Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

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Volume 2

Capítulo 25: Despedida

Era o começo de um novo dia, mas o sol ainda estava escondido pela neblina da manhã. Não era exatamente um bom clima para o temperamento de quem estava ali, na fazenda de Philip. 

O som alto de terra sendo escavada soava por toda a extensão da fazenda, alto e rítmico como um tambor. Não muito distante da casa onde morava, Philip e Júnior trabalhavam, escavando uma vala para o enorme volume não muito distante dali. Era o cadáver de Merlin. 

— Não imaginei que uma viagem pro interior renderia a experiência de coveiro. — Júnior brincou, tentando suavizar o clima tenso e nebuloso sobre eles. 

Não suavizou. Apenas fez o silêncio que veio em seguida render como um vinho aberto e que amargou. 

— Me desculpe…

— Não há necessidade de perdão. — Philip respondeu de maneira fria, soterrando a pá na terra de uma maneira quase mecânica. Tinha uma expressão entre o cansaço e a indiferença, que tornava tudo muito pior.

— Talvez se eu tivesse vindo antes…

— Ela ainda estaria de cama. — Quando encarou Júnior ao dizer isso, finalmente apresentava alguma expressão. — Inerte e semi morta, incapaz de qualquer coisa. Já faziam três anos que estava sobre sono manático, finalmente tem um pouco de paz. 

Ambos encararam o cadáver coberto, como se não concordassem com aquilo. Mesmo que Merlin estivesse semi-morta, não era um corpo sem vida como é agora. 

— Mas morrer desta forma… — Foi o que Júnior conseguiu dizer, mas aquilo não representava nem metade de suas apreensões. 

— Nunca escolhemos como vamos morrer, Júnior… — Philip disse, voltando a cavar a cova de sua falecida esposa. — Apenas sabemos que vamos, com toda certeza, morrer. 

— Mas não precisava ser assim.

— Precisava, Júnior! Isto é uma gota de sofrimento comparado ao que eu já fiz, e ao que Merlin assistiu para que acontecesse. Éramos ambos vilões nesta história. 

Suas palavras, marcadas pelo som forte da terra sendo remexida por sua ferramenta, eram de um fervor culposo, como um criminoso que admitia um crime que se arrependeu de cometer. Um crime talvez evitável.

Seguiram ambos em silêncio, trabalhando com suas pás enferrujadas enquanto aos poucos os 3 pés de profundidade naquele buraco se tornavam 4, e então 5. A aquela altura a luz do sol já deveria estar aparecendo por entre a copa das árvores, mas a neblina daquela manhã parecia anormalmente densa. 

Seria uma escura e deprimente manhã. 

— E Lira? — Júnior perguntou, quebrando o silêncio. Ele parecia inquieto em se manter calado num tempo como aquele, o tempo todo parando de trabalhar e olhando ao seu redor, então para o cadáver que estava prestes a enterrar, e então para Philip, com suas expressões indecifráveis e que gritavam significados demais. Sua ansiedade tinha certo fundamento. — Como ela está sobre… tudo isto?

— Eu não sei.

— Ela não disse nada?

— Não… 

— Mas, ela não pareceu diferente? 

— Pareceu calada. 

As respostas curtas, ainda que parecessem grosseiras, Philip não soava desta forma. De novo, o fato de seu rosto não ter expressão alguma em um momento como aquele, era mais assustador para Júnior do que se toda a raiva e apreensão de Philip estivesse exposta. Mas Júnior ainda tinha uma pergunta. Uma curiosa pergunta que um antigo conhecido o instigava a fazer a muito tempo. Queria saber o motivo de Philip ter aceitado uma discípula, coisa que ele não havia feito mesmo em seus anos de ouro no exército. Por quê agora e não antes? 

Ele nada respondeu inicialmente, mas aquelas palavras o afetaram ao ponto de ter parado de cavar e suspirar. Parecia verdadeiramente pensar em uma resposta para aquilo, talvez até mesmo por razões pessoais que iam muito além de Lira. Philip levantou sua cabeça e encarou o jovem e fez uma pergunta que o pegou de surpresa. 

— Sabe sobre a Batalha da Poeira?

— Sim… — Começou a dizer, curioso para onde aquilo estava indo. — Usamos de exemplo para uma centena de problemas que enfrentamos em grupo. Coisas de logística, falta de poder bélico. 

— Se tivéssemos perdido aquela batalha apenas por isso, talvez vocês não precisassem estudá-la. 

Era apenas uma mera frase, um fato dito por um veterano de guerra. Mas aquilo atiçou uma brasa antiga em Júnior. Ele conhecia a Batalha da Poeira por coisas muito além das aulas e dos treinamentos na academia. Conhecia-a por algo muito mais pessoal. 

— Tem haver com o Hiotum? — Perguntou, lembrando-se de imediato que não deveria saber sobre aquilo. 

— Se sabe sobre o Hiotum, sabe o que aquela luta significou. 

— Sei o que significou para o meu pai… — Retrucou, como se arrependesse daquilo. — Mas para você e Merlin, parece ter feito o contrário.

— Eu sei.

— Meu pai se tornou raivoso depois daquilo, queria uma revolução e depor meu avô para conseguir o governo!

— Eu sei.

— Queria lutar nas linhas de frente usando a coroa como um amuleto. Queria poder!

— Eu sei.

— Se sabe, então por quê foi tão diferente com vocês dois? Meu pai queria guerrear, e você abandonou a guerra!

Recebeu o silêncio como resposta. Philip ainda olhava para ele, impassível e arfando continuamente. O suor que escorria por seu rosto já ressacava e fazia a terra se prender em seu rosto. Vendo-o com tantos detalhes agora, não se limitando ao que havia ouvido ou lido na academia sobre o Cavaleiro Rubro, o homem diante parecia apenas um senhor de idade. Um homem cansado e que havia acabado de perder a esposa. 

Era um choque de realidade imenso. O lendário soldado que sozinho valia dezenas de esquadrões. Que matou mais demônios com uma espada, do que uma centena de magos em serviço. 

Sem um pingo de magia em seu arsenal, aquele homem diante dele enfrentou um Ancião. Enfrentou o demônio da tempestade de frente, em pé de igualdade. O que diabos aconteceu naquela luta que fez ele largar tudo?

— Aquela luta aconteceu, Júnior. — Philip respondeu, finalmente demonstrando alguma emoção. Uma raiva crônica e profunda, amarga e densa. O olhar que Philip mantinha em seu rosto, parecia tão afiado quanto o fio de uma lâmina, tão pesado quanto o golpe de um martelo feito de chumbo. Aquela visão era o vulto do "diabo que assolava demônios", uma leve silhueta do que um dia foi o Cavaleiro Rubro. — Em cada um de nós, aquela batalha nos impregnou com sua poeira. Nos transformou. Aquela luta fez seu pai odiar demônios ainda mais que a guerra. Fez o Deviam repudiar Asas Negras como se fossem uma doença. Transformou Merlin na conhecida curandeira que é hoje, custando a ela, ironicamente, sua capacidade de cuidar dos outros… 

— E o que ela fez a você? — Perguntou, temendo pela resposta quando Philip hesitou em dizer algo num primeiro momento. 

— Fez com que eu abrisse os olhos e tirasse o sangue do meu rosto. Foi isto que ela fez… — Ele agarrou com força o cabo na pá, golpeando a terra, não para cava-la, mas para trucidá-la. — Fez eu com que encarasse cada gota de sangue que eu derramei, e cada vida que eu transformei com minha espada. Transformou minha glória em fardo e me sufocou naquela poeira sangrenta. 

Eram palavras sinceras, que queimavam ao saírem de sua garganta, impregnadas de amargura e culpa. Foi então que Júnior entendeu. O Cavaleiro Rubro foi soterrado pelo sangue e pela poeira daquela batalha, foi sufocado por todos os cadáveres que existiam por sua causa. Ali, diante dele, restava Philip. Um homem com habilidades impressionantes que não se orgulhava. Com um passado que temia tanto quanto o repudiava. 

Então, como compensar por tudo isso? Como se sentir melhor com tudo isto?

— Você aceitou um discípulo para corrigir o que você fez? — Disse, recebendo um olhar longo e inquisitivo de Philip. 

A aquela pergunta não respondeu de imediato, nem pensou numa resposta para ela no primeiro momento. O que fez em primeiro instante foi pensar em Lira e em tudo que aconteceu. Não na noite anterior, não na semana passada, mas desde o princípio. Desde o primeiro dia daquela pequena garota naquela fazenda. 

Olhou para cima, encarando a janela aberta onde era o quarto de sua discípula, e se pegou pensando que não mais a via desta maneira. Que não mais enxergava Lira como uma compensação pelo que fez. 

— Não mais… 

Notou ao longe um vulto negro se aproximando da janela, e viu Plumo adentrar o cômodo. Como um estalo em sua cabeça, resolveu voltar a trabalhar na cova e Júnior fez o mesmo. 

Enquanto isso, por aquela mesma janela por onde o corvo de asas dúplices havia entrado, Plumo observava sua humana. 

Quem o visse ali, parado em seu poleiro próximo a janela e virando a cabeça a cada mini resmungo de Lira, poderia achar que ele estava preocupado com ele. Talvez estivesse de fato, mas em todos aqueles anos com ela e com Philip, nunca disse uma única palavra.

— Coisa rara para um corvo desses… — Disse um dos poucos cuidadores da cidade que entendia de pássaros. Plumo já estava a mais de um ano na fazenda, a rodeando como um guardião sem teto, e nada havia dito. 

Mas muito aquele pássaro fazia por eles. Por várias vezes Plumo havia encontrado ovelhas desaparecidas e outros animais que haviam se ferido próximos às cercas. Uma ajuda bem vinda, e amigável. No entanto, nada aquele corvo podia fazer por Lira naquele momento. 

A garota estava sentada à beira da cama, com seus olhos indo e voltando entre os vários objetos de seu quarto. 

Meu quarto… Se pegou pensando. 

Pouco mais de três anos atrás e aquele não seria seu quarto. Pelo contrário, seria um cômodo qualquer na casa de um desconhecido. Mas Philip não era mais um estranho, nem aquela casa. 

Conhecia cada canto dela, cada lugar que acumulava poeira quando ela e Philip ficavam distantes por alguns dias. Se lembrava de cor e salteado quais eram as madeiras soltas do piso, então era capaz de sair em silêncio da casa e voltar sem Philip sequer perceber.

Mas o homem percebia, como um gavião protegendo seu ninho. Instintos tão apurados e certeiros que era estranho pensar nele como um humano às vezes.

Ele é humano…

 Nunca havia visto seu mestre tão ferido como no dia anterior, ou tão abalado. Conhecia cada parte daquela casa, mas não tão bem quanto Philip. Ele podia sentir falta da lasca de sujeira que grudou na mesa num dia de regalias dele e de Merlin, coisa que já não faziam há anos. E agora nunca mais poderão.

Encarava com nostalgia, sim, mas com remorso também. Sentia-se culpada por estar ali, naquele momento. Aquilo tudo não teria acontecido se sequer estivesse ali, se sequer tivesse sobrevivido aquela noite. Mas sobreviveu, e agora tinha de arcar com aquilo. 

Se levantou da cama, e agarrou dois volumes, enrolados em panos e que levaria consigo naquela longa viagem, além de uma enorme bolsa de couro com seus fiéis e mais usados utensílios. Os volumes eram um menor que o outro. 

Um deles era um objeto de confiança, o revólver que Lira tantas vezes havia usado em conjunto de sua faca de osso, forjada e amolada por ela. Para estes, olhava com carinho e significado. Muitas de suas conquistas dos últimos anos foram graças a esses dois. 

O último pacote era sua mais recente aquisição, e talvez o maior fardo que já carregou na vida. Não teve coragem de abrir a caixa onde o Florete estava guardado, apenas enrolou-o em panos velhos e o deixou junto de seus outros itens. Era difícil olhar diretamente para ele e não se lembrar do que Philip havia dito ontem, e de tudo que aconteceu. Tê-lo em mãos daquela forma tornava tudo tão real quanto a enorme cicatriz em seu braço.

Colocou ambos por cima do ombro, como se fossem aljavas, e sobre esses, sua mochila. Quando se olhou no único espelho do seu quarto, um luxo que Philip não dava tanta importância quanto ele merecia, notou que parecia pronta. 

Vestia suas roupas de caça, pois nada melhor tinha naquele momento. Uma camisa velha e furada na manga, suja de terra e sangue, combinando com uma blusa de couro encardida e desbotada com o uso. Calças também de couro, com vários pedaços de tecidos em partes que já haviam se rasgado, como nos joelhos ou próximo a canela. Parecia forte naqueles trajes. Mais poderosa e determinada do que ontem. Mas não se sentia assim de verdade. 

Olhava com inveja para Plumo, que naquele momento recostou sua cabeça e cochilava. Parecia mais saudável se deitar na sua cama, para nunca mais acordar. 

O desejo não havia sumido, nem quando caminhou pela porta de seu quarto e saiu de lá. Ouviu os rangidos velhos e necrosados daquela casa, os mesmos que Philip se recusava a consertar por sequer saber onde deveria começar. 

Aqueles ruídos a seguiam, como as memórias que eles desenterraram. Foram apenas três anos, mas três longos anos passando dentro daquela casa, correndo por aqueles corredores nas manhãs em que Lira estava atrasada para o treino. Acordava praticamente todas as manhãs já sentindo um cheiro de queimado de uma das várias tentativas de Philip para preparar um café.

Se recordava com clareza do dia em que ele fez uma boa comida para eles dois. Era um dia especial, digno de comemorar. Fazia um ano que Lira estava ali e Philip fez tudo a seu alcance para cozinhar algo decente. Vários fracassos depois ele havia conseguido. Um prato decente, de sabor delicioso e no ponto certo. No entanto, suas várias tentativas estavam empilhadas numa quantidade tão assustadora sobre a pia que deixou a ambos sem ter o mínimo de vontade de cuidar das louças por uma semana após lavarem todos aqueles pratos, potes e talheres.

Ainda assim, valeu a pena. Cada instante naquela casa valeu a pena.

E agora, estava partindo. 

Estava na escada para o segundo andar, quando viu Melissa parada na passagem para a cozinha. Encarava Lira com um sorriso amistoso, parecendo disposta a conversar. 

— É sempre um desafio abandonar o próprio lar… — Ela disse, e Lira sorriu com o canto da boca. Odiava ter de concordar, pois isso tornaria aquela casa seu lar. Mas é isso que ela é,  não? — Vários cadetes desistem da academia na primeira semana. Vários deles são filhos de fazendeiros ou comerciantes de cidades, ou lugares distantes como esse. E não os julgo. A vida militar é um caminho árduo e sem volta. 

— Um caminho que preciso seguir. — Lira disse, com uma determinação que não parecia vir dela. — Não vai haver mais uma casa para eu voltar se eu não for. Tenho de partir. 

— E vou garantir que você chegue lá!

Ambas abriram um enorme sorriso, e um silêncio agradável entre elas duas veio em seguida. A casa agora que nenhuma delas se movia, tinha uma falta de ruídos mórbida. Não havia vida dentro daquela e nem mesmo a peste parecia desejar habitar aquele lugar. Mas Lira ouvia do lado de fora, o bater forte e rítmico de metal contra terra, as arfadas repetidas em série e a exclamação quando batiam contra uma pedra. Philip, barulhento como estava sendo, dava vida aquele lugar, assim como Júnior e Melissa. Eram as pessoas que tornavam aquele lugar importante, não a própria casa. 

Já criei um lar para mim de novo ao vir para esse lugar… Lira pensou. Posso fazer de novo. 

Foi com esse pensamento, que ambas seguiram para o lado de fora. Tiveram que caminhar pouco para chegar até Philip, e viram que seu trabalho estava praticamente terminado. Já não havia mais um cadáver acima da terra. 

— É isso. — Ele disse, arfando enquanto encarava para o recém preenchido buraco. Um olhar que pareceu durar uma eternidade. Um momento tão desolador e cinzento como aquele, foi preenchido apenas pelos suspiros de cada um dos presentes. 

Merlin agora finalmente repousava, verdadeiramente. Lira odiava pensar que a conhecia tão pouco pessoalmente, mas as histórias de Philip a tornavam tão real quanto os antigos relatos e contos de sua mãe. Uma mulher forte, que desejou o melhor até para o pior dos homens quando estava viva. Uma pacifista cujo maior arrependimento foi não ter sido capaz de salvar ainda mais pessoas. 

Mas ela salvou.

Lira estava de pé, encarando a recém posta, por Philip,  lápide de Merlin, um pedaço grande de rocha, ainda não entalhada. Ainda que estivesse vazia, parecia ter suficiente significado para dizer o que queria. A única que lhe soava adequada num momento como aquele, uma despedida tardia. 

Libereco.

A palavra que marcou aquele instante, como Philip marcaria aquela lápide daqui há alguns dias. Lira partiria, e os caminhos se separariam, mas não as pessoas. 

Mestre e discípula, pai e filha, amigos e companheiros. Laços inquebráveis que tinha com aquele homem, e que nunca se esqueceria mesmo em seus dias mais densos e penumbrosos.

Na tarde daquele mesmo dia, a discípula dava um último abraço em seu mestre e partia para a academia. Uma jornada que nunca, em seus piores pesadelos e melhores sonhos, poderia imaginar como seria. 



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