Volume 2
Capítulo 11: Cheiro de medo
Já fazia horas que sol estava a pino em sua cabeça. Lira viu as últimas rajadas de luz passarem pelos telhados das várias casas ao redor dela e não pôde evitar bocejar. Olhava para seu mestre, ainda na traseira na carroça, com a fadiga estando a mostra no seu rosto e ombros. Ainda assim, colocava incessantemente várias caixas semelhantes às que havia trazido e vendido no começo do dia em suas costas. Muitas delas eram a comida que teriam pelos próximos meses, ou peças de ferramentas que Philip estava necessitando.
O baque misturado ao tilintar dos conteúdos das caixas batendo contra a madeira velha da carroça serviu como um aviso para eles. A hora de partir havia chegado.
Usando da barra da camisa, Philip limpou o suor que ainda tinha na testa e logo bocejou, da mesma maneira como Lira havia feito. Eles dois trocaram olhares por um instante, com um instante de riso em seus rostos, antes que ele fosse para a frente da carroça e pegasse as rédeas.
As rodas rangiam enquanto distanciaram-se da última loja que haviam passado no dia. Já não havia mais carroças na rua, ao menos nenhuma de comerciantes. As calçadas agora se enchiam de trabalhadores terminando suas jornadas de serviço e rumando até o bar mais próximo, ou para suas casas.
De vez em quando um grupo de militares surgia. Todos aqueles cadetes fardados apenas em couro escuro, mas desta vez carregando folhetos e conversando com jovens homens e mulheres que se aproximavam deles.
- Estão recrutando… - Disse, notando o olhar curioso que Lira tinha para o grupo de cadetes.
- Para que?
- Isso é o que eu mais gostaria de saber… Temos de chegar logo em casa. William é o único com quem posso me informar.
- Aham… - Lira respondeu, com certo desinteresse em tudo aquilo. Para ela, Philip parecia estar se preocupando demais.
Ao longo do dia ele havia perguntado a ela diversas vezes quanto aos comerciantes de escravos e a tal "trilha queimada". Lira sempre respondia com toda a sinceridade, que ali não havia nada além de uma coincidência.
Pensava de maneira lógica, que algo havia queimado o gramado e os comerciantes haviam cortado a cerca. Ainda assim, algo nesta última parte a incomodava.
No fundo, ainda que discordasse de Philip, não conseguia evitar a estranheza. Dizia que eles haviam cortado a cerca, mas era impossível para aqueles três criarem o estrago que havia visto.
Se fosse apenas pela grama queimada, era uma coisa. Pensou, a coçando a cabeça pela ansiedade. Mas a madeira desapareceu… o arame farpado também.
Quando buscou próximo ao buraco na cerca, não encontrou sinais de que ela havia sequer existido. Como se uma explosão a houvesse levado. Isso e um cheiro.
Parando pra pensar, o que era aquele cheiro?
Não se lembrava de nada físico semelhante aquilo. Não era semelhante ao típico cheiro de pólvora, nem do comum odor de enxofre. Também não era como cinzas, muito menos algo inflamável.
Aquele cheiro esquisito e que prendeu-se ao nariz de Lira por horas a lembrava de uma tenebrosa sensação. A mesma que teve anos antes, quando estava rodeada por terra e acima dela um demônio havia gritado um fino tão agudo que seu corpo não quis mais obedecê-la de tanto medo. Sim, este cheiro.
Próxima ao furo da cerca, Lira havia sentido o cheiro do medo. Algo tão real e ilógico em sua mente que chegava a recusar sua legitimidade.
Havia contado isso para Philip, e ao invés da risada irônica ou de um longo discurso ensinando Lira a prestar atenção aos seus arredores, ele ponderou. Com uma séria e estranhamente apreensiva expressão no rosto, ele parecia levar aquela loucura a sério. Lira olhou para ele. Estava tão confusa que não pôde segurar a pergunta do porquê ele estava se preocupando tanto.
Respondeu de uma maneira seca que seu instinto estava dizendo para ele se preocupar, como se já não fosse ilógico o suficiente para Lira o motivo de sua preocupação. Mas, como se aquela sensação fosse uma doença virulenta, Lira sentiu uma inquietação crescer em seu peito.
Começou após seu encontro com Melissa e aquele rapaz com uma provável peruca. Várias vezes havia visto de soslaio uma figura. Alta e vestindo um longo manto negro que cobria de sua cabeça até os pés. Bastava que ela olhasse diretamente para ele que a coisa sumia, junto com a sensação de estar sendo vigiada. Mas logo aquilo retornava, mais próximo e sedento.
Estava se sentindo daquela maneira naquele instante na carroça, enquanto via as casas e as ruas da cidade se afastando. Mas se recusava a procurar a fonte. A sensação de que aquilo ainda era uma coisa de sua cabeça não desaparecia por nada e numa mistura de orgulho e medo por talvez estar errada, sequer tentava olhar. Um ato infantil que se mostrou infrutífero quando Philip quebrou o silêncio que estava desde na cidade. Não com uma fala alta, nem perto disso. Mas com um sussurro tão leve que Lira teve dificuldades para ouvir.
- Alguém nos observa… - Ele não havia tirado os olhos da estrada. Era como se sequer tivesse dito aquilo. Seus ombros e mãos não tiveram reação quando tamanha revelação saiu de sua boca e seus lábios pareciam sequer ter se mexido.
Inconscientemente, Lira começou a tremer quando percebeu que estava enganada quanto às sensações de sua cabeça.
O resto do caminho até a fazendo foi uma viagem tensa, cheia de olhadelas pelos cantos dos olhos, por cima dos ombros e através das árvores ao lado da estrada. Por mais que tentasse, Lira jamais encontrava a origem. Mas ela nunca desaparecia. Aquele olhar gélido se manteve em sua nuca por todo o trajeto. Philip aparentava estar impassível quanto a tudo isso, no entanto.
Estava tenso, isto era claro na tremenda força que fazia ao apertar as rédeas dos laraltos. Ainda assim, ele não demonstrava o mesmo medo de Lira, nem sua urgência para encontrar o responsável por tudo aquilo.
- Se ele quisesse aparecer, já o teria feito. - Comentou em dado momento, da mesma maneira como quando deu o aviso para Lira, mas isso não apaziguou o nervosismo que sentia.
Havia algo naquele olhar. Uma ameaça quase bestial, que Lira nunca havia sentido na vida. Já houveram vezes que sentira medo do desconhecido - suas longas semanas de treino na floresta lhe trouxeram esta experiência - mas isto não chegava aos pés desse medo.
Algo primordial e incapaz de controlar. Muito além do simples temor de um predador qualquer na floresta, ou de estar presa abaixo da terra.
Perceber isso tornava todo aquele momento dezenas de vezes pior para Lira. Por instinto, diversas vezes havia tentado agarrar sua arma em seu coldre, ou sua faca de osso na bainha de seu tornozelo. Tentou até mesmo desembainhar sua espada de treinamento. Mas nenhum deles estava ali.
Sequer havia percebido quando Philip, de maneira gentil, colocou uma das mãos em seu braço. Desarmada e exposta daquela maneira, nem a presença de seu mestre a dava conforto.
Sentindo temores e esperando horrores, eles seguiram até a fazenda. Com o céu já perdendo seus tons laranja, Lira desceu da carroça com um alívio quase milagroso quando chegaram à porta de casa. Ali, rodeada pelos pinheiros e pelo odor da fazenda, não mais sentia aquele medo.
Inconscientemente, sua mão foi até a própria nuca. Estava suando frio até poucos minutos atrás.
- Lira, isto está saindo do controle… - Philip começou a dizer, contrariando toda a descrição que tinha anteriormente. - Tenho de contatar William, talvez ele saiba de algo. Entre em casa e me espere.
Sua preocupação parecia pesar em seus pés, marcando com força a terra seca da fazenda. Lira viu seu mestre se afastar e não pôde deixar de sentir-se como ele. Agarrou a maçaneta da porta com a pesarosa sensação de que algo horrível estava prestes a acontecer.
Os ecos de seus passos inundavam os vazios cômodos do primeiro andar, nenhuma alma viva para presenciá-los, além da pequena e desarmada garota ruiva no corredor de entrada.
Sabia da solitude daquele momento. Ainda assim, não conseguia deixar de olhar pelos cantos dos olhos para a parte de baixo de alguma cômoda que não era limpa a dias, ou para as partes mais distantes e escondidas da sala de estar e cozinha. Até que seus olhos pousaram no poleiro de madeira, próximo a janela.
Tinha várias partes arrancadas por bicadas fortes, e os arredores dele estavam sujos de pequenas penugens e lascas do próprio poleiro. No entanto, ainda que Lira visse em detalhes seu lar, em nenhuma parte via quem morava ali.
Cadê o Plumo? Pensou, notando com preocupação a quantas horas não via seu companheiro.
Se fosse em um dia qualquer, não haveria motivos para se preocupar. Plumo sempre voltava. Mas hoje, com aquela sensação horrível que havia passado em sua nuca a menos de uma hora, não conseguia evitar e pensar no pior.
Seus pensamentos foram interrompidos por um grasnado alto. Era distante, atravessava a casa em um lampejo ecoado assim como os passos de Lira, mas eram reconhecíveis.
Ela começou a correr em direção a esse som, atravessou os dois corredores necessários até a única escada na casa que levava ao segundo andar, e subiu de três em três degraus. Rapidamente chegou ao andar superior e apesar de sua enorme vontade de passar no quarto onde dormia o terceiro membro da casa, passou correndo em frente a porta e chegou finalmente ao próprio quarto.
A porta, encostada naquele momento, fez um rangido alto quando Lira a abriu. Se deparou no mesmo instante com o que causava aquele grasnado. Plumo estava em sua janela, esperneando e batendo asas contra o vidro. Em dado momento, ele se afastou para então ir de encontro a ela, numa tremenda força.
Em desespero, Lira abriu os trincos de latão e com semelhante feição, Plumo se atrapalhou ao se agarrar nos ombros da dona. Ela tentava lhe dar palavras de conforto, mas nada do que fazia acalmava o jovem corvo. Quando então, a criatura começou a dizer:
- Ele está vindo! - Disse Plumo, imitando uma voz que era ao mesmo tempo semelhante a de Philip e ao grasnado agitado de um corvo. - Ele está vindo!
Não era comum Lira ver Plumo falar. Corvos tinham essa capacidade, e corvos de asas dúplices eram ainda melhores nisso.
Ainda assim, raras eram as vezes que seu corvo falava, e aquele seu tom de alerta, cheio de um temor quase instintivo soava na mente de Lira, chegando aos confins dela e batendo de encontro com as portas. Até que tudo se cessou.
Um silêncio soturno havia surgido, após tamanha algazarra, num espaço de tempo tão curto que Lira não conseguiu evitar ficar aturdida. Olhava para seu companheiro, as penas ainda agitadas e os olhos alertas como se esperasse por algo. Ele se prendia com força no reconfortante ombro de sua dona - quase perfurando a jaqueta de couro no processo, no entanto.
Ainda tinha os olhos para o próprio animal, quando ouviu alguém bater à porta.
Apenas dois toques leves na porta, amistosas e convidativas. Em um momento qualquer talvez sequer tivesse escutado isso, mas ali, englobada pelo silêncio, não pode deixar de se assustar.
O corvo bateu asas e voou de seus ombros até o poleiro próximo a cama de Lira. Ele a olhava não como um animal que imitava a voz de outros. Olhava-a com fascínio e repreensão, como se temesse as próximas escolhas da garota.
Ali, para Lira, Plumo não aparentava ser um corvo e sentiu os pelos de seu braço arrepiarem com esse pensamento.
Mais dois toques na porta. Estes eram mais apressados, mas ainda eram anormalmente convidativos. Ela olhou em direção da porta e não pôde evitar a curiosidade.
Seu primeiro passo foi inocente, assim como o segundo. Mas logo isso mudou.
Algo inundou seu nariz, um odor fétido e putrefato mas que não pareciam ser vindos de um cadáver. Era salgado e denso, colava em suas narinas e não importava o que fizesse, o cheiro não cessava e a cada passo mais perto da porta, mais forte se tornava.
Estava a alguns passos da porta, quando por uma terceira a pessoas atrás da porta tocou. Dois toques, fortes como chifradas de touro e a aquela altura, já não mais tentavam chamar a atenção de Lira. Ainda assim, numa ironia dolorosa, seus olhos não descolavam da maçaneta e aos poucos sua mão viajou até lá. Quando, com força, o agarrou, finalmente se lembrou de onde reconhecia aquele cheiro nefasto.
Seus olhos se arregalaram com a descoberta, e o suor frio que sentia escorrer em suas costas parecia vivo e com o único objetivo de fugir.
O cheiro do medo a inundava, e mais do que qualquer coisa, foi o medo que fez ela girar a maçaneta.
Não houve a necessidade de abrir toda a porta para ver o rosto daquilo. Mais do que qualquer coisa, ele tinha uma figura humana, mas isto até os mais temerosos demônios também possuíam. Mas aquilo também não era um demônio, isso era estranhamente óbvio para Lira. Era como se ela pudesse reconhecer todo o ser e o significado daquela figura de homem a sua frente em sua feição metódica, longa e pálida como a neve, e em sua cicatriz, que deformava toda a região de seu nariz e ao redor dos olhos.
Este significado, mais do que conseguia compreender, não era uma coisa boa. Amedrontava cada fibra de seu ser e sua alma parecia latejar com a tentativa de olhar de frente para aquela pequena e amedrontadora figura de homem.
- Então… - Começou a dizer, seu hálito vazando todo o cheiro de medo que Lira havia sentido antes. - Você é a tal filha da historiadora?