Volume 2
Capitulo 12: Atormentado
Já era capaz de imaginar o próprio estado depois da noite que passou. As pálpebras, pesadas como chumbo, quase se fechando a todo momento. Olheiras tão grossas e visíveis que se misturavam a seu olho roxo, formando uma feição de aterrorizante simetria. Um olhar cansado, que sequer era capaz de focar no teto de madeira acima dele. Teto esse, que logo começou a ranger. A poeira e a sujeira acumulada naqueles ínfimos vãos desceram até o nariz e olhos de Arnok e o fez saltar a contragosto da cama. Suspirou com raiva, enquanto limpava com força o próprio olho - apenas um deles.
Sua mão hesitou por um momento no meio daquele processo todo, lentamente tocando o olho esquerdo. Sentiu uma pontada de dor aguda, que fez todo seu rosto e ombros se retorcerem para longe de sua mão, e as feridas que tinha próximas aqueles lugares também reagiram. Logo seu corpo todo latejava de dor, e rangia os dentes tentando manter a calma.
Não conseguiu evitar se lembrar dos ocorridos do dia anterior por conta disso. A ironia de ter se atrasado para uma comemoração feita em sua homenagem, a discussão que teve com Hiotum e a escolha que fez que desencadeou tudo isso. A ida até o ringue, as centenas de rostos que o cercavam naquele pequeno espaço de areia enquanto a sua frente um Homalupo de porte enorme o encarava, raivoso. O olhar encharcado de um orgulho barato e grudento.
Se lembrava da sujeira… Da poeira. Do número de vezes que socou e que foi socado, que chutou e que foi chutado. Dos momentos em que cuspiu sangue e que fez o adversário cuspir os próprios dentes.
O cansaço lhe impregnava até as entranhas quando aquele Homalupo caiu. Irimum era seu nome, e quando aquele brutamontes caiu no chão, Arnok o encarou. Olhou seus olhos e os machucados do adversário e o quanto o sangue manchava aquela areia seca. Era nojo que sentia, mas logo seus sentimentos foram sufocados pelos gritos.
Os rostos que o cercavam clamavam. Gritavam com esplendor seu desejo mais puro e sincero, mas ao mesmo tempo mais hediondo e temeroso.
Mate-o! Se lembrou deles gritando.
Destrua a cabeça dele!
Acaba com ele!
Uma torcida que causava nojo e medo aos desacostumados. Homens de classe social mais elevada, humanos e demônios, unidos em uníssono num único pedido. Num único clamor.
Lentamente, Arnok se levantou. Hesitando, tirou uma pena de suas costas e jogou para o ar e a esperou cair. Seu punho se levantava, o polegar retesado nem para cima nem para baixo. Logo todo seu braço estava acima de sua cabeça e a pena estava quase encostando no chão.
Ouvia a plateia, uivando e aplaudindo a escolha que tanto ansiavam. E em meio a todo aquele esplendor diabólico, seus olhos não conseguiram evitar repousar em seu adversário.
Ele ainda arfava, já sem forças para se erguer. Já não era mais o Homalupo que a alguns meses atrás havia humilhado Arnok no ringue. Era apenas um homem ferido e acabado. O menosprezo do passado não existia mais em seus olhos, havia apenas o medo.
- Por fa… vor… - Ouviu ele dizer com dificuldade e cuspindo sangue.
Arnok apenas olhou para trás. Viu sua pena quase repousar nas areias sangrentas e por um instinto que não parecia vindo dele, seu polegar se ergueu em uma afirmação.
Carregando o mais largo e satisfatório sorriso, Arnok chutou com todas as suas forças a cabeça do Homalupo. Um golpe não de misericórdia, mas de deleite.
O êxtase que sentiu naquele momento era indescritível. A plateia o ensurdecia com suas palavras de apoio e elogios violentos. Seus olhos não descolaram do cadáver presente na arena e dos pedaços de sua cabeça presos a cerca que separava os lutadores do resto. E seu sorriso não estava presente apenas na arena.
Estava em seu rosto, naquele momento, enquanto se lembrava daquele golpe. Não estava na arena diante de pessoas que iriam reclamar de um lutador benevolente, não diante do homem que pagava para ele um dinheiro que não necessitava.
Sozinho no quarto, viu o sorriso que abria apenas por aquele deleite doentio.
No instante seguinte, o tapa que dera em seu próprio rosto pôde ser ouvido por entre os pequenos vãos do teto e no chão. Se ainda houvesse alunos naquela hora da manhã, talvez tivessem estranhado.
Mas não havia ninguém. Arnok olhou para o relógio e não se abalou com ele dizendo que eram 8 horas em ponto. Somente se abalou quando se lembrou do compromisso que tinha naquele dia.
As pernas saíram da cama a contra gosto e constantemente estalavam de dor. Todos os seus músculos pareciam os de uma criança destreinada que decidiu correr uma maratona e achou que era uma boa ideia repetir este sofrimento.
Colocava seu uniforme, reclamando sempre que podia. Sentia pontadas de dor nas costas e nas asas todas as vezes que levantava os braços. Suas panturrilhas ardiam a cada degrau que descia e a cada passo que dava para mais longe do dormitório do terceiro ano, que diferente de seus anos anteriores, não mais era uma torre alta e de quartos pequenos. Agora era uma estrutura larga de quatro andares, onde todos os alunos ficavam nos primeiros três andares, e os representantes de turma no quarto e último andar. Era onde Arnok vivia agora. Ainda era o representante de classe de Kaesar e Vincent.
Mas sua posição não alterava a que sentia no momento. Na realidade, parecia dar uma responsabilidade a ela. No instante em que seus pés pisavam não mais no local onde dormia e passava tempo com seus colegas de classe e sim no campus da academia, seu peito se inflou de um ar matinal que entrou de maneira dolorosa em seus pulmões e suas costas formaram uma linha reta, que a todo momento lhe transmitia dores no corpo todo.
Foi dessa maneira desconfortável que ele atravessou as ruelas e passeios até o prédio principal da academia. Encontrou por várias vezes ao longo de todo o trajeto vários grupos de alunos que o encararam enquanto tivessem visão de suas asas - ou assim imaginava. Vários desses ele havia cumprimentado - colegas de classe que ele já havia conversado antes. Sabia também dos olhares desdenhosos e maliciosos que faziam quando virava as costas.
Só conseguiu se sentir tranquilo quando atrás de si havia apenas uma enorme porta fechada, o separando de tudo aquilo. Estava agora no prédio principal da academia, uma estrutura enorme, lotada de corredores empoeirados, escadas tão antigas quanto o tempo, portas que levavam a salas que não eram altas o suficiente para as suas asas, ainda mais escadas e enfim, a sala de Arnok.
Tinha as mãos na maçaneta daquela larga porta de madeira, ciente dos olhares que receberia de seus colegas e de seu mestre. Tinha perfeita consciência do julgamento que receberia, ainda assim era doloroso aquela sensação, de ser o centro dos julgamentos. Saber que na mente de cada indivíduo naquele espaço existe um comentário ruim ou indiferente quanto a ele.
Ainda que tivesse tentado abri-las com cuidado, o quão alto elas haviam rangido fez ele se arrepender.
A sala estava cheia, exceto por um único lugar desocupado. Sua suposição quanto a como seria recebido estava mais do que correta, e até de seus amigos não havia saído impune. Kaesar tinha seu típico semblante de preocupação para o asa negra, já a indiferença de Vincent era dolorosamente pesarosa. Mas, talvez, o que mais doía não vinha dos alunos.
Virou a cabeça para ver o quadro lotado de anotações que não compreendia, todas pareciam rodear a figura de Hiotum. Olhava para seu discípulo, como um pai olha para o filho que a poucos instante quebrou alguma coisa, ou usou algo que não devia.
Foi com apenas um movimento leve de cabeça que ele mandou Arnok sentar em seu devido lugar, e assim o fez.
Ouvia sem prestar atenção, de fato, no que seu mestre dizia. As palavras pareciam apenas murmúrios sem significado. Não importava o quanto tentasse, ou quanto olhasse para o quadro ou as anotações de Kaesar, que se sentava ao seu lado. Nada lhe tirava o desassossego.
Apesar de tudo isso, não conseguia querer fugir dali. Sentia que era impróprio sequer pensar isso. Todos os seus colegas estavam concentrados no que o seu mestre dizia, e ele, o representante de todos eles, sequer era capaz de dar significado aquelas palavras. Sua cabeça já começava a latejar por tamanha ser sua confusão. Voltou a olhar para frente, para ver Hiotum o encarando. Um olhar sério, mas preocupado, no rosto.
- Arnok, acha que pode me responder a uma pergunta? - Ele começou a dizer, dando a volta nas mesas e se aproximando do próprio discípulo, que acenou relutantemente positivo. - Suas chamas, quantas vezes acha que pode invocá-las?
As palavras caíram com um baque em meio às inseguranças que Arnok estava sentindo. Logo tentava calcular, ou ao menos estipular, uma resposta satisfatória para Hiotum, mas nada parecia vir. No fim, deu como resposta um lento balançar de ombros e lamúrios que pareciam dizer não sei.
- É uma tarefa complicada, não é? - Disse, a mão pousando num afago contra a cabeça do jovem asa negra. Ele aceitou o carinho a contra gosto. - Quanto mais usamos uma magia, mais simples ela parece se tornar. É o princípio da experiência como o primeiro rei chamava. Quanto mais tempo passa com uma magia, menor é o estímulo necessário para invocá-la novamente.
"Mas existe um porém nisso. Uma exceção que meus colegas no fronte dizem acontecer por um excesso de confiança dos magos em sua própria capacidade. A mana é uma coisa sensível e manejá-la é como moldar uma estátua, só que ao contrário. Ao invés de tentar transformar uma massa em algo, esse algo pode se transformar numa massa se seu manuseio for precário."
"É desta maneira que surge o sono manático. Sua mana se deforma tanto que agora ela tem dificuldades até mesmo de voltar ao seu estado original. Deste momento em diante, o mago já não é mais capaz de usar magia…"
Com estas palavras de aviso caindo sobre os alunos, como um manto denso e sufocante, eles ouvem batidas altas e apressadas na porta. Surge, instantes seguintes, a cabeça de um dos representantes das turmas mais avançadas da academia, recebendo os olhares de cada um presente ali. Todos reconheciam ela, todos sabiam quem era a papilio sem antenas.
- Hiotum… - Vitra começou a dizer, arfando e com algum suor escorrendo-lhe pelo rosto. - Está na hora.
Ele não pareceu entender num primeiro momento, assim como seus alunos, mas logo a compreensão surgiu em sua face. Acenando positivo para Vitra, ele se vira para encarar a sala mais uma vez, e em específico, seu discípulo. Suspirou antes que dissesse qualquer coisa.
- É meu mais sincero desejo continuar esta aula com vocês, mas como podem ver, tenho um compromisso que não poderá ser remarcado… - Seus alunos agora olhavam para ele, uma certa confusão misturada a curiosidade. - Todos dispensados para suas próximas aulas.
Foi por um breve momento que eles não compreenderam sua ordem, mas logo todos estavam arrumando as próprias mesas e se dirigindo até a porta da sala. Incluindo Arnok, Kaesar e Vincent. O trio estava a poucos passos da porta, quando são chamados por Hiotum, já acompanhado de Vitra, que parecia ansiosa, mantendo os braços cruzados e constantemente encarando o fauno.
- Vocês três… - Apontou para cada um deles, Arnok, Kaesar e Vincent, antes de continuar, ignorando a ansiosa papilio ao seu lado. - Me esperem na arena de treino. Tenho uma pequena surpresa.
- Surpresa?
- Arnok já deve imaginar o que é. - Adicionou, piscando na direção do próprio discípulo.
Os três foram os últimos a saírem da sala, discutindo no corredor a possível surpresa de Hiotum. E ele notava o quanto Vitra encarava as costas de Arnok.
- Sabe, ele sempre percebe quando encaram… - Comentou, ela imediatamente virando o rosto para outra direção. - É como um sexto sentido, ou um olho na nuca.
- Talvez ele esteja apenas irritado demais com os olhares… - Ponderou, mais para si mesma que para Philip. - Mas estamos parados aqui a muito tempo. Estamos atrasados para a reunião.
Foram com essas palavras que Vitra e Hiotum começaram a atravessar os corredores principais da academia, o eco de seus passos parecendo atravessar com pressa aquelas paredes de pedra maciça. Houve um breve instante de silêncio entre eles dois, que foi tempo suficiente para a velha guarda começar a acompanhar a juventude numa caminhada, ainda que ele reclamasse de vez em quando.
- Já estão todos na sala dos Anciões? - Hiotum perguntou.
- Só estava faltando você, e… - Ela hesita, como se as palavras a machucassem.
- Mourice continua obcecado?
- Sim. Não gosto de pensar que ele, afetado como está, vai dirigir a reunião.
- Ele que nos acionou. É a regra que ele deve então dirigir tudo isso.
- Mesmo assim. Por quê fazer uma reunião agora?
- Se for pelo motivo que estou imaginando, vai gastar apenas o nosso tempo.
- É esperar pelo melhor então? - Disse, olhando diretamente para Hiotum, que retribuiu o ato com um singelo sinal de ansiedade. O silêncio que ele deu como resposta pesou em Vitra como pesava a falta de suas antenas.