Volume 2
Capítulo 22: Trisha
A luz do sol era incapaz de invadir aquelas apertadas ruelas e becos da cidade baixa, mas seu calor marcava uma presença forte, abafando todos aqueles corredores estreitos, fazendo os já horrorosos odores daquele lugar ficarem ainda piores. Não era um momento agradável para os dois demônios, Arnok e Ilja.
O asa negra talvez sentisse um desconforto ainda maior, com suas asas constantemente esbarrando nos telhados baixos e nas paredes apertadas daquele desprazeroso lugar, a cidade baixa. Vinha ali frequentemente por conta das lutas com Serra, mas talvez nunca conseguiria se agradar, ou se acostumar, com suas asas tocando em tantos lugares que não deveriam.
Ali, no entanto, era um beco que nunca havia passado.
Já conhecia várias pessoas desta parte da cidade, uma consequência inevitável que se via pensando ao conversar com um humano que poderia oferecer a ele analgésicos de origem duvidosa e barata. Mas ali, não importava por quantos rostos ou lojas passassem, era incapaz de reconhecer uma única coisa.
As placas nesse lugar raramente tinha alguma coisa escrita, as tornando ainda mais memoráveis com suas horrendas figuras, como copos cheios de cerveja que mais pareciam uma espécie de tanque lotado até a boca com urina, ou uma silhueta que ao tentar se aproximar do corpo feminino, lembrava Arnok a uma cobra sem a cabeça.
Um lugar estranho, nojento e desconhecido. Onde diabos Ilja estava levando ele?
Quando estava prestes a perguntar isto para o amigo, foi obrigado a frear, quase esbarrando no Demonkin. Ele estava parado de frente para o que talvez fosse a única loja com letras ao invés de desenhos mal feitos em centenas de metros. Uma enorme placa numa caligrafia extremamente reconhecível dizendo “A casa dos prazeres de Derra”.
Arnok leu várias vezes sentindo que estava no lugar errado, mas Ilja deu um passo adiante e bateu na porta com confiança, surpreendendo o asa negra. Ele sem saber ao certo o que fazer, agarrou o amigo para longe dali.
— Ficou maluco? Eu não te segui pra ver um puteiro!
— Não fale assim desse lugar — Ilja advertiu, expressamente ofendido. — A senhora Derra dá tudo de si aqui.
— Senhora… quem?
As palavras saíram de sua boca, ao mesmo tempo que a porta da casa dos prazeres. Um rangido lento e ruidoso preencheu aquele longo beco, deixando o asa negra extremamente inquieto ao olhar para a pessoa parada à porta.
Não era uma mulher bela, mas seu olhar não conseguia evitar encará-la com um certo fascínio. Era enorme, num sentido quase sobrenatural, precisando quase se agachar para passar pela porta. Agora dando ainda mais detalhes para ela, notava seu longo cabelo negro como piche, e tão gorduroso como também, e seu par extra de olhos.
Uma Reenkardemono, que vestia um vestido horrorosamente decotado.
— Meu querido Ilja, como é bom vê-lo! — A giganta Reenkar disse, alvoroçada por ver um antigo conhecido, veio caminhando na direção do Demonkin e Ilja retribuiu o abraço apertado que ela lhe deu. Se Arnok não estranhasse o comportamento do amigo e o tamanho daquela mulher, poderia até mesmo achar aquele um momento agradável e um fofo reencontro. — Não o vejo a tanto tempo, as suas escamas já pararam de cair?
— Sim, para nunca mais crescerem senhora Derra.
— Ora, sem essa coisa de senhora! Vamos, venha, vamos entrar! — A enorme Derra o convidou, finalmente notando a presença do Asa Negra. De todas as reações que Arnok imaginava que ela teria, nunca imaginou que um sorriso amigável seria uma delas. — Está com você o rapaz de asas?
— Sim… eu trouxe ele pra conhecer ela! — Ilja respondeu, tentando sussurrar para Derra, mas Arnok foi capaz de ouvir, em alto e bom som. A enorme mulher depois de ouvir isso, encarou por um longo momento o jovem asa negra, olhou para seus ombros, punhos e peito, então finalmente para suas asas, uma de cada vez.
— Tem certeza?
— Absoluta!
A maneira como eles discutiram entre si preocupou o asa negra, mas não houve espaço para se para perguntar sobre aquilo tudo ou para ir embora, logo havia sido arrastado para dentro da casa de prazeres, saindo de um corredor apertado para outro.
Na realidade, pouca diferença havia entre os becos da cidade baixa e aquele lugar. Era como se uma estrutura tivesse sido montada sobre o que antes era uma parte da cidade, com ladrilhos mal cuidados e colocados de uma maneira tão malfeita que saltava ao menor pisar dos calcanhares, mas não estavam no breu. Haviam abandonado a penumbra dos prédios altos e apertados do lado de fora para uma iluminação fraca, porém confortável e aconchegante.
Arnok era o último da fila, observando as costas de sua anfitriã e de seu amigo, e ali em baixo, estranhamente, era espaçoso o suficiente para suas asas ficarem confortáveis em suas costas. Estranhava pois não era exatamente um padrão fazer corredores largos e altos como aquele, sem ser de uma família rica ou de um lugar grandioso como a universidade. Vivia comprimindo suas asas, e não precisar ter feito isso naquele momento parecia torná-las mais reais e pesadas do que nunca.
Foi absorto em seus pensamentos e pesando sua própria aparência que Arnok notou que o corredor havia terminado e diante dele um enorme salão se abria.
Dividido em dois níveis, bar e salão, por um pequeno degrau, o primeiro nível da casa dos prazeres possuía um balcão de bar, longo e escurecido. As bebidas dispostas ali pareciam todas baratas e de gosto bastante discutível, mas a anfitriã Derra não deu importância a isso quando ficou atrás do longo bar e começou a preparar as bebidas de seus convidados.
Ilja esperou paciente no segundo nível do salão e Arnok se viu obrigado a segui-lo por não saber ao certo o que fazer. A casa dos prazeres aparentava ser um lugar arrumado e bem cuidado, mas a falta de janelas e de cores não chamativas pareciam sufocar o Asa Negra.
O piso mais baixo era composto por várias mesas redondas e solitárias, com poucas cadeiras em cada uma. Arnok tinha teorias dos motivos, mas talvez a razão fosse tão simples quanto "nem todas as cadeiras foram postas ainda". Mas não havia uma pista para desfile, nem alguma maneira extravagante de se ter "prazeres" ali. Isso ainda passava pela sua cabeça quando a dona do lugar colocou uma bebida em sua mão. Não podia ver as cores exatas, pois o copo de madeira tornava impossível esse feito, mas o cheiro forte de canela deixava claro que aquilo não era nenhuma cerveja barata.
— Beba antes que esquente… — Ela disse, dando um sorriso caloroso para Arnok. Parecia fazer aquilo desde sempre. — Mas faz tanto tempo que eu não te vejo, Ilja. Como anda seu mestre? Eu não falo com aquele velhote há tantos anos!
— E talvez nem consiga senhora Derra… — Ilja respondeu, enquanto seus ombros ficavam miúdos de uma maneira que Arnok raramente via. — Meu mestre morreu a muito tempo.
Nesse momento, Arnok tentava acompanhar tudo aquilo. Do que sabia de seu amigo, seu mestre era o Ancião Malar e a morte de um Ancião era impossível de não ser notada. Ilja estava mentindo? Ou ele tinha algum outro mestre, a muito tempo?
Ilja não mentiria… concluiu em fim, sem dizer nada do que pensava em voz alta. Notou também a apreensão da dona da casa dos prazeres, parecendo extremamente aturdida com aquela notícia.
— Ele morreu? — Disse Derra, quase ironizando ao pontuar a morte do tal mestre, mas Ilja apenas acenou de uma maneira mecânica, confirmando o que Derra não parecia aceitar.
— É verdade, senhora, impressionantemente. Algo finalmente atravessou aquele casco duro.
Houve um longo momento de sobriedade e pesar. O silêncio palpável entre os dois só se quebrou quando Arnok deu um gole em sua bebida. Era doce como sidra, mas forte como o golpe de um bêbado.
— Mas… não vim aqui para falar de mim senhora Derra. A Trisha ainda está com a senhora?
— Sim, ela está. Ainda está do meu lado, depois de tantos anos!
— E quem não gostaria de estar perto de uma mulher que nem você, senhora Derra!
— Pare com a modéstia Ilja… — Ela disse, tentando esconder o rosto enrubescido. Porém, em um momento seu olhar recaiu sobre Arnok e sua expressão mudou, endurecendo e se tornando fria. Quase furiosa. — Não me entenda mal Ilja, eu confio muito em seu mestre e em você, mas como sei que aquele rapaz não fará mal a minha menina?
— Senhora Derra…
— Acho que já fiquei muito tempo calado! — Exclamou Arnok, interrompendo Ilja, para a surpresa dele, e invadindo a conversa. — Meu nome foi falado muitas vezes aqui e sequer estou entendendo pelo que vou passar! Quem é essa que vou conhecer?!
Ambos os presentes encaram ele, aturdidos, e depois se encararam, a senhora Derra olhando para Ilja primeiro.
— Não disse nada a ele?
— Praticamente nada, achei que seria melhor assim.
— Fez bem…
— Oi! — Arnok gritou, enquanto Derra pontuava o ato de Ilja. — Estão de novo falando sobre mim, como se eu não estivesse aqui!
— Pois está aqui, e este é o problema! — A senhoria da casa dos prazeres se levantou de seu assento, ficando muito mais alta que Arnok. Seu enorme tamanho parecia um desafio insuperável, talvez até maior que as lutas que passou nos últimos anos. — Sei quem é você, Asa Negra! Luta na arena quase toda noite. Mata seus oponentes quando o dinheiro fala mais alto que a razão! É um monstro!
— Apenas dentro da arena. — Arnok tentou se defender, irritado com uma estranha o julgando das coisas que fazia, mas seu tom de voz não ousava subir. Temia o tamanho daquela mulher.
— Aí está o problema, Asa Negra, sei que não é só na arena!
Ambos se encararam pelo que pareceu um instante infinito. O curto momento onde Arnok compreendia as palavras de Derra e se decepcionava consigo mesmo. A raiva que cresceu dentro dele, por um momento, pareceu incontrolável, maior que a própria intimidação que sentia pela mulher à sua frente.
Foi quando Ilja entrou no caminho dos dois, olhando no fundo dos olhos de Derra. Arnok não era capaz de ver seu rosto, mas o fato de ter ele ali apaziguou a chama da fúria que crescia dentro dele.
— Senhora Derra, sei que os boatos sobre o meu amigo não são bons, mas eu irei com ele. Eu vou ver a Trisha junto dele. A ela nada vai acontecer, e sinto que isso vai ajudar Arnok a melhorar. Eu lhe imploro, por tudo que já fiz pela senhora… — Ele hesitou, como se não soubesse quanto suas palavras faziam sentido. — Deixe meu amigo e eu, ver ela.
A dona da casa dos prazeres não deixou de encarar o Asa Negra, mesmo depois do discurso do Demonkin, mas ela suspirou. Um suspiro cansado, carregado de arrependimento.
— Certo… — Ela disse, voltando a se sentar. No entanto, seu olhar ainda estava preso em Arnok. — Mas ouça rapaz, se eu descobrir que fez algo a minha menina, vai ter preferido lutar contra o pior dos homens naquela arena nojenta.
Arnok estava prestes a discutir aquilo tudo, mas foi puxado pelo braço enquanto Ilja se distanciava dali. Ele agradecia a senhora Derra, mas o asa negra não parecia dar importância a suas palavras, e somente ao olhar que aquela mulher sustentava contra ele - um nojo angustiado, que gritava centenas de hipérboles ruins. Não pôde evitar encará-la de volta, com a mesma intensidade.
Ele foi puxado por corredores e portas, além de escadarias que subiam e desciam. Aquele lugar era muito maior do que aparentava. Passaram de frente por várias portas, onde ouviu várias vozes, todas femininas. Em cada uma delas, a pergunta em sua cabeça, com relação ao motivo de estar ali, crescia cada vez mais. Ambos passaram ao lado de uma demônio, uma fauno, um pouco maior que Ilja. Eles dois se cumprimentaram, como se conhecessem e não se vissem a muitos anos.
Sendo ignorado, Arnok ficou curioso e se aproximou de um dos quartos. Quando olhou lá dentro, viu um pequeno dormitório onde outras três mulheres conversavam entre si. Todas olharam na direção da porta e encararam o Asa Negra, que assustado, fechou a porta com pressa.
— Está andando com pervertidos, Ilja? — A fauna junta de Ilja comentou com um tom encharcado de ironia. Deu uma risada curta, enquanto um rubor de vergonha e raiva aparecia no rosto de Arnok.
Queria discutir com ela, como havia feito com a senhora Derra, mas algo dentro dele o impediu. Como um cansaço gigantesco, misturado descontentamento consigo mesmo. Era monótono fazer aquilo, retrucar e brigar com os outros por isso. Algo que nunca lhe havia acontecido.
Com o temperamento de Arnok, o menor olho torto significa uma mesa de bar queimada ou um braço quebrado. Ali, no entanto, teve apenas a insaciável vontade de dormir naquele piso duro de madeira.
— Molga, ele é um amigo meu… — Ouviu Ilja dizer, numa voz longínqua como se estivesse embaixo d'água, metros de distância.
Foi quando ouviu o gritante ruído de um estalo e seus olhos se abriram, animados e energéticos como nunca. Seu peito queimava, de uma energia que parecia acumulada de centenas de horas de sono.
— Ele não deveria ter entrado no meu quarto então, Ilja! — Arnok ouviu de trás de si, e quando se virou e olhou, viu uma das mulheres de antes, com a raiva estampada no rosto enquanto encarava o asa negra. — Bom te ver, Ilja.
O baque da porta se fechando atrás dela foi o convite de partida deles. Depois de tudo o que aconteceu, Arnok entendera o motivo de ter ficado daquele jeito. A tal Molga era uma Sukubo, e bem poderosa aparentemente, para ser capaz de quase desacordar Arnok sem sequer olhá-lo nos olhos.
Teve vontade de voltar lá, instigá-la a fazer tudo aquilo de novo. A queimação que havia sentido no peito era algo semelhante à primeira vez que usara magia, e tinha desejo de senti-lo de novo.
No entanto, Ilja parou de frente para uma porta. Semelhante a todas as outras, a única aparente diferença eram as marcas que estavam na parte superior direita dela. Lembrava Arnok de uma fuligem preta, mas quando a encarou melhor, percebeu:
— É penugem…
No instante que murmurou isso, Ilja bateu a porta e respondeu a pergunta que veio de dentro, dizendo quem era e que estava acompanhado. Quando recebeu permissão para entrar, o Demonkin olhou no fundo dos olhos do amigo e sorriu. Um sorriso largo, alegre e leve, convidativo como um bom vinho e uma lareira acesa, numa noite fria.
A porta se abriu, e revelou um cômodo de pé direito extremamente alto, lembrando Arnok de seu quarto. Tinha talvez cinco metros de altura e a porta dava para uma pequena escadaria. Aquela sacada interna do quarto mostrava todos os detalhes daquele cômodo. A treliche amarrotada no canto, onde somente uma das camas estava organizada. Uma estante de livros, recheadas de vários exemplares, alguns que Arnok reconheceu da biblioteca da academia. Uma mesa de centro, cheia de papéis e pequenos recipientes de vidro para química e uma mulher ao lado, que encarava surpresa o asa negra.
Arnok também fez o mesmo, pois naquele momento notou o enorme e único volume negro em suas costas. Uma volumosa e bela asa, de cor escura como a noite. Como as suas asas.
Ilja escancarou ainda mais o sorriso convidativo de antes.
— Está é a Trisha, Arnok!