Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

Revisão: Hide


Volume 2

Capítulo 27: Nostalgia

A luz da manhã já se mostrava a horas naquele momento, e a movimentação da cidade crescia a cada minuto. Era o último dia da caravana de treinamento militar naquela pequena cidade do interior, e todos se preparavam para colocar seus filhos recém recrutados. 

Homens carregavam caixotes cheios de mantimentos e equipamentos recém consertados. Um momento barulhento, agitado e feliz, e Lira não podia evitar se sentir assim também. Abria um sorriso de canto, mesmo que em seu cerne existisse este sentimento amargo. Mal havia posto os pés no grupo de caravanas e já olhava com nostalgia para os prédios e pessoas ao redor. 

Conhecia muitos ali presentes, pois seu nome rodou as redondezas com facilidade após o incidente com Vitra e seu guarda-costas três anos antes, se assustava ao pensar que já não via aquela Papilo há todo este tempo. 

Boatos de cidade pequena fizeram crescer a popularidade de Lira por toda a cidade, ficando conhecida como a discípula de Philip, “Nova-Rubra”, e sendo desafiada várias vezes. Nunca perdeu, mas eles também nunca deixaram de tentar. Hoje não foram exceção, mesmo com toda a correria para a partida. 

Vários jovens da cidade, garotos que ela conhecia e conversava, se juntavam ao seu redor para desafiá-la uma última vez, mas não havia tempo. Já podia ver Junior a distância chamando por ela. Atravessou os rapazes, dando a eles sorrisos calorosos e despedidas breves. Nos breves esbarrões com a multidão, no entanto, sentiu todas as faixas em seu corpo puxarem suas feridas. Não estava completamente curada, nem de longe. 

Na verdade, seu braço, mesmo não estando exposto, ardia como se uma fonte de água fervente jorrasse sobre. Lutava para manter a compostura e o sorriso. Ainda que seu estado não fosse dos melhores, sentiu-se leve quando encontrou com o rosto conhecido de Junior e Melissa. 

Eles estavam acompanhados de outros dois rapazes, extremamente semelhantes. Ambos altivos e bem mais energéticos que Júnior, seus sorrisos brancos se destacavam na pele negra. Quando Lira se aproximou, eles dois saltaram de surpresa.

— É ela? — Exclamou um dos dois rapazes. Eles eram extremamente parecidos, até em suas personalidades, aparentemente. A maior, e talvez única, diferença entre ambos era uma cicatriz que cobria todo o rosto do que havia exclamado para Júnior. — É realmente ela, meu senhor?

— Sim, é ela. 

Os gêmeos se encararam e então gritaram de emoção. Correram até Lira, e apertaram sua mão ferida com tanta força que todo o esforço necessário para não gritar fosse talvez suficiente para derrubar Philip em um dia bom. Mas seu rosto se fechou em uma carranca dolorosa e ambos se afastaram, enquanto Melissa se aproximou. 

Enquanto um rápido tratamento era feito, os gêmeos olharam com culpa para Lira, mas principalmente, olharam também com curiosidade. Melissa manteve seu foco no braço de sua paciente, no entanto, jorrando uma luz esverdeada e poderosa. 

Mais uma vez Lira se lembrava de Merlin ao receber uma magia como aquela, e não podia evitar se preocupar que Melissa se esforçasse demais, mas não, o sorriso de esforço nunca saiu do rosto daquela jovem anormalmente branca e de cabelos loiros. Estando próxima daquela maneira, a discípula de Philip era agora capaz de notar a aparência fraca e decadente que Melissa tinha em seus pormenores. As orelhas enrrugadas e chatas para dentro da cabeça, os ombros como se fossem mais largos do que deveriam e as costas, que pouco se expunham, mas era capaz de ver uma pequena mancha negra pouco antes dela se levantar. 

— Agora sim. — Ela disse, olhando diretamente para Lira. — Agora não vai sentir dor tão cedo. 

De fato, o local parecia menos dolorido e Lira encarava as próprias faixas e percebia o quão poderosa era a magia de Melissa. Poucos eram os curandeiros que conseguiam tratar ferimentos sobre pedaços de tecido ou de esparadrapo, isto diminuía em muitas vezes a eficiência de qualquer magia. Ainda assim, ela nem havia feito o esforço de mexer nos esparadrapos e agora os apertava para garantir que ficariam no lugar. Mais uma vez Lira se surpreendia por não sentir dor alguma, mesmo com a sua ferida sendo pressionada com tanta força.

Recuperada, todos encaravam-na ao invés de olhar para Melissa. Aquilo aparentava ser uma ocorrência comum e tranquila. 

— Acho que vocês deveriam começar com apresentações, não é? — Júnior disse, olhando para os dois rapazes ao lado dele.

— É mesmo não é? — O de cicatriz disse. — Peço perdão por antes, sou Matthew. E meu irmão aqui se chama Nephew. 

— É um prazer!

— Nephew? — Lira perguntou, curiosa e tentando ignorar a movimentação que se formava nas carroças. Logo partiriam, e não queria ficar ainda mais ansiosa.

— Nossos pais não eram os melhores em dar nomes. — Disse Nephew, colocando a mão sobre o ombro do irmão. — Se lembra daquele cachorro que a gente teve?

— O Preto? Claro que lembro!

— Deixa eu adivinhar, ele era preto? — Lira perguntou, levantando um pequeno sorriso no canto da boca. 

— Era cinza, na verdade. — Matthew disse e os ambos os gêmeos se desataram a rir. — E tenho quase certeza que ele era branco, mas a gente nunca deu um banho nele. 

— Não mesmo, sequer parava em casa o animal. 

— Mas por quê Preto? — Lira perguntou, agora acompanhando os gêmeos nos risos e nos sorrisos. Sequer notou quando o encarregado das caravanas gritou que estavam de partida.

— Nem a gente sabe!

— Acho que fizeram pela piada, um cachorro branco chamado preto!  

— Vocês dois vão acabar com a paciência dela com essas histórias! — Júnior comentou, pegando ambos os gêmeos pelos braços. — Estamos de partida, arrumem suas coisas. 

Ambos disseram em uníssono "sim, senhor!" e se afastaram dali. Enquanto Júnior os observava, Lira encarava intrigada com aquilo tudo. 

— Qual a posição do Júnior? — Lira perguntou para Melissa, em um tom baixo, para que só ela pudesse ouvir. 

— No exército?

— Sim! Para aqueles dois o chamarem de senhor…

— É só uma graça que eles fazem com Júnior. — Melissa comentou, aparentemente agitada. — Não precisa se preocupar. Mas vamos até as carroças, chegou nossa hora. 

E ambas caminharam, em direção às carroças de transporte, que rapidamente se enchiam de homens e mulheres, jovens moças e rapazes, todos uniformizados, ou a receber seus uniformes de cadetes. Uniforme este que Lira recebeu também de Philip, uma antiga vestimenta de sua época que ele esperava ainda ser usada nos dias de hoje. 

Mesmo que não fosse, Lira usaria aquela farda com um pesaroso sorriso no rosto. Adorava pensar que vestiria a mesma vestimenta que Philip usou em sua época de cadete, mas sabia que o peso daquela farda era tão grande quanto do volume em suas costas, quanto do fardo que recebeu de seu mestre. 

Fardo que carregaria, até o fim de seus dias. Mas o momento não pedia isso. No momento, ela apenas se importava com as memórias que criou com aquela cidade, com aquelas pessoas. 

Se sentia abatida ao encarar a paisagem das casas e prédios baixos, e das várias vezes que Lira havia caminhado e corrido sobre seus telhados. Adorava aquela cidade a noite e seu movimento matutino. Amava acompanhar Philip quando ele partia para vender os produtos que a fazenda gerava. Tantas memórias, de tantos dias, agora pareciam palpáveis de tão preciosas. 

— Já está sentindo saudades? — Júnior perguntou quando ele e Lira ficaram a sós por um momento. A carroça já estava em movimento, e prestes a deixar a cidade. A partida nunca pareceu tão real quanto naquele momento.

— Acho que sim… estranho não?

— Nah… não é. — Disse, não olhando diretamente para Lira. Na verdade, encarava aquela cidade exatamente como ela, de um jeito nostálgico e abatido, como se tivesse passado uma vida inteira ali, criando laços. Construindo relações. — Os gêmeos passaram pelo mesmo quando foram convocados… Melissa passou pelo mesmo. — Hesitou ao dizer isto, e o fez de maneira taciturna e trágica. — E cada um dos cadetes aqui passará pelo mesmo. A academia não é um lugar fácil, e a saudade vem como um antigo vício, ou um amor que se distanciou e que renasce. Muitos entram para o exército querendo fugir de suas famílias, ou por obrigação das mesmas. Entram para o exército odiando ou sentindo ainda mais falta de seus pais e irmãos. Mas essa dualidade sempre cai por terra. Sempre a saudade vem, pois o nosso lar não é só essas casinhas que vemos… — Ele diz, apontando para a última casa na entrada daquela pequena cidade. A caravana partia. — São as pessoas, e as memórias que criamos com elas. Os sentimentos, as sensações. Somos, neste momento, sete dezenas de homens e mulheres, jovens e adultos, e entre todos eles eu sou uma pessoa única para você. Sabe por quê? 

Isso parecia uma pergunta sem respostas definitivas. Do tipo que Philip faria quando mais queria entender o que Lira sentia quanto a algo, a de fato tirar suas dúvidas nesse algo. E Lira quis dizer o óbvio, o fato dele e de Melissa terem salvado sua vida, mas foi como que num estalar de dedos, a presença de Júnior mudou. Seus ombros se tornaram mais largos, seu porte, como se estivesse mais altivo e confiante. Uma postura chamativa, e bela.

— Seus olhos? — Lira disse brincando, ainda que no fundo não soubesse se de fato brincava. 

— Isso também, e tudo que sabe sobre mim e tudo que fiz por você. As memórias que tem comigo me tornam único nesta caravana, ainda que tenham sido breves e poucas. 

Ele voltou a olhar para a paisagem ao redor deles, para os campos ao leste e a floresta a oeste e enquanto o sol iluminava o topo de sua cabeça, Lira se perguntava se aquela era a única razão de ele ser tão único para ela.



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