Volume 2
Capítulo 13: Luta contra o medo
Philip havia dito para Lira certa vez, em um de seus vários treinamentos, que o medo é uma sensação natural e que ao longo do tempo, ela teria de lidar com ele de muitas maneiras. E era de fato verdade.
Nestes últimos três anos, o experimentou diversas vezes. Temia a dor, assim como o escuro, ou a altura quando dormia no topo das árvores da floresta. No entanto, todos esses medos passaram, como curtas tempestades de verão.
Mas ela nunca imaginou que o medo pudesse tomar aquela forma.
Olhar para ele era como ver todos seus maiores temores se juntarem numa única coisa, com forma, cor e cheiro…
O cheiro… parecia impregnar tudo. As narinas, o rosto, a pele, até mesmo a mente. Uma sensação paralisante, que trazia lembranças guardadas no fundo de sua mente. Os olhos não conseguiam se desgrudar daquilo, que lentamente abriu a porta que Lira havia sido incapaz de fechar pelo indescritível pânico que sentia.
Agora via de corpo inteiro aquela encarnação do terror. Ele aparentava ser um homem, sendo uma cabeça menor que Lira. Vestia um manto, marrom pela sujeira acumulada, que cobria todo seu corpo. Sentiu um leve conforto quando parte de seu rosto era coberto pelo capuz, mas isto durou pouco tempo. Com um movimento lento de cabeça, aquilo tirou o próprio capuz e mostrou com um esplendor horrendo a cicatriz em torno do nariz, com sua falta de cabelo destacando-a.
- Você é, ou não? - Disse, quebrando todo o silêncio do cômodo, fazendo o que nem mesmo Plumo havia tido coragem. O corvo apenas encarava aquilo, com um olhar completamente oposto ao de sua dona, de sua amedrontada e paralisada dona.
- O quê? - Ela conseguiu dizer, depois do que pareceu ser um enorme esforço.
Aquilo nada disse, ele apenas encarou-a. Olhou para seus cabelos cor de fogo, para suas feições estranhamente maduras para a idade. Olhava para ela como se analisasse um produto que deveria atender a minuciosos requisitos, e temia o que aconteceria se ele descobrisse que ela atendia estes requisitos.
Ele estalou a língua algumas vezes nesse processo, e em cada uma dessas vezes, o lugar em que deveria estar o nariz parecia se agitar. Como se estivesse ansioso para ser usado.
Aquilo tudo havia sido apenas um mísero instante, mas para ela era como se o tempo temesse se mover, como se aquela expressão estática e aquela presença aberrante obrigasse tudo a estagnar. E o cheiro…
A cada respiração ele entrava mais fundo. Impregnava com cada vez mais afinco partes do seu corpo que sequer imaginava que tinha. Quando o suor frio encharcou por completo suas costas, o odor sumiu de uma maneira tão repentina e deixando uma abstinência anormal de cheiros para trás.
Só naquele momento que teve a breve coragem de levantar a cabeça e olhar em seu rosto, mais uma vez. Viu que a expressão estática havia sumido. Qualquer sinal daquela expressão inerte, mas estranhamente aterrorizante, evaporou e foi substituída por branco infinito.
Aquilo abriu um sorriso largo, de dentes tão brancos que flocos de neve pareciam o puro carvão próximos aquilo. Tamanha era aquela branquitude, que Lira via o reflexo de muitas coisas. Via seu passado, via o futuro e o presente. E em todos eles, o medo e a morte a rodeavam.
- É você… - Aquilo disse, agora não somente com o seu sorriso branco, mas com os olhos fascinados e vidrados para ela. - É você quem eu devo matar!
A mensagem chegou fria aos ouvidos de Lira. O temor que sentia ela tombar para o chão e aquilo agora parecia centenas de vezes maior do que ela, por mais que soubesse a diferença de altura que tinham, por mais que sentisse que talvez fosse mais forte. Nada disso importava. O medo a prendia mais que qualquer magia ou corrente.
Mas não prendia a seu corvo.
No instante em que aquilo deu o primeiro passo até Lira, Plumo voou e atacou sua cabeça, cortando com força o meio da testa. Mas não pareceu reagir. Apenas olhou para aquele pássaro, enquanto a ferida se fechava no instante seguinte, desaparecendo e sem deixar quaisquer sinais de que sequer havia estado ali.
- Suma.
Havia sido um movimento tão singelo, uma contração estranha próxima a cicatriz, como se houvesse um verme revirando aquele lugar, que Lira duvidava até mesmo de tê-lo visto. Mas então, o cheiro voltou, mais forte e denso do que nunca. Ele chegou até suas narinas, não de maneira convidativa como antes, mas como uma ameaça.
Quando o cômodo se iluminou, Lira sequer foi capaz de notar quando a explosão aconteceu. Tudo se incendiou tão rápido e de maneira tão voraz. Chamas amareladas lambiam cada traço inflamável daquele quarto e pareciam rodear de maneira amigável aquela coisa de dentes brancos infinitos.
Havia sido jogada para longe, batendo contra sua cômoda próxima a cama, quase sendo lançada pela janela. O ar faltava em seus pulmões, e as lufadas que seu nariz inspirava eram recheadas pelo estranho cheiro do medo. A realidade dolorosa daquele momento finalmente lhe batia à porta, e somente agora estava norteada o suficiente para pensar em fugir ou lutar.
Levantou a cabeça, tentando encontrar um lugar para correr, quando viu uma silhueta, largada no canto mais distante do cômodo. Aos poucos deu mais detalhes a ela, o tamanho, um pouco maior que seu braço, a falta de movimentos, como se estivesse morto, e as penas, negras como carvão.
Plumo estava imóvel, com a coisa estando bem próxima a ele e olhando diretamente para Lira, com o mesmo fascínio de antes. A preocupação enchia seu âmago e se misturava ao medo. Indecisão agora tomava posse sobre cada um de seus músculos.
Não podia correr, a coisa estava de frente para a porta. Também não podia lutar, desarmada e não sabendo exatamente o que aquilo era capaz de fazer, além da regeneração anormal e da explosão.
Estava em um beco sem saída, onde até o céu estava encoberto por um espesso e impenetrável manto. Sua única saída, naquele momento de desamparo, foi a sorte.
De repente, ouviram um clique oco, algo como uma fechadura velha sendo destrancada. Lira pensou que havia sido coisa da cabeça dela, mas no instante seguinte o som familiar de um gatilho sendo pressionado soou do corredor, seguido da pólvora pulverizando o projétil para fora do cano.
O quarto foi banhado de vermelho quando a cabeça daquela coisa foi estourada por Philip, que estava parado a porta com um rifle de caça, a ponta do cano ainda esfumaçando com a bala recém disparada.
- Corre! - Ordenou Philip, já puxando o ferrolho e mirando na coisa que recobrava a própria cabeça, literalmente.
A garota no entanto hesitou. Olhou para o próprio pássaro, caído aos pés daquilo e não soube instantaneamente o que fazer. Até que ouviu mais uma vez o típico clique oco de antes. O reconhecia desta vez, o ferrolho velho e enferrujado do rifle de caça do Philip sendo puxado para logo em seguida, o gatilho ser pressionado.
Era agora ou nunca, Lira precisava saber se Plumo ainda estava vivo.
Deu passos precisos e rápidos, como quando escalava e atravessava a floresta em seus treinos rotineiros. Foi capaz de atravessar quase todo o cômodo em instantes e rapidamente agarrou Plumo. O grasnado de dor que ele produziu em sequência deu um extremo alívio em Lira, mas que durou apenas instantes.
Olhando para cima, viu que a coisa estava quase completamente regenerada. Ossos, músculos, nervos, tudo ressurgia a partir do nada e se interligava, como se uma complexa e poderosa magia de cura estivesse sendo invocada, mas não estava.
Não havia a luz, as palavras e os encantos, ou até mesmo uma terceira pessoa para curar aquela coisa. Lira percebia que aquilo, aquela cura insanamente poderosa e nada mágica, era uma capacidade daquela coisa, que não dependia de mana.
Aquela realização fez Lira se encolher ainda mais diante daquilo, que agora os olhos haviam se regenerado completamente, suas pupilas dilatadas como enormes faróis a encaravam como um predador olhando uma presa.
Mais uma vez, o som do gatilho sendo pressionado tirava um enorme peso dos ombros de Lira, mas Philip não teve o fator surpresa como da última vez.
A coisa sabia que ele estava ali, sabia de sua arma e era rápido o suficiente para tornar aquele tiro a queima-roupa e certeiro em sua cabeça, um mero arranhão. Aquilo se virou no mesmo instante para encarar Philip e seus braços se ergueram, como se estivesse agarrando algo à altura do peito. Lira soube o que estava prestes a acontecer.
Com toda a força que tinha, empurrou aquilo e o forçou a parar de fazer seja lá o que causava aquela explosão de antes, e atrapalhada, correu na direção de Philip, com Plumo enfiado em seus braços e se agitando para sair. Ambos começaram a correr pelo corredor o mais rápido que podiam.
- O que é aquilo?! - Lira gritou, sentindo-se quase aliviada com a força que aplicou.
- Não sei, mas quer nos matar… - Parando no meio do corredor, Philip puxou de um dos bolsos uma bala o próprio rifle e num movimento tão rápido, que fez parecer todo o processo de colocar a munição no compartimento, puxar o ferrolho e mirar, numa coisa só, manteve a mira na porta do quarto de Lira. - E eu não vou permitir isso.
Ela estranhou no mesmo instante seu mestre ter parado de correr e estava prestes a puxá-lo dali, quando olhou para o lado e viu a porta fechada e silenciosa do quarto de Merlin. A adormecida esposa de Philip ainda estava ali, não houve tempo para preparações. A coisa podia facilmente ferir um deles dois, imagine uma mulher fraca e em sono profundo. Lira olhou para ele, sentindo um orgulho misturado ao egoísta medo de perdê-lo, quando seu nariz foi inundado pelo cheiro de antes.
Suas narinas tornaram-se inquietas, enquanto cada fibra de seu corpo temia pelo que vinha a seguir. Havia tempo para fazer apenas uma coisa, e o que escolheu fazer foi pular contra Philip.
Ambos foram em direção ao chão, quando acima de suas cabeças uma onda de chamas amarelas passou, soando altíssima sobre eles. Com ela agora estando tão perto de si, mas não tocando-a de fato, Lira não sentia calor vindo daquelas chamas, mesmo notando o quão visivelmente eram perigosas. A artificialidade naquelas chamas era amedrontadora, como o cheiro que residia no ar após se apagarem.
As chamas haviam queimado as teias e a poeira acumulada naquele corredor por tantos meses, mas não parecia que iria queimar além daquilo. Ainda assim, o perigo era real e a fuga dele parecia incerta.
- Lira, não tem jeito… - Seu mestre disse, voltando a mirar para o quarto de seu discípula. - Vamos ter que lutar.
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