Volume 2
Capítulo 15: Odoro
Houve esse longo instante de um denso silêncio na casa de Philip e Lira. Em meio às chamas que não se alastraram e dos cheiros que ambos nunca haviam sentido na vida até aquele momento, nada parecia se mover.
Quando o primeiro piso de madeira rangeu, seguido de um segundo ainda mais alto, tudo pareceu ganhar um tom melancólico. Aquelas chamas amarelas pareciam se comunicar com aqueles sons e com a coisa que caminhava no corredor, sua cicatriz enorme no rosto tomando formas diferentes a cada ranger que seus passos criavam e a cada lambida de fogo próximo a seus pés.
- Aonde você está? - Disse, soando como uma criança numa brincadeira. Estava a poucos passos da escada para o primeiro andar, quando ouviu um estalo alto atrás de si.
O sorriso que abriu ao se virar fez Philip hesitar sobre o gatilho por um instante. Uma troca de olhares começou entre eles, o mestre de Lira encarando aquela coisa por entre o ferrolho de seu rifle, temendo que aquele cheiro esquisito se aproximasse dele.
- Está atrasando o inevitável, velhote. - Aquela voz soava esganiçada nos ouvidos de Philip, e por mais que tentasse entender a razão, a tarefa se provou tão árdua quanto olhar diretamente para aquele rosto. O sorriso que aquilo abriu o lembrou de todas as representações possíveis de um mal diabólico. - Sua discípula vai morrer aqui, com você… E não vai ser um jeito bonito.
Seu inconsciente deu uma atenção especial àquelas palavras, fazendo a hesitação que tinha nos dedos do gatilho sumir com um simples suspiro de raiva.
- Não se eu puder evitar.
Foi uma simples pressão naquele pedaço velho de chumbo que fez um estouro ensurdecedor surgir no corredor. O sorriso que a criatura tinha no rosto começou a sumir lentamente quando percebeu onde estava a mira de Philip.
Um disparo certeiro no joelho fez com que a perna daquilo se desmembrasse. O equilíbrio que tinha sumiu tão rápido que sequer notou quando rolou escada abaixo para o primeiro andar.
A besta resmungou em todo o processo de reconstrução da sua perna. Quando foi capaz de manter o próprio equilíbrio, encarou a escadaria, esperando que o homem que fez aquilo com ele aparecesse. Quando ouviu o leve som de um gatilho sendo apertado.
Teve instantes para perceber que atrás dele estava a garota que ele tinha de matar. Não conseguiu ver o revólver cinzento-fosco que ela carregava, apenas a explosão de pólvora saindo da ponta de seu cano.
Lira viu seu disparo atravessar o crânio daquela coisa, para no instante seguinte se regenerar completamente. Aquilo vira-se em sua direção, os olhos ensandecidos e a pupilas dilatadas de raiva, mas outro disparo é dado, este bem onde deveria estar o nariz. O processo se repetiu até que todas as balas de Lira tivessem terminado.
A coisa cambaleava de raiva, agarrando as partes do próprio rosto que foram baleadas e regeneradas em sequência. Era um ato instintivo, como colocar a mão sobre uma pancada. Lira sabia que a criatura não estava prestes a ser derrotada, assim como seu mestre.
O próximo tiro contra aquilo veio do segundo andar, Philip mais uma vez disparou uma de suas balas de Laralto, desta vez diretamente na cabeça daquilo. O tempo que levou para se regenerar foi o suficiente para mestre e discípula estarem lado a lado no primeiro andar. Uma dupla que transmitia confiança e habilidade.
- Vocês realmente estão se achando no controle, não é?
- Quem levou oito tiros na cabeça foi você. - Era nítida a confiança na voz de Lira, mas o cano de sua arma inevitavelmente tremia sempre que sua mira recaía sobre aquela coisa.
- E isso te conforta? Algum de vocês dois já viu algo parecido comigo? Não existe demônio capaz de se regenerar desta maneira, nem magia capaz de fazer o que eu faço. - Eram palavras de ódio que transmitiam a eles uma inevitavelmente sensação de derrota. - Se a conforta saber o quão forte sou, entenda. Não sou um humano, nem um demônio. Sou Odoro.
Aquilo soava como um nome e ao mesmo tempo como uma nomenclatura para algo antigo. Philip sabia que aquilo era a antiga língua dos demônios, o significado literal lhe parecia uma piada de mal gosto.
Foi quando o cheiro abateu-se sobre eles dois. O mesmo que deu início às chamas amarelas.
Numa competição não dita, a discípula agiu mais rápido que o mestre e disparou contra a coisa que se nomeava Odoro. Três disparos consecutivos que fizeram o cheiro sumir rapidamente. Ou pensaram ter sumido.
Uma onda de chamas surgiu da criatura, mas não veio na direção deles. Lambendo os móveis da sala, as chamas engolfaram toda uma peça de mobília, a mesma poltrona que Lira viu Philip se sentar tantas vezes nestes últimos anos. Foi necessário apenas um instante para ela se transformar em cinzas.
Uma incógnita surgiu no fundo de sua mente. Não conseguia compreender aquele fogo, ou as capacidades daquela coisa. As chamas eram as mesmas, mas em um instante elas sequer flambam a madeira que encostam, no outro levam um piscar de olhos para reduzir um móvel de madeira maciça a uma mera lembrança.
Era Odoro que controlava essas chamas? E como isso não podia ser magia? E por que não havia um cheiro de queimado, e sim esse cheiro maligno e marcante de perigo e dor?
- Lira, cuidado!
Foi o grito de seu mestre que tirou-a de seus delírios. Suas narinas foram preenchidas pelo cheiro de morte, avisando-a do perigo que estava por vir. Não teve tempo suficiente para disparar, apenas para se abaixar e sair da direção daquele cheiro.
O que houve a seguir não foi uma batalha rápida, muito menos de movimentos calculados. A coisa não parou de atacar por um mísero instante, as chamas se espalharam por toda a casa. Lira e Philip mal tinham espaço para escapar de seus golpes, e as raras oportunidades que tinham para disparar contra aquilo não eram frutíferas. Já não eram mais as simples lâmpadas elétricas que iluminavam a sala, a cozinha e o corredor. E sim o fogo amarelo que cheirava a medo.
Os risos de satisfação e deleite daquilo preenchiam todos os cômodos da casa com um desespero e o temor de um pesadelo infinito. Naquele denso e perigoso instante, Lira não via possíveis jeitos de se vencer o tal Odoro.
Mas Philip não enxergava desse jeito. Para o Cavaleiro Rubro, a oportunidade estava na abertura bem no meio do rosto daquela coisa. Foi um instante funebre e desagradavel para ele, lembrar de todas as maneiras diferentes que já conseguiu ferir e matar demônios que o ameaçavam. Sempre foi da mesma maneira.
Sempre existe uma abertura.
E quando ela surge, sua arma age como se fosse um membro de seu corpo que teve ao longo de toda a infância, os olhos seguem com tanta rapidez o ferrolho que usava de mira que sequer tem tempo para focar a própria visão, apenas o instinto de que aquele disparo vai para o lugar certo. O indicador cai sobre o gatilho, como a lâmina de uma guilhotina que trabalha pela justiça em troca de sangue.
Em meio a gritos e chamas que incineravam ossos, o estouro de uma bala sendo disparada soou como um enorme gongo e o som de ossos e carne sendo destroçado, como o deleite de uma sinfonia.
– Lira! – Sua ordem chegou instantaneamente à própria discípula. – Sua faca de osso.
Não existiu a necessidade de quaisquer outras ordens. Desembainhou a faca com a lâmina branca-fosca de suas costas e correu na direção da criatura. Pulou sobre chamas e móveis que resistiram aquela luta, enquanto via aos poucos a feição de Odoro ressurgindo. Quando aquilo já era capaz de expressar alguma raiva, Lira já estava frente a frente com ele, com uma finta pronta e direcionada na enorme cicatriz.
Foi um corte limpo, que fez a coisa cambalear mais uma vez, segundo de um segundo direcionado na mão que tentava se erguer para mais uma ataque. Lira pôs em prática os seus últimos três anos de treinamentos naqueles longos e cansativos segundos. Cortes longos, embaralhados a fintas e contra-ataques que usavam de todo o seu corpo. Ela não era capaz de acompanhar aquela coisa, mas no instante em que sua postura tombava, Philip já tinha um outro disparado preparado para a cabeça daquilo.
Não havia espaço para erros ali, tudo era calculado pelo instinto do inconsciente e Lira sequer podia se dar ao luxo de perceber o incômodo do suor escorrendo em suas costas.
Aquele embate já perdurava a quase um minuto e em momento algum a coisa teve a chance de atacar mais uma vez. Foi um ato quase involuntário quando Lira abriu um sorriso de canto de boca, que carregava toda a esperança da vitória daquele momento.
Mas ela fora tola, ambos os humanos que lutavam contra Odoro foram. Pois nunca haviam notado o sorriso que havia em seu rosto no começo daquele embate, e no quanto ele aos poucos desaparecia.
Mais uma vez aquilo ergueu as mãos no que Lira achava que era uma tentativa de atacar, mas quando sua lâmina se aproximou para mais um do que seria a técnica de desarme que Philip a havia ensinado, aquilo abriu a palma da própria mão e fincou a faca de Lira contra ela.
O mero instante de surpresa que Lira teve foi o suficiente para ser agarrada pelo Odoro e ser jogada contra o próprio mestre, com uma força distante de todo o senso comum que tinha. Philip não pensou duas vezes ao tentar evitar que Lira caísse com força contra o chão, sentindo toda a idade que tinha com aquele repentino peso em seus braços.
– Isso já durou tempo demais… – Não havia emoção naquela voz esganiçada, mas Lira via com clareza os olhos daquilo. A ira enjaulada e acumulada ali. – Vocês realmente acreditaram neste teatrinho?
O pesado manto da realização caiu sobre Lira e foi incapaz de se reerguer quando aquilo começou a levantar as mãos, mas Philip assumiu a frente. Sua arma ainda estava em suas mãos, mesmo após ter segurado sua discípula. Apertou o gatilho com a mesma certeza instintiva de antes, de que sua arma acertaria com perfeição aquela coisa.
Instantes se transformaram em horas conforme aquela bala se aproximava de Odoro, e Lira viu com uma estranha clareza o que estava todo este tempo em seu lado infantil e amedrontado, a sorte que era ainda estarem vivos e o quão poderoso era aquilo.
Viu o projétil se aproximar da cabeça e ela se repartia em duas. Não por conta do disparo, mas por vontade própria. Um buraco apareceu na trajetória da bala. Um que Philip não havia posto em conta, pois não imaginava que aquilo fosse sequer possível.
Quando a bala acertou o pilar de madeira atrás de Odoro, um desespero incontrolável recaiu sobre eles dois e mão daquela coisa que desafiava toda a experiência Philip estava apontada em sua direção.
Foi uma realização assombrosa, que fez Lira perder todo o peso que tinha sobre as pernas em meio aquele desespero. Foi uma motivação superior a todos os seus temores naquele momento. Chamas amarelas começaram a surgir, e Philip já não estava mais de pé no mesmo lugar.
Lira sentia o cheiro de morte, assim como via o brilho rápido se aproximando dela. Foi involuntária a tentativa de se defender daquilo, por mais que soubesse que era inútil.
Naquele momento, só conseguiria se descrever como uma boneca de pano velha, sendo arremessado por um força que jamais conseguiria sobrepujar. Uma das últimas coisas que foi capaz de enxergar com foco foi a janela entrando em sua rota de colisão.
O som de vidro sendo quebrado se misturou a todos os outros barulhos que começou a ouvir ao longe. O grito de fúria de Philip e de seu rifle sendo disparado, a risada irônica e carregada daquela coisa, o fogo crepitando alto, como se estivesse em deleite com todo aquele momento. Pareciam cada vez mais distantes e opacos conforme o tempo passava, ao menos sentia dessa maneira.
A queimação latejante em seu corpo parecia agarrar Lira com toda a força em sua traquéia, a tirando a capacidade de falar, respirar, de mover aquele músculo. Tudo doía, como se cada parte de seu corpo fosse apenas um pedaço de osso de Laralto, posto para secar e trincar em uma fornalha.
Apesar da dor, ainda queria lutar. Os sons que vinham da casa não se cessavam por nada. Aquele embate ainda não havia terminado.
Foi com um tremendo esforço que moveu os braços para se levantar, mas se provou infrutífero quando sentiu um estalo vindo dali. Sua força se esvaiu no mesmo instante, caiu com o rosto na terra seca da fazenda de Philip. Foi quando teve a coragem de olhar o próprio braço.
As chamas não haviam se apagado. Elas pareciam pequenos vermes, consumindo sua pele e músculos aos poucos, lentamente se aproximando dos ossos. Não era como as brasas de uma fogueira, que consumiam os restos de lenha debaixo de toda a cinza. Era vivo e consciente de que estar ali causava uma tremenda dor em Lira. Ansiava por isso.
O cheiro de carne queimada começava a infestar suas narinas, mal escutando os sons vindo de dentro da casa. Tinha forças apenas para enxergar essa pequena fenda por entre as pálpebras.
Devastada como estava, viu algo que finalmente quebrou qualquer espírito que tinha restante para se levantar e lutar. Pela porta da frente, Philip foi lançado da mesma maneira como ela havia sido. Lhe faltou coragem e força para ver onde ele havia caído.
Acompanhando essa desastrosa cena, ela ouviu ao longe a risada angustiante daquilo. Soava abafada em seus ouvidos, mas quando ele passou pela mesma porta que Philip havia sido jogado, seus temores foram comprovados.
– O primeiro já foi… – Com dificuldade enxergou Odoro se virar na direção da razão para aquilo estar ali. – Agora é sua vez.
Caminhou a passos lentos até ela, sentindo as chamas em seu braço a consumirem cada vez mais. Lágrimas salgadas começaram a sair de seus olhos, embaçando ainda mais a pouca visão que tinha.
– Você realmente achava que tinha uma chance, não é? – Disse, rindo de uma maneira quase animalesca. – Quando você me acertou o rosto e abriu aquele sorriso… aquela esperança que exalou de você… era tão doce que me deu enjoo. Me diverti com tudo isso. – Virou-se em direção a casa, vendo o que suas chamas começavam a fazer – Mas ele disse para isso ser um serviço discreto, né.
Foi um ato estranho vê-lo inspirar fundo, quando sequer tinha um nariz para aquele ar entrar ou sair, mas as chamas no braço de Lira reagiram aquilo, se inquietando, como se aguardassem ordens. Toda a luz que vinha da casa sumiu em um mísero instante quando soltou o ar. Agora o manto da noite engolfava todos ali, sem uma lua ou estrelas para aliviar a apreensão.
– É chegada sua hora. – Odoro virou-se na direção de Lira mais uma vez. Lentamente começou a sentir o cheiro. Era menos violento como o que sentiu pela primeira vez, mas tinha fome. Não entendia como podia um odor sentir algo, mas depois de tudo que viu naquela noite, não havia mais uma lógica. Não havia esperança.
Nada podia ser feito naquele momento. Estava fraca, e sequer tinha a visão do próprio mestre para confortá-la. Apenas aceitou quando os cheiros começaram a ficar mais fortes e o tempo a ficar pegajoso.
Pegajoso?
Quando esta percepção chegou a seu inconsciente, já não havia apenas uma figura à frente dela.
A coisa encarava um segundo homem, que ficou entre ele e Lira. Na posição em que estava, ela não conseguia enxergar o rosto do recém chegado.
– Ciklo? – Odoro soltou esta palavra que deveria soar como um nome. – O que está fazendo aqui?
– Eu vim te buscar – A voz do tal homem chamado Ciklo surpreendeu Lira de ainda mais que todas as coisas que aconteceram naquela noite. Ela não sabia como identificá-la. Se era de alguém jovem, ou com anos de experiência. Que fumou a vida inteira, ou que simplesmente tinha um pequeno pigarro na garganta. Ao mesmo tempo que soava jovem e infantil, ganhava um tom antigo e rouco no instante seguinte.
– Mas eu ainda não…
– O pai nos evoca.
O breve instante de silêncio entre eles fez Lira tremer até os ossos.
– Ele voltou?
– Parece que sim. E quer discutir sobre o Rei dos Profundos.
Mais uma vez o silêncio, desta vez sendo preenchido apenas pelos sons da noite. Notava agora a falta que fazia os relinchos dos animais ali. Talvez o medo tenha os calado.
– Irei assim que terminar este serviço. – Disse Odoro, sua cicatriz no rosto se movendo e trazendo de novo o cheiro para as narinas de Lira. Mas então, Ciklo segurou o braço dele e olhou nos olhos.
– Ni ne havas tempon! – Disse, a sensação do tempo se tornando pegajoso voltando mais uma vez.
E ambos sumiram.
Não existiram instantes para processar aquilo. Num momento estavam ali, no outro até os cheiros pareceram desaparecer. Foi como se nada daquilo tivesse acontecido, todo aquele fogo e desastres de última hora fosse um pesadelo horrível.
Mas a dor que sentia era real, as queimaduras ainda estavam ali e ainda sentia a terra seca sujando e entrando em suas roupas. Queria ver seu mestre. Ter algum conforto em meio a todo aquele momento.
Toda a força que recuperou naqueles momentos de vanglória e silêncio dos dois homens, foi gasta na tentativa de virar na direção de seu mestre. O homem estava caído não muito distante dela, o braço virado numa posição agoniante de tão errada e improvável. Parecia desacordado, a barriga lentamente subindo com respirações cada vez mais fracas.
Tentou chamá-lo, numa tentativa desesperada de se confortar. Mas lhe faltava até o espírito para isso. A dor aos poucos se amenizou, não porque estava passando, mas porque sua consciência tentava esquecer dela. O jeito que arranjou para isso foi desacordar, seus membros amolecendo cada vez e se sentindo pesada como nunca.
Já havia perdido os sentidos quando duas figuras começaram a se aproximar da fazenda.
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