Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

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Volume 2

Capítulo 14: A reunião

Ecos de seus passos pareciam soar por toda a universidade. Pisadas fortes acompanhadas pelas passadas leves de Vitra. A pressa de Hiotum não era exatamente contagiante para ela. Na verdade, soavam quase como uma ameaça. Estavam na última curva para o salão dos Anciões e não conseguia evitar a ansiedade, com algo em seu âmago gritando pelo que estava por vir. 

Alguns passos depois, Hiotum bateu duas vezes na porta e a escancarou logo em seguida. Foram ambos recebidos com olhares mistos de desaprovação e alívio. 

Para a surpresa do velho fauno, não estavam na sala somente os Anciãos e Mourrice. Estavam ali todos os outros representantes das turmas do nono ano da academia, alunos de destaque por sua capacidade, a maioria sendo discípulos dos demônios presentes no mezanino acima. 

Vitra se juntou a seus amigos, sendo recebida de maneira amistosa, até mesmo meiga por alguns ali. Já Hiotum, quando caminhou até sua cadeira ao lado de Malar, teve o desprazer de trocar olhares com alguns dos presentes ali. Não conseguiu evitar a vontade de ir embora daquele lugar. 

- Muito bem… - Malar começou a dizer, se levantando logo após Hiotum sentar. - Chegou o momento. Esta é uma reunião excepcional. A presença dos representantes de classe dos nonos anos é temporária. Mourrice, chamou esta reunião para entregar seu relatório, não é mesmo? 

Todos se viraram na direção do Homalupo de pelos brancos, mas ele sequer pareceu senti-los. Havia uma aura de confiança ao seu redor, graças a sua postura. Quando pigarreou a própria voz para ser ouvido, ninguém ousou tirar os olhos dele. 

- Obrigado pela oportunidade desta reunião, mestre Malar. - Suas primeiras palavras foram certeiras, carregadas não só pela aura de antes. Também havia essa insinuação em sua voz. Como se dissesse que concordar com ele era a coisa certa. - Trago a vocês notícias não tão boas, infelizmente. Chegou até mim a confirmação de que outra frota de nossos navios desapareceu ao chegar perto da ilha do meteorito. 

Os Anciões não pareceram surpresos ao ouvir aquilo, alguns até se entreolharam com feições claras de decepção e dizendo coisas como já imaginava. Um deles era Hiotum, que levou a mão até suas têmporas. 

- Esta já é sua quarta tentativa de pisar naquela ilha de novo… - Disse, quebrando um silêncio desconfortável após o que havia sido dito por Mourrice. - Não acha que já está na hora de desistir de tudo isso? 

- Aquela ilha é perigosa, senhor Hiotum. Não acha correto que tentemos evitar maiores perdas? - Ele não soou como se desafiasse Hiotum. Parecia, na verdade, uma dúvida genuína, apesar da maneira como decidiu dizê-la. 

- Já tivemos perdas o suficiente com todos os navios e recursos gastos naquelas viagens. Recursos irrecuperáveis, tanto quanto a vida dos homens a seu serviço. - Aquelas palavras saíam venenosas de Hiotum. Ele se portava de uma maneira agitada e furiosa, algo que os outros Anciões e os alunos não viam normalmente. - Sessenta nomes por fragata, mais de cinquenta por frota. Quatro frotas enviadas num período de 3 anos. 

- Sei muito bem disso, senhor. Fui eu quem teve de levar os pêsames para as famílias. - Ainda mantinha o tom de respeito, apesar da clara tensão que surgia entre os dois. No entanto, a idade de Hiotum aflorava cada vez em seu rosto, conforme as rugas se intensificavam e sua raiva escancarava. 

- Você informou somente os nobres. - Disse, como se martelasse um prego em chapas de ferro. - Não foi você que informou as mães viúvas da cidade baixa, nem as famílias que viviam nas cidades neutras próximas dos portos. Fomos nós que o fizemos. 

Sua indignação não era apoiada sozinha. Conforme as palavras escapavam ácidas de sua boca, outros começavam a encarar aquele problema da mesma maneira. Incluindo o próprio mestre do homalupo ali no centro. Todos ali sabiam das capacidades extraordinárias de Mourrice, mas também sabiam de sua história com aquela ilha. 

- Está tratando toda esta situação com displicência e egocentrismo demais, Mourrice. O risco daquele lugar é uma coisa clara. O seu relatório e o de cada um dos seus colegas demonstrou isso, mas aquele risco está isolado naquela ilha vulcânica. Minha opinião será dita. A academia não mais orçará suas viagens ou missões relacionadas ao caso da ilha com o meteorito. - Só então se virou para seus colegas Anciões, notando finalmente o tom ácido que manteve em toda aquela discussão. Olhou primeiro para o mais próximo de si e o que mais temia uma opinião contrária a dele. Malar, no entanto, para sua surpresa, olhava preocupado para o próprio discípulo, com um tipo de olhar que Hiotum conhecia muito bem. 

A tristeza de perceber que seu discípulo cometeu um erro irreversível.

Os outros não eram tão complacentes. Havia uma irritação no ar, criada por cada demônio naquele mezanino, sendo direcionada para Mourrice. 

Ainda assim, o Homalupo não pareceu ser afetado. Sua postura e voz ainda estavam inabaláveis, e rosto ainda estático, enquanto olhava para os Anciões como se fosse um igual. 

- Compreendo, meus senhores. Tomarei responsabilidade pela missão de agora em diante. - Abaixou a própria cabeça, numa espécie de pedido de desculpas extremamente formal. Mas todos ali sabiam dos significados de suas palavras, que agora Mourrice enfrentaria a ilha sozinho. 

E ainda que soubessem, ainda que seu próprio mestre temesse por ele, não poderiam tomar uma ação. 

Na falta de um rei, os Anciões assumem a posição de controle do país. Responsabilidades grandes demais para tomar lados ou partidos. A vida de um único aluno da academia não valeria uma ordem direta dos Anciões ou alguma movimentação deles todos. Cabia ao mestre, e somente o mestre, lidar com os pesares e os erros do próprio discípulo. 

- Com tudo isso dito, seguiremos a reunião. - Disse Hiotum, notando a confusão que Malar tinha no olhar. O homem só saiu de seus devaneios quando percebeu os olhares de todos sobre ele. Agradeceu seu amigo pelo canto do olho, antes de começar de fato.

- Todos os alunos podem sair, com exceção de Mourrice. - Com a ordem dada, eles seguiram para fora do recinto confusos por terem sido chamados ali por nada praticamente. Mourrice no entanto, se manteve estático, não notando, ou talvez ignorando, os olhares de preocupação de alguns de seus colegas.

Agora que estava sozinho com eles, sua postura sumiu em instantes. A confiança foi substituída por autoridade, e agora quem olhasse para Mourrice não veria o aluno representante de classe e confiante. Veria o soldado, condecorado a sargento não muitos meses atrás. 

- E o que aconteceu? 

- Muitas coisas… - Malar começou a dizer após a pergunta de seu discípulo. - Mas todas giram em torno de um mesmo problema. Imagino que todos aqui saibam da recente movimentação do rei William. Esteve apressando o processo de recrutamento militar, enquanto soldados viajam de cidade em cidade e encontrando qualquer um que queira ter a chance de entrar para os militares. Pessoas de classe mais baixa agora podem entrar na academia militar, e a idade mínima para a entrada também diminuiu. 

- Acham que ele tem algo em mente? - Akin perguntou, se virando para todos ali presentes. 

- Está preparando um ataque e é algo complexo. - Artuno adicionou, tirando e desdobrando do bolso uma folha de papel. - As teorias que tínhamos de que havia assassinos de Altum dentro de nosso território, agora são fatos. Diversos relatos de soldados de alta patente se encontrando em grupos, dentro das cidades neutras. Bem debaixo dos nossos narizes e sequer podemos fazer algo. 

- Malditas cidades neutras. - Disse um dos Anciões, mas expondo a opinião de quase todos ali. De imediato, se viraram na direção do único que provavelmente discordaria daquele comentário, o olhando de cima a baixo, como se fosse o culpado de algo. 

Hiotum apenas engoliu em seco perante aquele momento. 

- Senhores, não se precipitem. - Intrometeu Mourrice, recebendo a atenção de todos. - Podemos não agir nas cidades neutras, mas eles também não podem sair de lá com facilidade. Se querem resolver isto, coloquem mais soldados nas cidades próximas. Se tentarem sair, os pegamos. 

- Esta seria a saída mais lógica, Mourrice. Mas este é o segundo problema que estamos enfrentando. Se colocarmos homens defendendo o interior do país, as fronteiras estarão desprotegidas de um possível ataque. 

- Não conseguiremos soldados com a mesma velocidade que William… - Hiotum comentou, adicionando um ponto extremo ao de Malar. Era impossível para os demônios arranjarem soldados com a mesma facilidade que os humanos. 

Não apenas pelas questões numéricas, com Altum tendo quase o dobro da população de Gaia. As estratégias dos demônios giravam em torno de suas magias, algo que levava tempo para ser ensinado. 

Se uma criança descobre ser capaz de controlar magia aos dez anos, ela teria ainda ao menos cinco anos na academia de magia antes de receber alguma recomendação militar, isto se ela decidir frequentar a academia de fato e não for uma exceção. Existiam muitos "se" para alguém se tornar um militar. 

- Mas e se mudarmos isso. - Mourrice comentou aquilo como se fosse algo simples e todos olharam para ele, incrédulos com a inocência dele. 

- O que sugere? - Perguntou Malar, dando um sorriso de canto já sabendo a capacidade do próprio discípulo.

- Precisam de magos capazes de substituir legiões de soldados, e rápido. A melhor opção me parece as técnicas nobres. 

- Não podemos obrigá-los a lecionar para nossos alunos. - Um deles comentou, mais uma vez, expondo a opinião da maioria. - São as regras. 

-Então as circundem. Podemos não obrigá-los, mas se jogarmos quantidades exorbitantes de candidatos, ao menos um deles adotarão como discípulo. 

- E como planeja isso? Não podemos simplesmente jogar alunos para os colos dos nobres.

- Sim, podemos… - O lado militar de Mourrice começava a transparecer, seu caminhar de autoridade soando por todo o cômodo. Olhou bem para cada um dos Anciões antes de dizer qualquer palavra, esperando que eles assumissem sua ideia. Suspirou quando percebeu que não o fariam. - Desde muitos anos, a academia prestigia os alunos através de seus eventos e competições. Uma a cada quatro meses, com outras rolando com um espaço de anos entre elas. 

- Não temos anos para fazer estes eventos, Mourrice. 

- Não mesmo, por isso faremos todos de uma só vez. 

Quando estas palavras saíram de sua boca, elas foram recebidas com a incredulidade de homens e mulheres conservadores. Muitos ali temiam, por um motivo bobo, aquela sugestão do Homalupo. A pressa. 

- Existe uma razão para haver uma pausa entre esses eventos…

- Que seria? - Ele perguntou, olhando na direção de Akin. O papilio temeu por um instante sobre aquele olhar, mas recobrou a postura. 

- Eventos humanos acontecem o tempo todo, comemoram festas e cortejos a todo instante… 

- E assim eles crescem. A pressa de querer viver existe porque não vivem tanto quanto nós. Se um humano tiver sessenta anos, podemos considerá-lo no fim da vida. Mas e quanto aos demônios? A magia nos privilegia, mas manter uma tradição idiota como essa, por um motivo tão fútil vai nos custar tudo. 

Ele havia chegado até seus superiores, disse o que eles mais temiam mas que também acreditavam no fundo de si mesmos. Que a mudança tinha de acontecer. Mas havia essa sensação contraditória ali. 

A mudança era necessária, claro, mas eles não poderiam liderar essa mudança. Quem definia, e sempre definiu, as regras e leis do país era o rei demônio. Um cargo que não estava sendo ocupado por ninguém. Somente ele podia mudar as regras, ainda que os Anciões assumam uma autoridade em sua falta, ou inexistência. 

- Seus temores são plausíveis, acreditem. Mas algo precisa acontecer e agora. Proponho a então o adiantamento de todos os eventos e competições da universidade e da academia para serem postos no mesmo dia. Muitos eventos vão acontecer, para todos os tipos de pessoas. Aposto meu posto como sargento nisto. 

- Soa uma boa ideia, mas sabe que não serão tantos alunos assim, não é? 

- Então deixe os terceiros e quartos anos participarem também. - Adicionou, mais uma vez recebendo os olhares da maioria. Pareciam estranhar o quanto Mourrice queria alterar a tradição. Mas a confiança que ele transpassava aliviou, ao menos um pouco, isso. 

Não para todos, no entanto. 

Hiotum se levantou e olhou bem para o discípulo de Malar. Havia algo ali naquela sugestão, só não sabia dizer o que. 

- Eles não são experientes o suficiente. - Pontuou enfim, sendo recebido com acenos de concordância por alguns ali  

- Claro que são, Hiotum. O senhor melhor do que ninguém sabe disso. - Já não havia respeito naquele comentário. Era óbvio o desafio de Mourrice contra o Ancião, assim como seu objetivo. - Arnok está no terceiro ano, não? 

Não foi um choque ouvir aquelas palavras, mas era irritante para Hiotum perceber o próprio erro. Arnok era experiente pelos motivos errados, nenhum outro aluno daqueles anos era como ele. 

- Fiquei bem triste quando ouvi que ele não recebeu uma recomendação militar da parte de vocês. O rapaz é bom, merece isso. 

- Ele não está madu…

- Não foram vocês que disseram que não tem tempo para isso?

Faltavam palavras para contrariar aquilo. Apesar do óbvio desafio e afronta contra Hiotum, Mourrice estava certo. A força de Arnok viria a calhar numa crise como aquela. 

- Acho que está na hora dos votos, não? - O Homalupo perguntou, olhando para o próprio mestre, e ele retribuiu com um aceno. 

Se levantou logo depois, com Hiotum em pé ainda ao seu lado. 

- Aqueles que concordam com o plano de meu discípulo, levante a mão. 

Quatro mãos foram erguidas, e então sete. Finalmente onze mãos estavam erguidas, com exceção de uma. O mestre de Arnok olhava derrotado ao redor, sentindo uma pressão por não erguer a própria mão. Quando finalmente a ergueu, pareceu para si como se jogasse pela janela tudo que havia dito para Arnok. 

Seus temores não vinham por uma falta de experiência do Arnok. Era o excesso que o preocupava, somado a falta de maturidade para perceber isso. Quando imaginava Arnok nestas competições que aconteceriam, só via o pior. Acidentes envolvendo excessos de força, demonstrações violentas em frente a centenas de casas nobres e milhares de pessoas.

Estava inseguro com os erros do seu discípulo, mas se preocupava ainda mais com os acertos. 

E se Arnok conseguisse um nobre que o treinasse? Ele já substituiu Hiotum, provavelmente o faria…

Não! Não posso pensar assim. 

Era o último com as mãos para o ar quando Malar decidiu que aconteceria a competição e que os alunos, a partir dos terceiros anos, poderiam participar. A reunião foi encerrada, todos começavam a se dirigir para saída e a sensação de que um desastre aconteceria não sumia de seu íntimo. 

Foi também o último a descer do mezanino, sendo parado por Mourrice próximo à porta. Ele tinha ainda resquícios daquela postura que mantinha na reunião, mas agora parecia mais leve e aliviado. 

- Sinto muito pela maneira como me dirigi ao senhor na reunião, Hiotum. - Ele começou a dizer, abaixando a cabeça numa espécie de perdão misturado à culpa. - O discurso deve ter me subido à cabeça.

- Não, está tudo bem. É sensato o seu plano, só não consigo evitar… - Mourrice olhou para ele, esperando uma resposta que nunca veio. - De toda maneira, tenho que ir. Você dirigiu bem a reunião hoje. 

Hiotum finalmente se distanciou dele, deixando para trás no corredor principal. 

Sozinho, aos poucos a postura de Mourrice se desfez. Seus ombros caem, num cansaço que não condiz com a própria idade, sua coluna afunda enquanto tenta manter o próprio peso e já não havia um rosto jovem ali. 

Apenas um homem cansado. 

- Deu certo? - Uma voz feminina vinda detrás dele perguntou. Se vira assustado para ver uma Papilio sem antenas. Parece recuperar um pouco a juventude quando a vê.

- Sim… eles aceitaram a proposta. Tudo encaminhado agora. 

- Acha que vai dar certo?

- Tem que dar. Vamos precisar ser um pouco extremos para essa guerra terminar. 

Houve uma troca de olhares preocupados entre eles. Sinais claros do que ambos sabiam, e não gostavam de admitir, do que estava prestes a acontecer. 

-  Sei disso. Só não queria que tantos sofressem. 

- Isso depende apenas dos humanos, nós não faremos nada. 

- Mas e quanto ao Arnok? Disse que o Vincent daria conta dele.

- E vai dar. Se tivermos o Arnok do nosso lado, tudo vai ser mais fácil. 

- Mas e se não… - Vitra perguntou, temendo a resposta que viria quando ele se virou em sua direção. 

- Se não… - Suspirou profundamente, como se não gostasse de dizer aquilo. - Então ele se juntará aos outros nobres.



 

 

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