Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

Revisão: Hide


Volume 2

Capítulo 29: Já o vi antes

Ela encarava um ponto fixo muito distante e pequeno, uma ínfima torre de sino no horizonte. Daquela distância, era impossível identificá-la de fato. Era apenas um ponto que se distanciava cada vez mais. Apenas sabia que era uma torre pois desde que partiram, não havia tirado os olhos de lá. 

Mesmo quando Júnior, ou os gêmeos Matthew e Nephew falavam com ela, Lira ainda encarava a torre da igreja. Achava que estava sonhando, que toda aquela planície ao seu redor era falsa e que estava preso em um sonho conceitual. Do tipo em que você sabe que está sonhando, mas que não sabe como sair. Loucuras demais, devaneios em exageros e desejos antigos que se materializaram. Não consegue controlar este sonho, por mais vivido que ele seja. Era extremamente difícil acreditar que aquele jovem de sorriso perfeito e de cabelo marrom e ordinário pudesse ser real. 

— Lira, posso te perguntar algo? — Júnior disse, quebrando a atenção dela. A torre já estava distante demais, tinha de aceitar que já estava longe de casa. — Como era?

— Era o quê?

— Treinar com o Philip. — Quando disse essas palavras, todos os outros presentes na carroça viraram na direção da dupla. Aquela parecia ser uma curiosidade de todos os presentes, dos gêmeos, de Melissa, de Júnior e dos outros dois cadetes também presentes na traseira da carroça. Lira não conhecia seus nomes ou rostos, não eram da cidade da onde partiram. 

— Não é tão interessante assim. 

— Modéstia não vai tornar a resposta menos interessante. — Nephew disse, sendo golpeado pelo irmão. Matthew disse para ter educação, ainda que seus olhos pareciam tão sedentos quanto os de seu irmão. 

— Não sei nem ao certo por onde começar… — Disse ansiosa e com um sorriso brincalhão no rosto. Estava apenas dizendo o que sempre se deve dizer neste momento. Nenhuma historiadora se perde quando conta uma história, ou desconhece seu princípio. Aquela era uma antiga mania. Um ato involuntário que aprendeu com sua mãe a muito tempo. Sempre quando estava prestes a contar uma história, as historiadoras devem se virar para seu público, encarar cada um deles nos olhos e com um sorriso dizer essas frases… — É uma história longa, mas muito importante. 

E foram essas palavras que começaram um intenso monólogo, que mais se assemelhava a um relato. Lira contou em detalhes os dias mais importantes. Detalhes vividos e cheios de sentimentos, como se todos ali pudessem reviver aquilo tudo. Contou da sua semana na floresta, e notou como todos ali encararam assustados a atitude de Philip. Contou o dia que lutou contra ele e começou a aprender a técnica dos nove pontos, tentando manter um sorriso quando se lembrou do golpe que Philip desferiu nela e das consequências que vieram em seguida. 

Também relatou com um enorme sorriso sobre o dia que encontrou Plumo, seu corvo de asas dúplices, que por alguma enorme coincidência, pousou na beirada da carroça. O corvo de quatro olhos olhou para todos ali com curiosidade, mas saltou na direção de Lira, pousando em seu colo. Ela abriu um sorriso de saudade no mesmo instante, e então viu o pequeno brilho no peito do animal, como o reluzir de uma fivela. 

Plumo voava com um cinto especial. Algo semelhante a uma bolsa que passava por entre suas asas e se prendia com firmeza. Parecia um trabalho do mesmo homem que havia feito a arma de Lira, mas isto não era importante. O que importava era o compartimento cilíndrico nas costas do acessório. Quando o corvo se virou, Lira percebeu que Plumo se tornou um gavião de entregas, algo usado na época de Philip e que se tornou pouco eficaz se comparado às ligações codificadas. 

— Quando foi que você aprendeu a fazer isso? — Lira perguntou ao animal, ambos se encarando enquanto ela tirava o que estava em suas costas. Era um rolo de papel, pequeno como a palma de sua mão, mas suficientemente grande para conter uma mensagem. 

Boa viagem, minha filha.

Leu aquele recado com emoção, enquanto os outros olhavam para ela com curiosidade. Não sabia ao certo o que fazer naquele momento, então apenas pegou Plumo pelas asas e o devolveu aos céus. Tinha um sorriso no rosto quando voltou para a trupe. 

— Este era o Plumo. — Disse, antes de voltar a contar como eram os treinos de Philip. Adorava ver as reações dos presentes e notava agora que seu mestre era alguém que não pegava leve. 

Em algum momento ela deixou de contar apenas sobre seus treinos com Philip, e apenas começou a conversar de maneira leve, onde todos estavam animados e ansiosos para contar suas histórias. Lira era excelente em manter a conversa fluindo, então houve poucos momentos de silêncio. Ainda assim, notou que Junior raramente falava. Ele olhava ao redor, ria e participava de maneira passiva, mas nunca adicionava sobre sua própria vida a roda. Talvez seja reservado. Lira pensava, e respeitava isso. Sabia melhor que ninguém o poder que histórias tinham e contá-las é admiti-las para o mundo. Como jogar seus filhos mais preciosos do ninho, para notar que nem todos estavam ainda prontos para voar. 

Melissa também era assim, mas ela ainda participava de alguns relatos dos gêmeos como se estivesse estado lá, mas Lira notava sua inquietude. 

Já era final de tarde e o sol começava a esconder sua luz. O responsável pela caravana gritou na distância que logo fariam uma parada em uma cidade próxima e todos pareciam ansiosos por isso. Faria horas que estavam sentados, e até Lira ansiava por esticar um pouco as pernas, ainda que tivesse pontadas de dor pelo corpo todo quando se movia. 

As conversas aos poucos se cessaram, enquanto o vilarejo se aproximava. Era um polo de ferro e de ferreiros, segundo Júnior, do tipo que faz as linhas férreas e ferraduras, e não dos que afiam espadas e produzem munições. Era um lugar pequeno, mas suficientemente grande para alimentar todo o mutirão de soldados que ali chegava. 

Uma pousada na cidade era responsável por isso. Uma que devia favores aos rei e constantemente dava suporte, auxílio e moradia para soldados que ali passavam para pagar por esses tais favores. 

O sol já não raiava, e todos da caravana agora se alojaram nesta pousada para jantar. Não havia camas para todos, mas todos receberam uma mesa para comer e o calor de uma lareira. O lugar era abafado pelo amontoado de jovens e adultos, todos entulhados e se empurrando ali. Lira sentia o suor escorrer por suas feridas, com uma dor aguda se espalhando pelo seu corpo. 

Mesmo assim, queria jantar junto dos outros. Gostava da presença deles e das conversas que tinham a distraia dos problemas que haviam se passado. 

— A sopa tá rançosa… — Nephew reclamou, e seu irmão concordou, ambos mastigando a tal da sopa e fazendo caretas, como se comessem um pedaço de borracha. 

— Agradeçam que tá ao menos quente. — Junior comentou, tomando a mesma sopa com indiferença. — Eles poderiam dar só um pão velho, e vocês teriam de aguentar mais seis horas até a próxima cidade assim. 

— Uma sopa também não satisfaz tanto assim. 

— Mas já faz melhor o serviço que um pão com mais manchas verdes que a  sua roupa. Inclusive, quando foi a última vez que limpou seu uniforme? 

— Será que tem algo para fazer nesta cidade a essa hora? — Nephew gritou, tentando tirar a atenção de seu uniforme sujo. — Talvez tenha um bar. 

— Ou um bordel — Mathew disse em sequência. 

— Ou um bar com um bordel!

— Qualquer coisa é melhor que isso!

— Qualquer coisa, ou um bordel é melhor? — Lira ironizou, colocando o resto de sopa quente na boca, forçando um sorriso no rosto. Talvez finalmente tenha achado alguém menos capaz na cozinha que seu mestre. Aquela sopa tinha batatas tão duras que pareciam ter sido tiradas da terra e postas logo em sequência na sopa. O caldo era tão salgado e rançoso que para digeri-lo era necessário misturar a saliva que tinha na boca, e a carne… tinha medo de pensar da onde ela podia vir. 

— Eles querem beber, Lira. — Melissa comentou. Era a única da mesa que não possuía um prato de sopa na sua frente. Lira em momento algum viu ela comer algo, e aquela altura já estranhava isso. — Ouvi dizer que vão distribuir cervejas após o jantar, rapazes. 

— Mas é preta?

— E vem num barril e num balde?

— Chega vocês! — Junior alertou, agora terminando a própria sopa também. — A cerveja poderia vir servida numa bexiga de cavalo, que vocês ainda a beberiam com gosto. Esta hospedaria está aceitando mais de setenta homens e mulheres, os alimentando e dando cama quente a vocês, cadetes. Não aos de maior posição. Sejam gratos, e não reclamem. 

— Ele sempre é barulhento, não é mesmo rapazes? — Disse de repente uma voz, vindo de trás de Lira. Ela não a reconhecia, e decidiu se virar. 

Viu por cima do ombro a figura de um homem de cabelos grisalhos e com certa falta de cabelo na parte superior da cabeça. Tinha um enorme e simpático sorriso amarelado e os olhos eram de um surpreendente azul. Talvez quando mais jovem ele fosse mais atraente e musculoso, talvez seu cabelo fosse mais cheio e os dentes mais brancos… Espere um instante, tenho a sensação que já o vi antes. 

Enquanto pensava isso, o tal homem de sorriso amarelado conversava com todos os presentes da mesa olhava para cada um deles por um longo instante, e quando seus olhos repousaram em Lira, seu olhar brilhou e seu queixo caiu. O surpreendente azul ficou tão pálido quanto seu rosto.

— Lira… é você? — Ele hesitou, e seus joelhos falharam, como se diante dele não estivesse uma mulher ruiva e com várias faixas espalhadas pelo corpo, mas sim um cadáver que caminhava e respirava. — Você está viva?



Comentários