Volume 2
Capítulo 23: Fardo
Não havia sol sobre suas cabeças, apenas a tênue claridade de um dia nublado. Encostado em uma das cercas da fazenda, Júnior, o rapaz que acompanhava a curandeira Melissa e um velho conhecido de Philip, cruzava os braços com força e mantinha uma expressão impaciente. Seus bufos e suspiros começavam a frustrar sua companheira.
— Qual o problema Júnior?
— Não está curiosa para o que eles estão dizendo lá dentro? — Ele perguntou, como se aquele fosse o problema que mais necessitava de sua atenção naquele momento.
Melissa o encarou por um instante, incrédula de ver ele se portar daquela maneira.
Após a revelação de Philip, de que Lira iria partir para a academia com eles, todos ficaram surpresos. Porém discípulo e mestre se desentenderam e começaram a discutir. Antes que a fornalha se tornasse quente demais, Philip dispensou tanto Júnior quanto Melissa da casa, e ali estavam.
Não faria talvez nem cinco minutos que estavam ali, mas isso não parecia importar para Júnior.
— E então? Você não vai ouví-los? Sei que consegue!
— Sinto muito, mas me deram educação quando mais nova.
— Sério? Quem fez este enorme favor? — Ironizou, mas percebeu de imediato a carranca que surgiu no rosto da companheira. — Eu não devia ter falado isso.
— É, não devia.
Nenhum deles disse mais nada por um momento depois disso. Júnior encarava o chão, agora culpado pelo que havia feito com a amiga, e Melissa encarava a casa, não querendo admitir que sim, estava curiosa com o que acontecia lá dentro.
— É só que… O Philip não era assim. — Adiciona Júnior, quebrando o silêncio de antes e recebendo a curiosa atenção de Melissa.
— Não fazem mais de trinta anos que ele largou o exército?
— É, fazem. Mas o Philip é uma lenda viva. O Deviam mesmo disse… "Nada que é dito sobre o Philip é boato ou exagero. Ou é fato, ou um feito dele." — Disse, dando um tom exagerado de orgulho e egocentrismo, como se ele fosse o autor desses feitos.
— Você imita bem o deviam… — Melissa ironizou. — Mas ele também disse que ele não aceitava discípulos, não é?
— Uma filha bastarda talvez…
— Philip só tinha olhos para a Merlin!
— Quem te disse isso?
— Seu pai. — Ela disse, abaixando a cabeça em arrependimento. Como se tivesse falado demais. — Ele me contou muita coisa sobre esse tempo com o Philip…
— Ele nunca me disse nada…
O silêncio de antes retornou, recheado de um clima vergonhoso, tenso e de culpa. Mas, desta vez, nenhum dos dois o quebrou. Uma estridente terceira voz o fez.
— Eu não vou abandonar vocês, Philip! — Lira gritou de dentro da casa, e ambos não conseguiram se segurar mais e se aproximaram correndo de uma das janelas.
Lá dentro, Philip estava recostado na poltrona destruída, enquanto Lira estava de pé diante dele. No instante em que Melissa e Júnior colocaram seus rostos na janela, ele encarou a eles, lhes dando um olhar que explicava o nome de guerra de Philip, Cavaleiro Rubro. O terror fez eles se esconderem de imediato.
— Lira, não é tão simples. — Philip continuou, ignorando a presença dos dois, aquilo era mais importante no momento, que a invasão de privacidade de dois jovens.
— Sim, é! Se eu abandonar vocês dois, aquelas… — Hesitou amedrontada, antes de se lembrar. — Coisas podem voltar a qualquer instante!
— Elas não estão atrás de mim, Lira. E sim de você! É com você que deve se preocupar, deve treinar e se tornar mais forte! Eu ficarei bem.
— Mas e a Merlin? — Lira perguntou, notando a falta do plural na fala de Philip. Não era só isso, obviamente. Várias vezes seu mestre havia evitado e engruvinhado o nome da esposa, e Lira não aguentava ver o mestre desta forma. Precisava entender, mas não sabia o custo disso.
— Merlin morreu. — Foi a simples resposta de Philip, mas tão cheio de significado quanto o arregalar de olhos de Lira. Ela não se aguentou de pé, precisou sentar no sofá. — Aquela coisa matou ela. Não sei como, ou quando. Mas encontrei o cadáver queimado dela hoje de manhã.
Encarando as próprias mãos, Lira ficou em silêncio. Calada e apática como aparentava, quem a olhasse naquele momento poderia pensar que nada ela sentia por Merlin, mas não era verdade. O extremo oposto acontecia ali naquele momento.
Encarava suas mãos pois a sua cicatriz tornava real todo aquele momento, a prendia na realidade. Pois se por um mísero segundo ela mergulhasse na culpa, de ter sido a causa daquelas coisas aparecerem ali, de ter, desde o princípio, sido o motivo de Merlin ter colapsado.
Se não tivesse fugido de casa, apenas morrido naquela cabana abandonada no meio do nada, tudo seria diferente. Seria melhor. Seu colapso parecia iminente, mas quando levantou a cabeça, notou que Philip estava descendo as escadas do segundo andar.
Mestre havia deixado a própria discípula digerir a primeira das várias informações que viriam a seguir. Lira tinha de partir, para seu próprio bem. E ali, parado a beira da escada, Philip carregava com ambas as mãos um longo caixote, negro e fino. Estava em mal estado, com o acolchoado externo rasgado em várias partes, mostrando a madeira velha e apodrecida pelo tempo. Aquilo parecia ter sido esquecido e abandonado. Deixado para as traças decidirem seu destino.
Porém, aquilo havia de mudar naquele momento. Uma última vez, Philip ensinaria Lira.
— Isto, minha discípula, não é um presente… — Ele começou, se aproximando lentamente de Lira e recebendo a atenção dela. — É um fardo.
Ela se levantou, e encarou o próprio mestre nos cansados e melancólicos olhos. O desconforto que sentia em segurar aquilo, a culpa que emanava a cada pequeno vislumbre que ele dava ao pacote negro, era praticamente palpável e marcante demais para Lira. Poucas vezes havia visto-o daquela forma e sempre envolvia algo ruim.
— Fardo que carreguei, infelizmente, com muito orgulho. Não, ainda o carrego. Isto Lira, me acompanhou em cada gota de sangue derramado no campo de batalha. Me amaldiçoando com o gosto da matança. E para sempre se lembrar, Lira. Eu lhe entrego o meu Floreio. A arma com a qual matei milhares e amaldiçoei a mim mesmo. Leve-a como um lembrete…
Ele parou por um momento, observando tanto a antiga caixa em suas mãos, quanto sua mais nova e única discípula. O velho encontra o novo. Os antigos amaldiçoando as recentes gerações, com seus grotescos erros, e aqui estamos.
— Um lembrete que isto existe para matar. Nunca para salvar. Apenas você pode salvar algo, e mais ninguém.
Quando finalmente entregou para Lira a caixa, ela não teve forças, por conta de seus ferimentos, para segurá-la num primeiro momento. Queria abrir e enxergar o tal Floreio, mas algo em seu âmago a impediu. Philip tinha razão sobre aquilo, sobre tudo.
— É minha culpa… Preciso ir para a academia para que você fique seg…
Antes que pudesse terminar aquela frase, Philip a enrolou em um abraço forte. Era firme, seguro e quente. Sentia os esparadrapos em seus braços, peito e cabeça encostar em sua pele, sentia algo entre as cócegas e o desconforto de uma coceira antiga e familiar, mas não queria se desvencilhar dele. Aceitou de bom agrado o carinho e as lágrimas que vieram em seguida. Lágrimas quentes e pesadas, que encharcaram os ombros de Philip.
— Eu não a culpo, Lira. — Philip disse, apertando-a ainda mais contra seu peito. Sentia dor, mas nenhum ferimento o impediria de dizer o que precisava. — Não conseguiria culpar minha discípula… culpar a filha que eu nunca tive.
Lira o encarou quando ele disse aquilo.
— Você pode se culpar, mas do passado deve tirar apenas uma coisa. A certeza que fará melhor amanhã. Lute! Entre na academia e encontre a força que eu nunca dominei plenamente. Estude e se fortaleça com os melhores. Aprenda com os melhores. Para aí então lutar pelos erros do seu passado.
— Mas…
— Não tem “mas”, minha pequena. Seu desejo sempre foi lutar contra tudo isso. Aqui está sua chance. Agarre-a e a segure junto ao peito. Nunca mais solte, mesmo nos dias mais difíceis.
Quando Philip retribuiu o olhar de Lira, não via nela uma discípula. Não enxergava ali a garota perdida e com febre, abandonada no meio do nada. Via uma mulher forte, com muito a aprender.
Não com ele. Não ali.
— Deve sair desta caverna, minha filha. Deve partir!