, continuou a compartilhar com aquele homem todos os ocorridos nos últimos anos, algo semelhante ao que fez com Júnior, os gêmeos e com Melissa no caminho para cá. Mas na carroça, havia sido uma conversa divertida, calorosa e nostálgica. Aqui se assemelhava a um relatório, onde a todo momento ela se lembrava o motivo de estar fazendo aquilo e quem era o homem na frente dela. 

Um antigo amigo de seu falecido pai e um conhecido de sua falecida mãe. Sabia do conturbado nascimento de Lira, do acidente com demônios de sangue azul na primeira morada que os pais dela tinham e do acontecimento que fez Laura se esconder na floresta, junto da filhas. Ele tinha conhecimento de toda a história de Lira, talvez conhecesse até mais detalhes que ela. Ficava ansiosa ao perceber isso. Como podia uma historiadora pouco conhecer da própria história?

Após uma longa conversa, onde apenas um lado se comunicava, o Thomas agradeceu por ela ter compartilhado com ele tudo aquilo, e adicionou:

— Estarei saindo esta madrugada para seguir até a próxima cidade. O Morro do Pônei está cheio de estalagens e é a próxima parada da caravana de vocês. É também a cidade mais próxima de onde você morava… Sua casa ainda está lá, eu não diria intacta, mas posso te ajudar a encontrar e vasculhar os escombros se quiser. Me encontre na “Jossa do vinho”, é lá que vou ficar.

Ele deu uma breve pausa, olhando para ela de cima a baixo. O sorriso que ele abriu era engraçado e diferente dos anteriores, por mais que os dentes amarelos fossem os mesmos. 

— A escolha é sua de ir, Lira.

A escolha era dela… de fato. Ninguém mais tomaria a dianteira para desenterrar seu passado, se não ela mesma. A porta ainda rangia em sua mente, as coisas ainda retornavam de maneiras dolorosas e sempre hesitava em pensar que havia chegado a hora. Tudo tem seu devido momento, era chegado o dela. 

Lira terminava de ajeitar suas coisas no próprio dormitório, havia dormido no mesmo quarto que Melissa e outras duas garotas e adorava o fato de estar sozinha naquele momento confuso. Estava silencioso no quarto, mas fora dele a barulheira de dezenas de homens e mulheres correndo parecia inundar os ares daquela cidade. Tudo girava em torno daquela caravana e os problemas que ela tinha pareciam pequenos em comparação a toda a logística de manter um grupo como aqueles organizado, ou as rotas mais seguras e rápidas a se tomar, assim como possíveis locais de descanso. Ou em como seria o relacionamento entre os cadetes novos, ou mesmo a relação entre capitão e comandante…

— Lira?

Ela ouviu de repente em suas costas e se virou de supetão. Seus devaneios haviam sido interrompidos, e estranhou ficar feliz por isso. Talvez fosse o homem parado ao batente da porta que causasse essa sensação nela.

Ali estava Junior, com uma expressão de preocupação que se encaixava com certa leveza em seu rosto. 

— Tá tudo bem?

Lira tentou sorrir e não sabia ao certo se havia conseguido ou não, mas não se sentia bem. Nada disse no fim das contas, e apenas continuou a arrumar suas coisas. Junior também nada disse num primeiro momento, mas caminhou para o lado dela. A olhou por um longo instante. Olhar profundo, cheio de maneirismos que Lira começava a notar que existiam naquele rapaz. Ele parecia olhar para além dela, atravessava paredes, mares, terras inteiras, para ver o que estava por trás do silêncio de Lira. 

No fim, ele também se calou e começou a ajudar ela na arrumação das malas. Colocou as adagas e ferramentas nas devidas bolsas e entregou as roupas todas para ela. Os dois trabalharam e realizaram um trabalho que talvez levasse uma hora inteira em pouco menos de quinze minutos. Ambos suspiraram aliviados.

— Lira… Não sei o que se passa contigo. — Ele começou a dizer, não olhando para ela, mas sim para os frutos de seu trabalho. Lira, no entanto, olhava para ele e seu cabelo bagunçado. Seu pescoço estava suado, assim como suas têmporas, mas ele ainda não exalava qualquer cheiro naquele quarto apertado. — Mas quero que saiba, tudo vai dar certo pra ti. O amanhã vai ser melhor pra você, e esses problemas vão parecer pequenos. 

Ele finalmente olhou de volta para ela, um olhar longo e próximo demais, quase íntimo. Aquele brilho azul fez Lira se lembrar do mar, ainda que nunca o tivesse visto pessoalmente. Era como ver a imagem plena das histórias de sua mãe, a narração de um azul pleno, denso e salgado. Incrível de se ver, perigoso de se tocar e fácil de se perder.  

— É uma mulher forte, reconheci isso no primeiro dia que te vi. 

— Obrigado… — Lira só conseguiu dizer isso, ainda olhando para os olhos dele. Percebeu que talvez estivesse encarando por tempo demais, então agarrou a própria bolsa para carregá-la para fora. Sentiu uma pontada de dor pelo corpo todo de imediato e apenas derrubou suas coisas. O baque alto fez Junior saltar. 

— Lira! — Correu para ajudá-la, e carregou a bolsa que havia caído, ele levantou com facilidade e isso a preocupou. — Ainda não está boa, tem que tomar cuidado. Mesmo a Melissa cuidando de você, ainda teve uma cicatriz enorme no braço. Fico impressionado de estar aguentando a viagem. 

— Já passei por coisa pior… — Disse, não sabendo ao certo se era verdade. 

Ainda se lembrava daquela noite, com exatidão e sempre que o rosto de Odoro surgia em sua mente sua espinha parecia mergulhar em um mar gélido, sendo aos poucos triturada pela pressão do fundo do oceano. Seu braço queimava como da primeira vez, e todas as suas feridas pareciam abrir ao mesmo. 

Escondia o próprio desespero muito bem, mas por quanto tempo aguentaria isso? Talvez mais do nunca devo voltar…

Estava prestes a agradecer Junior por estar ali, mas repentinamente Nephew apareceu à porta, e parecia apressado: 

— Estamos quase prontos para sair, senhor. — Ele disse, olhando diretamente para Junior, a expressão séria demais para o típico e brincalhão Nephew dos últimos dias. — Lira, só falta você com as bagagens. — Seu sorriso voltou assim que olhou para ela.

— Logo vou com vocês Nephew, só preciso levar as coisas da Lira para a carroça. 

— Que príncipe encantado… — Ele retrucou, dando um sorriso de canto e partindo pelo corredor.

— Não precisa levar nada, Junior. Eu aguento… —  Disse, mas ele já estava com ambas as bolsas em seus ombros e levando pela porta. Ele carregava elas sem esforço, e Lira não soube ao certo se era porque ele era mais forte do que aparenta, ou se ela estava mais fraca do que imaginava. Talvez devesse voltar a fazer alguns alongamentos…

Saíram do quarto, e agora seguiam pelo corredor apertado da hospedaria, um corredor sujo e grudento. O som ecoava com facilidade por aqueles corredores, tanto os de fora quanto os de dentro. Os passos de Lira e Junior se misturavam à gritaria e a pressa dos militares logo ao lado. 

— É sempre agitado assim…? — Lira perguntou, tentando quebrar o silêncio entre eles, por mais que não estivesse um silêncio propriamente dito. 

— Sempre, as idas e vindas dos militares são rápidas e pouco organizadas normalmente. Ou ficamos nessas estalagens ou na orla das cidades, ainda que tracemos uma rota onde vamos passar onde tenham essas hospedarias patrocinadas pela coroa. 

— Mas por que estão recrutando tantos soldados? A guerra parece… — Estava prestes a dizer calma, mas isto implicava uma falta de conflito. Sentia que algo estava acontecendo, ou prestes a acontecer. Ainda se lembrava da Papilio que resgatou anos atrás junto de Philip, e agora o encontro com Odoro aparentava ser mais um sinal. 

Agora um sinal para o quê?

Junior não respondeu, se mantendo em silêncio até o instante em que saíram do prédio da hospedaria. Agora era impossível notar a bagunça que os militares traziam para aquela pequena cidade. Uma dúzia de homens fardados, aparentemente sargentos, tentavam ordenar outras cinco dúzias de cadetes, além de um segundo grupo meio distante tentava recrutar ainda mais soldados para aquela caravana, recebendo as malas de novos recrutas. 

Uma verdadeira bagunça. A poeira se erguia e era difícil caminhar por aquele espaço apertado sem esbarrar em alguém ou em algo. O barulho constante de passos era dessintonizado e Lira já começava a sentir enxaquecas e dores no corpo por caminhar naquele espaço. 

No entanto, Júnior a guiou, constantemente mantendo uma mão em seu ombro e fazendo os recrutas abrirem caminho. Uma breve caminhada depois, estavam finalmente diante da caravana. Ambos suspiraram de alívio, e Lira com dificuldades se sentou na traseira enquanto ele colocava suas bolsas logo ao lado. 

Com um aceno de cabeça, o rapaz se distanciou da caravana e Lira estranhou isto. Imaginou que Junior já subiria com ela e esperariam a partida da caravana. Talvez ele tivesse outros compromissos ou necessidades para resolver e não podia esperar ali, era claro… No entanto…

Por que me sinto triste com isso?

Desceu da traseira da caravana e antes que percebesse começou a caminhar na direção de onde Junior havia ido. Para a maioria das pessoas talvez fosse complicado encontrar uma única cabeça em meio a tamanha multidão, no entanto, Lira era uma exceção. Uma que sofria de muitas dores no corpo, apesar de suas excelentes habilidades como caçadora. 

Foi a passos lentos, mas conseguiu segui-lo até uma pequena tenda, distante de toda aquela bagunça. Se aproximou, curiosa como se fosse três anos mais nova. 

Aquela tenda era coberta de maneira improvisada por uma lona. O objetivo parecia ser obstruir a visão de qualquer de fora para dentro daquilo, mas era extremamente fácil ouvir as várias vozes ali dentro. Homens e jovens que discutiam o que pareciam ser rotas a seguir e pedidos que receberam das cidades que já passaram. 

Ainda assim, era difícil não notar a voz dos gêmeos no meio disto tudo:

— Parece que a próxima cidade que vamos passar está tendo um problema com lobos. 

— Tão distante do norte? Não é um alarme falso? 

— Não, ao que indica são variantes mágicas. Talvez tenham atravessado a fronteira. — Disse um dos gêmeos, Lira não conseguia saber ao certo qual deles.

— Temos confirmação do desaparecimento de algumas pessoas. — O outro deles adicionou sobre o comentário do irmão. Como podem ter vozes tão parecidas? —  Além do gado, que a cada semana diminuiu em duas cabeças. 

— Sabemos onde a alcateia dorme? — Uma voz perguntou, grave e empoderada, que fez todas as outras se calarem diante da pergunta. 

— A toca parece estar ao leste da cidade, perto do local onde iremos dormir. Isto se ficarmos fora da cidade desta vez, meu senhor. 

— Não vamos deixar os cadetes e os recrutas se ferirem por uma coisa tão boba quanto um lobo. Enviem um mensageiro, com a mensagem de que as hospedarias fiquem vazias, elas irão receber nossos homens mais fracos e serão bem pagas por isso. Também enviaremos um batedor, vamos descobrir o melhor local para acampamos para que possamos eliminar tudo isto. 

— Jovem príncipe, entendo sua preocupação. — Uma terceira voz se adiantou, uma voz cansada e grave, talvez pelo excessivo uso. — Mas já fizemos paradas demais e nossas bolsas estão se esvaziando rápido. Logo estaremos na capital e enviaremos um grupo para cuidar estritamente disso. 

Algumas vozes no meio dentro da tenda pareceram concordar com isto, e Lira se remexeu conforme ouvia, desconfortável por muitas razões. Parecia errado estar ouvindo aquilo tudo, no entanto era mais errado ainda notar que aqueles homens queriam abandonar uma cidade à mercê de uma alcateia de lobos. 

— Esse grupo levará ao menos outros seis dias de paradas, e talvez leve mais tempo se dependermos dessa bagunça todas as vezes que partirmos. Além disso, serão mais alguns dias de burocracia, organizações e papeladas para enviarmos alguns soldados para lá. Isto se conseguirmos a autorização do aurífice da coroa. Não vamos abandonar aquela cidade, e com toda certeza poderemos usar a carne e a pele destes lobos de alguma forma. Abandonem este medo inútil quanto aos gastos, a coroa não chegou até aqui temendo perder o ouro que ainda tem, mas sim planejando ganhar o ouro ainda a vir. 

Era uma voz que Lira reconhecia, mas estava em uma posição elevada. Não literalmente falando. Ouvir aquela voz era como estar diante de um homem que sabe da e conhece exatamente a posição que ocupa, e usa de todo o poder que ela proporciona. Uma pessoa completamente diferente do Júnior que ela conhecia. 

Houve discussões depois disso, mas palavra a palavra o príncipe conquistou os homens naquela tenda e logo todos estavam dispostos a deter a alcatéia. A voz animada dos gêmeos mais uma vez se destacava no meio disto tudo, no entanto, a falta de voz de Junior parecia pesar mais do que tudo. 

— Dispensados. — Ele disse, acima de todos e finalizando a reunião. Era o momento de Lira sair dali de perto. 

Uma alcateia de lobos… as coisas pareciam que iam se agitar por ali. Quanto a se processar. O rapaz que acompanhou Lira este tempo era na verdade o próprio príncipe da nação, havia se reencontrado com um velho amigo de seu falecido pai e agora uma alcateia de lobos.

A quantas dias estava viajando? Apenas três? 

Acho que vou escrever tudo isto para Philip. 



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