Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

Revisão: Hide


Volume 2

Capítulo 24: Raça de um homem só

Suas mãos estavam ocupadas, enquanto um fraco sol invadia suas acomodações. Encarou não a ele diretamente, mas sim para luz sendo refletida pelo líquido dentro do frasco de vidro. Olhava para aquilo com curiosidade e fascínio, mexendo devagar o vidro e a luz se deformando com seu movimento. 

Aquilo, naquele momento, era a coisa mais importante no mundo para ela. Aquela fraca luz vinha de uma externa superior. Algo semelhante a uma telha de vidro, mas extremamente mais larga e que podia ser aberta como uma janela. Seu quarto quando visto de cima ficava no meio de becos e prédios mais altos que suas acomodações. Ali, naquela hora e naquele lugar, era um dos poucos momentos onde o sol entrava em seu quarto. 

Era mais especial ainda pois estava sozinha, uma rara ocasião vivendo junta de duas outras companheiras de quarto e em um dormitório lotado de outras mulheres, que vêm e vão o tempo todo à procura de algo ou alguém. 

Um instante como aquele, tão especial e tão raro… não tinha como ficar melhor. 

E de fato, a qualquer um que chegue ao topo da montanha, o que sobra é a descida. 

Alguém bateu em sua porta, o que significava que nem suas colegas de quarto ou dormitório estavam ali. Elas não tinham a decência de bater antes de entrar. No susto, acabou derrubando um dos frascos e enquanto os arrumava o mais depressa possível, disse gritando em direção da porta:

— Não estou a serviço!

— Não somos clientes, Trisha! — Respondeu de trás da porta, uma voz que conhecia levemente. — É o Ilja, e trouxe alguém!

Ao ouvir esse nome, queria não ter passado tanto tempo encarando seus frascos de vidro e aproveitando a luz do sol. Se apressou para dizer para que esperasse, enquanto corria pelo quarto para limpá-lo o melhor que podia. Ou melhor, organizá-lo, pois pouca sujeira havia ali, no entanto vários eram os livros e peças de roupa suja largados por aí, a mercê da preguiça da mulher prestes a descer a montanha. 

Menos de um minuto depois, a bagunça foi escondida embaixo de sua cama. Arrumou o longo cabelo, e tratou de tirar a poeira que se acumulou em sua longa asa negra, que naquele momento estava tudo menos pronta para ser movida, com a maioria das juntas estalando, como uma coluna que a muito tempo estava numa posição ruim.

— Entra!

Muito se passava em sua cabeça agora que não precisava correr para arrumar o quarto. Por exemplo, o que Ilja estava fazendo ali? E ele disse que não estava sozinho. Quem era a pessoa que ele trouxe? 

A curiosidade e o desespero cresciam em seu peito conforme a porta se abria, temendo pelo melhor e pelo pior ao mesmo tempo. Primeiro viu o rosto de Ilja, agora ainda mais cheio de manchas brancas e menos escamas negras. Os anos não pareciam ter sido misericordiosos com ele, mas ainda assim, seu sorriso estava ali. O amigável e conhecido sorriso de um velho amigo. 

Conseguia apenas focar nele, lembrando de tempos mais simples e felizes, que talvez nem fossem tão bons assim em sua maioria. Os problemas na casa dos prazeres nunca sumiram, mas pequenos como eram, como podiam notar? 

O mundo eram aquelas paredes e os becos da cidade baixa, as pessoas eram Ilja, a senhora Derra e as outras, e ali, naquele nostálgico momento, tudo parecia assim. Ao ponto de sequer notar quando Arnok entrou.

Mas ele a notou. Impossível não notar. 

Enquanto velhos amigos se reencontravam, Arnok também revirava memórias antigas. Olhava para aquelas asas e o longo cabelo negro daquela mulher, e um vislumbre em sua mente o lembrava de sua mãe. Uma imagem alegre e cheia de vida, que role se transformava numa enorme cruz em chamas. 

Engolia em seco, tentando manter a palma das mãos seca. O nervosismo que sentia parecia diluído em medo e perda, algo que não sentia há muitos anos. Desde que ele deixou de importunar sua mente consciente. 

Apenas seu inconsciente tinha de se lembrar do que suas mãos haviam feito. 

Começou a descer os degraus, que rangiam ao menor peso, e se aproximou do par. Ilja abraçava a mulher com uma asa negra com uma vontade intensa, enquanto mantinha um sorriso tão largo e alegre que em outras ocasiões, seria comparado a algum tipo de viciado. 

Foi então que finalmente os dois portadores de asas naquele cômodo se encararam. A clara surpresa no rosto dela ao ser trazida de volta ao presente, e o torpor que Arnok estava passando em sua pequena e jovem mente, tornavam aqueles dois únicos no mundo. Ilja olhava para ambos, curioso com o que estava por vir. 

— Oi… — Ela disse, quebrando o silêncio com certo desconforto. 

— Oi… — Ele disse, respondendo ao desconforto dela com certa angústia ao se lembrar do que ambos tinham em suas costas.

— Querem que eu os apresente, ou vão ficar envergonhados aí? — Ilja retruca, invadindo o espaço entre os dois de uma forma leve e despretensiosa. Quando nenhum deles respondeu, apenas continuaram se encarando e evitando olhares ao mesmo tempo - isso pode soar ilógico, pois era exatamente isso. Ele continuou, colocando as mãos nos ombros de Arnok. — Este é Arnok, um amigo muito próximo e que eu estava ansioso que o conhecesse. Arnok, esta é Trisha. Uma velha amiga e que eu estava também ansioso que a conhecesse. 

Arnok tentava ignorar a asa, para seu próprio bem. Havia algo de estranho em ver uma Asa Negra de uma única asa. A imagem semelhante, mas ao mesmo tempo distante do que conhecia o incomodava, mas pensou que o pior havia acontecido com ela, como aconteceu com ele a tantos anos. Lembrar disso o machucava, então mais uma vez tentou focar no rosto de Trisha. Um rosto belo, com poucas sardas logo abaixo dos olhos. Seu nariz pequeno lhe dava um ar delicado, apesar do olhar forte que mantinha quando olhava para Arnok. 

Nada poderia reclamar de Trisha, que não a asa em suas costas. Aquela enorme e única asa, cujo o seu cabelo longo e negro rocava a todo momento. Uma imagem que estava guardada no fundo de sua mente…

— Seu cabelo me lembra a minha mãe… — Disse, pensando em voz alta. Ambos no quarto o olharam, desconcertados e confusos, e Arnok notou instantes depois o que havia dito, um rubor forte aparecendo em seu rosto como resultado da vergonha. — Digo… O cabelo longo passar na sua asa. Minha mãe sempre o manteve assim. 

Tentou encerrar o assunto ali, mas Trisha pareceu verdadeiramente curiosa com algo. 

— Ela não se incomodava com o cabelo se prendendo nas penas? — O meio sorriso que ela deu para Arnok, rindo da pequena coincidência e do momento, fez o jovem asa negra notar algo. A quanto tempo ele não falava de sua mãe? 

— Tinha vezes que sim, então o prendia numa enorme trança. Meu irmão e eu comparamos uma vez ao rabo de um macaco e ela correu atrás da gente com uma panela. 

Ambos riram, e para sua surpresa falava de seu irmão. Quantas noites passou as claras, temendo que veria a garganta de seu irmão sendo cortada mais uma vez, ou seu corpo preso numa cruz em chamas, junto de tantas outras figuras familiares. 

A dor e a falta pareciam distantes naquele breve momento, mas bastava olhar para as costas de Trisha que tudo retornava, e o leve sorriso que tinha se abatia quase de imediato. 

Foi nesse momento que Ilja interveio. 

— Sabe, o Arnok é bem conhecido por umas coisas que ele fez por aí… — Ele começou a dizer, mas Trisha parecia confusa.

— Eu nunca ouvi falar nele. — Disse de maneira casual, deixando Arnok indeciso entre o alívio de não ter que lidar com uma outra mulher como Derra, ou raiva por todos os seus esforços não terem chegado naquele lugar. 

No entanto, Ilja viu uma oportunidade.

— Que bom! Não acredita em nenhum deles se ouvir algo está bem? Arnok é muito popular na universidade, e muitos falam em suas costas para diminuí-lo!

— Eles falam? — Arnok perguntou, genuinamente confuso com o rumo que Ilja encaminhava aquela conversa. O Demonkin no entanto, se aproveitou da confusão do amigo. 

— Vê quão inocente ele é? Sequer sabe dos boatos que o envolvem!

Trisha riu da expressão irritada que Arnok deu para Ilja e mais uma vez, notava o quão bem se sentia estando ali. Olhar para ela era como encarar uma paisagem. Uma plenitude gigantesca e sem falhas, que o fazia se sentir pequeno.

De um jeito bom, claro! Quando se é menor que todas as magnitudes do mundo, como o sol, uma montanha, ou uma gigantesca árvore que seja, seus problemas parecem menores e fúteis, assim como seus momentos de alegria parecem ainda mais grandiosos. Já que esta montanha ainda vai estar aqui mesmo depois que eu morrer, porque eu deveria me importar tanto com meus problemas?

Era assim que Arnok se sentia diante de Trisha. Leve e solto, como um espírito livre e imperfeito, e por isso era perfeito. Pois era livre para aceitar suas imperfeições como parte de si!

Toda essa linha de pensamento passava em sua cabeça conforme conversava com ela, uma conversa que fluía sem obstruções. Ainda assim, seu olhar sempre recaía sobre sua asa. Se seu ser parecia pequeno diante de uma árvore, imagine diante de uma enorme cruz em chamas. 

Imagine quão mundano são seus desejos e conquistas, suas vontades e anseios, quando se tem um gigantesco par de problemas em suas costas. Quando humanos e demônios parecem odiá-lo. 

Ainda que estivesse feliz ali, se sentia cansado. Uma exaustão que ia além do físico. Talvez se somasse cada golpe que sofreu na arena nas últimas semanas, mais golpes dentro e fora da universidade, ainda teria de tomar alguns chutes e socos de outras pessoas para se sentir tão cansado quanto estava ali naquele momento.

Tentou evitar, mas logo isso transpareceu e Ilja não podia esconder desta vez. 

— Tá tudo bem?

Uma pergunta tão simples, que o abalou de um jeito que não esperava. Se estava tudo bem? Talvez estivesse em dias tranquilos e de vitórias, mas ali, naquele momento, naquele quarto mal iluminado por uma janela posicionada no lugar mais estranho que Arnok já virá, acompanhado de seu melhor amigo e de uma asa negra… 

— Eu não sei… — Disse enfim, quando tudo que havia acumulado em seu âmago já transbordava. — É que… tá aqui conversando com você é bom, mas te olhar e ver essa asa nas suas costas… 

O machucava, verdadeiramente. Mas não tinha coragem de dizer. O machucava não só por lembrá-lo do passado, mas justamente por tornar tudo que fez até agora em vão. Pois se ele não era o último asa negra de sua espécie, por qual glória estava lutando? Pelo que estava querendo ser lembrado? 

Mas nada havia dito. Suas palavras morreram enquanto olhava para a asa de Trisha. Quando finalmente voltou a olhar para ela nos olhos, uma expressão de nojo havia se formado. 

— Achei que fosse ser diferente dos outros!

Como é?

Arnok não havia compreendido exatamente o motivo da agressividade daquelas, mas quando buscou auxílio com seu amigo, ele também estava o encarando de um jeito ruim, como Arnok nunca havia visto. 

Que diabos estava acontecendo?

— Espera aí, como assim?

— Como assim nada, por quê não diz o motivo de não gostar da minha asa, hein?! Da minha aparência?!

— É porquê…

— Pois eu não sou puro sangue, não é?! — Antes que Arnok pudesse dar qualquer explicação, esta foi a surpresa de Trisha, e ele não havia compreendido num primeiro momento. 

Mas foi quando viu aquela asa mais uma vez, e entendeu o motivo de ali somente existir uma. Não foi um acidente, ou culpa dos humanos. 

— Você não é pura. — Disse, com cada sílaba em sua língua queimando como fogo. Ela não era puro sangue. Ela não é uma Asa Negra! O alívio que sentiu, misturado à raiva, fez tudo estourar. 

— Então é assim que me vê.

— Sim, é! — Rebateu Arnok, se esquecendo até do motivo inicial de ter entrado naquela discussão. A raiva o cegava naquele momento, junto da decepção da realidade. 

Nenhum deles entendia de fato ali, apenas viam um asa negra irritado por estar diante de uma meio-asa-negra e que a havia chamado de "não pura".

— Não posso mais ficar aqui. — Ele disse, enquanto se distanciava para a porta. Trisha parecia ter dito algo, uma ofensa talvez, mas nada ele ouviu. Um zunido irritante soava no fundo de sua cabeça, e quando encostou no lado do quarto, tentou aliviar aquilo massageando as têmporas, mas não funcionou. 

— Não esperava isso de você. — Ilja disse, parado ao lado de Arnok e de braços cruzados. Havia uma certa raiva em seu olhar, não do tipo que Arnok costumava ter, uma raiva cega e descontrolada. Era cinzenta e apática, como se com um simples sopro, Ilja pudesse tirar aquele asa negra de sua vida. 

— Nem eu… — Já se virava para ir embora, quando foi segurado pelos ombros por Ilja. 

— Se não esperava, basta voltar lá e pedir perdão! Simples!

— Não somos crianças, Ilja. Não é um pedido de desculpas que vai fazer diferença. 

— Não costumamos ouvir nem isso. 

— De toda forma, não seriam desculpas verdadeiras! 

— Então de fato odeia ela só por ser meio-demônio? 

— Sim! — Disse, mais uma vez, sem pensar nas consequências. Viu o rosto do seu amigo mudar, daquela raiva cinzenta, para um sorriso amargo e descontente. Seu olhar, carregado por marés de tristeza, mal se dirigiam a Arnok. 

— Então me odeia também. — Aquilo deveria soar como uma pergunta, mas não foi o que aconteceu. Ilja passou pelo lado de Arnok e correu à frente, e ele apenas encarou o amigo se distanciar, completamente receoso do que fazer. 

— Ilja, não é tão simples!

Queria se desculpar. Queria explicar para seu amigo e para a meia-asa-negra lá embaixo que não quis dizer tudo que havia dito, que suas palavras de ódio não eram exatamente dirigidas a ela… ainda que no fundo fossem. 

Odiava olhar para a asa de Trisha e pensar no que ela representava. No que Trisha representava. 

Não havia outro Asa Negra no continente. Arnok era o último de sua raça, e o pouco alívio que havia sentindo a princípio quando conheceu Trisha, agora era o sentimento da triste realização. 

Estava sozinho, e sozinho lutaria contra todos os males que assolavam sua raça de um homem só.



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