Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

Revisão: Hide


Volume 2

Capítulo 21: Conto de fadas

Nunca esqueceria seu nome, jamais poderia abandonar a memória de seu rosto. Como poderia? O mesmo demônio que matou dezenas em seu esquadrão, também o presenteou com a aliança de casamento que daria a sua esposa.

Tamanha contradição, não conseguiu compreender no momento. Hoje, depois de tantos anos, talvez,  fosse capaz de dar alguma explicação. Mas aquilo não importava no momento. O importante era sua discípula, eram os vivos e os feridos. Memórias seriam apenas pensamentos inoportunos, e a dor pode ser posta para depois. 

Tinha de engolir aquelas lágrimas, caminhar para fora daquele quarto e não olhar mais para o cadáver incinerado de sua esposa. Ouvia os próprios passos, como se fossem tambores de couro que retumbavam em uníssono, anunciando a derrota e ordenando a retirada. O ranger da madeira era como velhas armas de fogo. Confortáveis nas mãos de um atirador experiente, mas não páreos para o que vinha pela frente. 

Como poderiam ser? Suas décadas lutando para o exército sequer puderam prepará-lo para o que enfrentou na noite passada. Aquilo estava caçando-a… O que era aquilo?

Philip não sabia dizer. Se preocupava imensamente com a garota e temia pelo pior quando estava prestes a chegar ao térreo e ver sua discípula, e de fato viu o pior. Viu os outros dois, o príncipe e a jovem curandeira, à frente dela, mas não deu grandes detalhes a eles. Notava apenas as faixas de Lira, de uma branquitude encardida e de mal gosto. Febril e efêmera. 

—... Por que estão aqui? 

Ouviu assim que chegou, e em meio a tantas sensações e medos, não queria que sua discípula os visse. Piscou longamente e relaxou por inteiro antes de dizer:

— Vieram por minha causa…

A conversa caminhou de maneira casual, mas a tensão nunca desaparecia. A curandeira, a mulher de cabelos de ouro, constantemente encarava ele e Lira. A preocupação que tinha nos olhos poderiam ser equivalentes aos de uma mãe com seus filhos. Sua discípula parecia estar num constante estado de medo e de alerta. Philip ensinou isso a ela, fez seu cerne lutar mesmo quando seus instintos gritavam o contrário, e isto agora parecia um conflito dentro daquela jovem garota. 

Pois como lutar contra algo inexplicável como era a coisa que apareceu ontem?

Sim, "a coisa". Philip não sabia da existência da segunda criatura, que Lira foi salva por um acaso miserável, e que enquanto olhava para o estado de seu próprio corpo, de seu braço propriamente dito, sabia que sentiria medo pelo resto da vida. Pensava que a qualquer momento, a qualquer instante, o tal Odoro poderia aparecer e nada o pararia desta vez. 

A sorte a salvou. 

Nunca mais teria tamanha sorte de novo. 

Só a ruína estava à frente dela. 

Pensava e refletia sobre tudo isto, enquanto seu braço carmim também entrava na visão de Philip. O choque de mestre e discípula eram semelhantes, mas enquanto o de um representava o medo, o do outro representava a preocupação de um pai. 

Philip correu até Lira, sentindo dores por todo o corpo no processo, e fez o possível para ver aquela ferida mais de perto sem machucar ainda mais sua discípula. Faltava a ele o toque gentil de um cuidador, mas a intenção chegou até Lira. Um ato tão singelo e carinhoso, algo tão simples, acalmou ao menos a superfície do oceano inquieto que era a sua mente. 

— Eu lamento que Melissa não seja capaz de curar isto. De tornar vocês inteiros de novo… — O rapaz que fingia ser discreto se aproximou, enquanto dizia isto. Colocou uma das mãos nos ombros da curandeira e ela pareceu surpresa, mas aliviada. — Ela é a melhor curandeira que já encontrei em minha vida, e o fato de ela não ser capaz de ir além disso… Vocês enfrentaram algo incompreensível.

— Isso nós entendemos na pele… — Philip ironizou, irritado com a aparente frieza do príncipe. Foi Lira quem pareceu aturdida com algo. 

— Vieram atrás… eles vieram me matar… por quê? 

Falava em um tom débil, como se lhe faltassem as forças até para lamentar o momento, mas todos ali ouviram aquelas palavras. Todos ouviram que eles vieram atrás de Lira, não ele. Que havia mais de uma coisa, e perguntaram quem eram eles. 

A discípula disse que não sabia, mas tão rápido quanto veio, uma segunda coisa surgiu. Uma que não conseguia determinar o quão jovem ou velha era, como se o tempo não se aplicasse a ela. Que disse sobre um tal pai, e que ele estava evocando ao Odoro e a segunda coisa, que se chamava Ciklo. Hesitou antes de dizer, como se duvidasse que aquilo fosse sequer real, um simples conto de fadas. Mas então disse sobre o rei dos profundos, e em como aquilo havia sumido após ter falado uma língua que Lira não compreendia. 

— O rei dos profundos? — Questionou o príncipe. — Isto não é uma história?

— Uma história contada por historiadoras… — Lira complementou, sendo encarada por Melissa e o príncipe.

— Isso não o torna menos mito. 

— O torna um fato. — Retrucou, tirando forças para discutir sobre aquele assunto delicado. Já o fizera antes com Philip, e antes que tivesse terminado de dizer a palavra historiadora, seu rosto estava encharcado de lágrimas. Mas já havia chorado o suficiente. — Historiadoras não mentem, todas suas histórias são relatos embelezados de perigos e acontecimentos reais. O rei dos profundos existe! 

— Como pode um conto de fadas ser real?

— Eu não sei… — Philip se intrometeu, sentindo que aquilo estava escalando muito depressa. — Mas é fato que o nome foi dito aqui. Se ele existe como é dito nas histórias, ou não, já não sabemos. 

— O que é… — Melissa perguntou, aparentemente ansiosa e culpada quando terminou sua pergunta. — Esse rei dos profundos? 

Ninguém respondeu num primeiro momento, mas Lira suspirou. Cansada como estava, temia continuar naquele assunto. Temia abrir a porta em sua mente mais uma vez, e ver o que não gostaria, mas valia a tentativa. 

Foi quando começou a dizer, ou melhor, a narrar o trecho de uma velha história. 

Sobre um homem que foi ao fundo do mar, ao desejar a verdadeira e imaculada imortalidade. Que, contra tudo, se encontrou com o Rei dos profundos. 

—...De olhar determinado, e voz plena, o Rei dos profundos não tinha uma idade definida. Seus olhares diziam uma coisa, enquanto sua boca discordava. Seu rosto narrava uma história de luta, mas seu corpo sem quaisquer falhas diziam o oposto. O Rei dos profundos tinha uma presença gigantesca naquele lugar, mas o mais gritante era a discrepância entre o pequeno e fraco humano e a ele, a coisa mais próxima da perfeição. 

O relato terminou com Lira dizendo que o homem não foi capaz de aguentar a imortalidade, pois os humanos não eram dignos dela, e assim o rei dos profundos surge nos mitos. Como uma criatura poderosa e imortal, sábia e perfeita, cujo único papel é disciplinar os outros homens que ali surgiam diante dele, solitário em seu reino no fundo do mar. 

—Então aquelas coisas eram Profundos? — Melissa disse, como se a palavra soasse estranha em sua língua. 

—Não é para serem… os Profundos são narrados como criaturas sem rostos. Assumem qualquer aparência para guiar os homens, sábios e poderosos, ao seu rei. 

—Bem, eles tinham uma aparência estranha. 

—Mas não a falta dela. Profundos são essas criaturas que influenciam os arredores de homens poderosos. Os manipulam até desejarem o poder da imortalidade, ou conhecimentos além do comum…

— E então os levam para esse tal Rei dos Profundos… — Philip completou, notando a crescente tensão no tom de voz de sua discípula, desejando que o assunto terminasse logo, pelo bem dela.

—Mas por quê? — O príncipe perguntou. — O que acontece aos homens após se encontrarem com o Rei dos Profundos? 

—Eu não sei… Os relatos e as histórias nunca vão muito além disso. Os homens retornam de suas jornadas ao mar de um jeito diferente e estranho. Eles não são as mesmas pessoas, parecem ter perdido o senso comum. 

—Mas se tornam imortais? — O rapaz mais uma vez perguntou, agora não mais com curiosidade, mas como se estivesse sedento para saber aquilo.

—Eu não sei. 

A decepção do jovem príncipe foi seguida de um silêncio de todos ali. Era difícil engolir toda aquela informação, que em outra situação pareceria uma ladainha infantil, ou um boato contado por fazendeiros. Mas Melissa viu os ferimentos deles, o jovem príncipe conhece Philip como o mitológico cavaleiro rubro, um homem em pé de igualdade com os antigos heróis. Havia buracos nessa história, que abriam espaço para o misticismo de uma garota com um ferimento horrendo em seu braço. 

No entanto, Lira e seu mestre sabiam melhor do que ninguém naquela casa o peso de um relato de historiadora. Se metade do que foi dito por aquelas coisas foi real…

— Você está em perigo real, Lira. — Disse Philip, dando voz a seus pensamentos. 

— Talvez esteja… — Disse o rapaz, se levantando e seguindo em direção a porta, mas não antes de continuar. — Falarei com um dos esquadrões nas caravanas de recrutamento para eles ficarem para trás e protegerem a casa. 

— Não. — Foi o comando de Philip, uma simples palavra com um poder imenso naquele momento. O jovem príncipe hesitou e se virou confuso para o cavaleiro rubro. Não via ali um mestre preocupado com discípula, ou ainda um homem que temesse pela própria vida. Enxergava uma máquina. Não fria e imóvel como eram os protótipos que via na academia, mas que funcionava a pleno vapor, podendo dilacerar tudo que viesse em seu caminho e o transformar em combustível. — Tenho uma outra ideia. Uma mais prática, a longo e curto prazo. 

— Que seria…? — Perguntou Lira, não estando surpresa com a aparência de seu mestre, já havia o visto daquela maneira várias vezes, mas sim com as palavras que proferiu em sequência.

— Você vai para a academia com esses dois. 



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