Volume 2
Capítulo 28: Mente perturbada
Uma perturbadora imagem se formava diante de Arnok, conforme o rosto de Maike ganhava cada vez mais foco. Na luz difusa e amena daquele momento, aquele homem de cabelo castanho era uma visão que provocava seu âmago e regurgitava suas entranhas.
Sentiu minha falta, peninha?
A frase simples, cheia de uma arrogância zombeteira, acompanhada do típico apelido. Nada conseguia dizer, ou fazer. Seu corpo estava travado, como uma roda velha e cheia de poeira. Nada funcionava em seu cerne e o turbilhão de pensamentos em sua mente criava esse labirinto, como se as paredes de seu quarto se tornassem pontiagudas e o pé direito crescesse ao infinito, como um céu bege e opaco.
Vejo que não mudou nada.
Olhar profundo, cheio de escárnio. Um nojo tão grande em sua voz, quanto em sua postura egocêntrica. Mesmo agachado diante de Arnok, ele parecia vê-lo de cima, como um ser inferior. Algo menor que um inseto. Menor que o ínfimo fio de cabelo em seu braço. Uma pluma, tão leve e frágil quanto o próprio vento.
Parece até mais fraco… sequer levanta a própria voz.
Ele se aproximou ainda mais, rosto a rosto. Tão perto que poderia sentir sua respiração se ele de fato estivesse ali. É de se imaginar que perceber que um homem egocêntrico e perigoso como aquele não era nada além de uma ilusão, poderia acalmar Arnok, mas não, era o contrário na verdade. Apreensivo, notava o quão sozinho estava naquele cômodo, mesmo com Maike diante dele. Solitário, tinha de enfrentar aquela coisa. Também tinha a certeza que não podia vencer.
Tão fraco… Tão sem voz… O que fez com si mesmo meu garoto?
Ele fingia uma voz de preocupação, era como se o escárnio nunca abandonasse seu cerne. No fundo, Maike era assim. Ou assim Arnok o imaginou com a pouca experiência que teve com aquele homem. Fazia dois anos que Maike não aparecia para o Asa Negra, e seu repentino desaparecimento um ano após os ocorridos na cidade neutra eram, em suas próprias palavras, bom demais para ser duradouro. E ali estava ele, o homem de rosto queimado e de vestes negras.
Estragou sua amizade, foi?
Ele ainda era capaz de enxergar no fundo de sua mente, como uma pulga inconsciente do mal que causa a um animal inocente. Um verme de cadáver, que devora os olhos do morto sem perceber todo o terror e maldades que eles já viram.
— Cala a boca…
Finalmente conseguiu se forçar a dizer, num sussurro tão baixo e inconsciente que poderia ser comparado a um assobio acidental.
Como disse? Não pude te ouvir, peninha.
Não ousou a se repetir, apenas pensou, com a raiva e o medo se misturando em sua mente. Maike sorriu com o desespero do rapaz, e se sentou ao seu lado na cama. Nada disse por um momento, mas o sons que produzia com a boca sempre fazia Arnok saltar e se inquietar por dentro. Queria acender o fogo em seu âmago, incendiar aquela ilusão, mas sabia que ele não estava ali. Ainda assim, as faíscas eram inevitáveis.
Tem de controlar melhor essas suas mãos, peninha…
As mãos de Arnok dormiram, como se as palavras daquele homem tivessem um efeito anabolizante e perigoso. Queria movê-las, saltar daquela cama e correr dali, mas nada mais funcionava direito.
Você não quer que a última Asa Negra seja uma prostituta impura, não é?
Raiva. Ódio puro e pleno ascendeu do íntimo de Arnok. Era um sentimento guardado, que não ousava tocar a anos desde do desaparecimento de Maike, mas ali estava ele. Chamas tão quentes e incontroláveis que o mero fato de existirem causava terror a quem as visse. Negras como carvão e azuis como o mais profundo e misterioso oceano. Indomáveis e selvagens. Poderosas como um tiro de canhão dado para cima e imprevisíveis como a força da gravidade sobre esse disparo.
No mesmo instante em que isso acontecia, a pele de Arnok queimava, como couro de porco em óleo quente. Se levantou, não pela dor, mas por seus olhos estarem cegados pela imagem daquele homem. Queria tocá-lo no rosto, da mesma forma que havia feito há três anos. Transformá-lo no mais puro osso carbonizado. Mas não podia, e Maike sabia disso. Seu sorriso, de dentes brancos como porcelana barata, despejavam uma glória ácida sobre a tenra paciência do asa negra.
O que vai fazer? Vai me queimar como queimou a três anos?
Ele se levantou e a passos lentos se aproximava de Arnok. Encarava-o de cima, mesmo que Arnok agora fosse mais alto que Maike e seus olhos ardessem como ferro em brasa. Uma disputa de poder, entre um demônio e um homem que deveria estar morto para todos.
Vai me bater e me quebrar como bateu em todos naquela arena? Me matar por dinheiro? Você nada tem de diferente daquela meia-asa-negra na casa dos prazeres. Vende seu corpo em troca de dinheiro. Luta e mata, com um sorriso no rosto. Pois ama essa glória, não é? Ama esse reconhecimento. Asa Negra de ego fraco precisa de um humano para lhe dizer o que fazer. Precisa desafiar o homem que salvou sua vida, mais de uma vez. Jogar seu presente fora, pois não aceita a vergonha de ser um discípulo que desobedece o próprio mestre, que o desrespeita. Demônio fraco, não merece estar aqui.
A voz de Maike já não parecia vir mais dele, mas sim de todo o cômodo. O mundo gritava essas coisas para o Asa Negra, e não mais aquele fantasma diante dele. Nem mesmo a própria mente de Arnok estava em paz, com tudo isto sendo dito em eco dentro de sua cabeça.
Não merece estar vivo. Assassino de inválidos, mata por diversão. Se suja de terra e sangue, de suor e de porrada, COMO UMA PUTA!
Já não aguentava mais. Fugiu dali, sem que suas mãos se apagassem. As queimaduras pioravam, mas nada seria tão ruim quanto ouvir mais uma palavra daquele homem. Mas mesmo sem vê-lo, mesmo sem estar sequer mais em seu quarto, o eco ainda reverberava em sua mente.
Acreditava em cada uma daquelas palavras. Em seu cerne sabia de sua veracidade, de sua pontada de verdade.
Quando as pessoas começaram a encará-lo na rua, sabia que parte do que Maike dizia era verdade. Quando as chamas em seu braço se tornaram dolorosamente pesadas e reais, sabia de seu descontrole e de suas fraquezas. Quando o fogo se dissipou e as queimaduras em seu braço se revelaram, estava apenas sendo lembrado da dor que causou.
Pisava com força enquanto caminhava na rua. Queria apenas sair dali, de perto de seu dormitório, de Maike, de suas dolorosas verdades, mas ele ainda estava ali, à espreita. Essa situação toda parecia diferente desta vez. Maike era um fantasma oportuno, rasteiro. Surgia para importuná-lo e o soterrar ainda mais no fundo do poço. Agora, no entanto, sabia que ele estava ali.
Nas esquinas, nos telhados, escondidos na multidão, no fundo de sua cabeça. Ele estava ali, o observando. O julgando. Encarando-o como um inseto. Maike não desapareceu desta vez.
Ainda o sentia ali quando chegou à cidade baixa. Caminhava em direção a casa de apostas de Serra, já que havia sido convocado por ele.
Seu mestre também o chamou, não chamou?
Não havia tempo para isso, agora tinha de ir até Serra. Ele era mais importante no momento.
Porque um humano violento é mais importante que o mestre que salvou sua vida? Mais de uma vez inclusive!
Tinha de lutar, era sua responsabilidade.
Também era sua responsabilidade ser um bom discípulo. Você se lembra da tradição? Das regras não ditas? Da lealdade? Ou desaprendeu tudo quando matou pela primeira vez?
Tinha de ir para lá…
Não. Não tinha. Apenas quer ter a glória de matar alguém mais fraco que você. Não faz isso pelo dinheiro. Não faz isso pra se tornar mais forte. Já é mais forte que qualquer um que põem os pés naquela arena. Faz isso pelos gritos de delírio. Pelos olhares indignados de quem apostou no homem que lutava contra você. Homem ou mulher, não é mesmo? Você não tem discriminação de gênero, mata por prazer. Uma puta viciada você é. Em dor, em humilhar e matar. Pior que os humanos que mataram sua família, pior que o Cavaleiro Rubro que leu nos livros de história. Nada além de um monstro. O diabo encarnado.
Arnok hesitou antes de abrir a porta da casa de apostas. Quanto daquilo era verdade? Realmente verdade? Ele já não precisava ser treinado pelos lutadores desse lugar. Não precisava do dinheiro, ganhava pela academia e sempre pôde contar com Hiotum. Porque lutava? Qual era a razão de ter quebrado, ferido, matado tantos nos últimos anos? Talvez fosse de fato nada além de um monstro.
Agarrou a maçaneta e entrou naquele ambiente, já se culpando pela noite que estava por vir.