Volume 1
Capítulo 9: Uma simples corrida
“LIRA!” Ela ouviu uma voz distante gritando, chamando-a, parecendo irritada e impaciente. “VOCÊ TEM DEZ MINUTOS PARA LEVANTAR!”
Aos poucos, a ruiva abriu os olhos, acordando de um sono nada tranquilo, envolvendo portas e diálogos estranhos. Percebeu então o primeiro erro que cometeu aquele dia.
Ela levantou tão rápido da cama que sentiu-se tonta. Apressadamente vestiu seu uniforme de treino, uma roupa justa, mas extremamente elástica, e desceu correndo as escadas, indo até a cozinha.
Chegou lá arfando e suando, quando viu Philip parado batendo os pés e olhando para seu relógio de bolso com uma expressão impaciente, enquanto Merlin dava-lhe um olhar aborrecido.
No momento em que Philip viu Lira, ele guardou o relógio no bolso e sua expressão de raiva tranquilizou-se.
“Ótimo...” Ele caminhou devagar até a jovem. “Levou sete minutos para chegar até aqui, o que faz sobrar ...” Parou por um momento, calculando o tempo. “Três minutos para comer, o tempo de eu ir até a porta.” Passou por ela, ignorando sua expressão de surpresa, indignação e raiva.
“O quê?!” Lira falou virando-se para Philip, incrédula.
“Philip!” Merlin disse num tom firme. Quando ele se virou para ela, sentiu medo da sua expressão de aviso e ameaça.
“Certo...” Submeteu-se depois do breve olhar de sua esposa. “Você tem quinze minutos, vou estar esperando na porta.” Saiu da cozinha apressado e de cara amarrada.
“Obrigado Merlin!” Lira agradeceu com um sorriso.
“Por nada querida, agora venha tomar café.”
Lira comeu com muita pressa várias frutas, um pedaço de pão recheado com manteiga e um copo de café bem quente. Dez minutos depois, ela estava do lado de fora da casa acompanhando Philip enquanto ele explicava o que aconteceria naquele dia.
"Primeiro de tudo, você cuidará dos animais. Para as vacas: dê comida, limpe o celeiro, tire o leite e o guarde no lugar correto. Para as galinhas: dê comida, limpe o galinheiro, colha os ovos e guarde no baú. O mesmo para os outros animais...” Ele contava com os dedos cada detalhe, enquanto dizia. “Depois cuidará das lavouras. Vai arar o que precisar e regar. A partir daí, vamos começar o treino. Entendeu?”
“Sim.” Lira tentava acompanhar Philip, ele ia a passos largos para o celeiro das vacas. Quando chegaram próximos à cerca, ela viu que as vacas já estavam soltas, todas comendo o pasto do chão.
“Comece por aqui então.” O homem afastou-se, caminhando de volta para casa, e Lira olhou para as vacas, um tanto desapontada.
Ela esperava um treino mais desafiador ou cansativo, não cuidar do gado e de outros animais. Não conseguia enxergar a dificuldade naquilo.
“Talvez seja só mais um teste.” Pensou consigo mesma.
Dentro do cercado das vacas, elas olharam desconfiadas para a menina, mas logo voltaram a comer.
Lira tinha de limpar o celeiro primeiro, era uma estrutura alta que ficava bem no meio do cercado, e bem perto dele, havia um poço com um balde velho de latão pendurado e balançando conforme o vento.
A limpeza foi um trabalho lento, que envolveu idas e vindas de baldes e mais baldes cheios de água. Era cansativo, repetitivo e entediante. Feito isso, ela subiu para o segundo andar do celeiro e com muito feno em mãos, encheu cada um dos cochos. Se sentiu satisfeita com o trabalho e agora faltava apenas a ordenha. Depois de ter colocado a comida nos cochos, várias vacas foram aparecendo com o tempo.
Lira ficou tentando ordenhá-las enquanto elas comiam, mas era difícil. As vacas sempre se esquivavam ou tentavam dar um coice nela.
“Merda...” Reclamava consigo mesma. “Isso é cansativo.” Depois de talvez meia hora de trabalho duro, cansativo e cheio de quase coices. Ela havia ordenhado apenas três baldes das mais de quinze vacas presentes ali.
“Espero que isso seja o suficiente.” Pegou os três baldes e derramou o leite em um reservatório de metal que ficava no segundo andar. Seu serviço continuou, então.
Ela passou pelas galinhas, pelos patos, ovelhas, cabritos e porcos. Em cada um a jovem encontrava algum tipo de dificuldade e saía de lá suja e cansada. Faltava apenas um lugar para ela terminar o trabalho, o dos laraltos. Eles ficavam todos soltos dentro de um estábulo bem cuidado e espaçoso, e Lira ficou amedrontada com aqueles animais.
Eles eram esbeltos, com um pelo ralo na cor azul e suas galhadas bem altas e numerosas podiam se assemelhar aos galhos de uma árvore. Até os filhotes tinham chifres impressionantes. Os laraltos eram bem semelhantes a cervos e alces. As grandes diferenças, além das já citadas, eram suas “propriedades mágicas”.
Todos eles olhavam para Lira de cima, pareciam ameaçá-la. Ela recuou alguns passos e bateu as costas em algo. Quando se virou, viu Philip olhando para os laraltos com uma expressão irritada.
“Estão assustando a menina!” Ele falou, a ameaça na sua voz era clara e seu olhar se assemelhava ao de um leão fitando sua próxima presa.
O medo que a ruiva sentia dos laraltos de repente sumiu e ela se sentiu até mais leve. Nem percebeu que não havia respirado uma única vez nesse meio tempo.
“O que foi isso?” Lira perguntava aturdida.
“Laraltos se alimentam de mana...” Disse, olhando preocupado para a garota. “A pressão ao redor deles é uma coisa complicada quando estão com fome.”
“Se alimentam de mana?” Lira parecia confusa e estava com medo de entrar naquele estábulo.
“Depois eu te explico melhor, mas não se preocupe com eles, não precisa limpar seus estábulos por enquanto.” Ele se virou e começou a caminhar para longe dos estábulos e ela foi logo atrás. Sentiu o olhar dos laraltos recair sobre suas costas. “Você não precisa cuidar da lavouras hoje.” Philip comentou.
“O quê... Por quê?”
“Merlin já fez isso.”
“Ela... não é meio velha para esse tipo de coisa?”
“De certo modo sim...” Philip concordou, soando um tanto irritado. “Mas ela é cabeça quente e ficou preocupada com você.”
Quando ouviu isso, a jovem parou. Pensar que Merlin se esforçava tanto, apenas para que a ruiva não se desgastasse, lhe doía o coração. Um ambíguo de impotência e inutilidade a preencheu naquele instante.
“Não se culpe.” O homem disse, percebendo a preocupação de Lira. “Ela sempre ajudou os outros, mesmo quando não ganhava nada com isso, e Merlin pensa que você não aguenta um treino assim.” Ele se virou para a garota com um sorriso travesso. “Mas e se você provar o contrário...”
“Não estou gostando do rumo disso.” Pensou ela.
Philip olhou o relógio de bolso e pareceu contar algo mentalmente, até que seus lábios arquearam ainda mais que antes.
“Certo... isso vai dar certo.” Falou consigo mesmo e se virou para Lira. “Você vai correr ao redor da fazenda três vezes.”
“O quê?!” Ela gritou, mas percebeu seu escândalo e acalmou-se. “Quanto isso vai dar?”
“Bem, a fazenda tem um hectare e meio...”
“45 quilômetros?!” Lira cortou antes que ele sequer finalizasse sua linha de pensamento.
“Você é rápida com contas, hein? Mas sim, são ao todo 45 quilômetros de corrida que você deve cumprir em menos de quatro horas, quando terminar me encontre em casa.” Ele começou a caminhar para longe, assobiando e com uma expressão travessa no rosto.
“Só isso, não vai me dizer mais nada?” Lira gritou irritada.
“Respire no mesmo ritmo dos seus pés.” Falou com um aceno de mão, se afastando cada vez mais.
Lira bufou. Sabia que não tinha escolha senão fazer aquilo, mas em seu íntimo ela queria exacerbadamente socar aquele velho.
Caminhou até a entrada da fazenda, sentindo como se cada passo pesasse muito mais do que devia. A entrada era um simples portão de madeira bem gasta e dos dois lados vários pedaços de madeira formavam um traçado para os limites da fazenda. Ela teria que correr ao redor de tudo aquilo três vezes. Só de pensar nisso, já se sentia exausta.
Respirou algumas vezes, deu uma leve aquecida correndo com sua sombra e, enfim, disparou. O começo foi fácil, ela seguiu o conselho de Philip e respirava no mesmo ritmo dos pés, acostumar-se com esse ritmo foi algo complicado, mas foi apenas uma questão de tempo até que acontecesse.
Começou a suar depois de correr por dez minutos e já se sentia cansada, mas não queria dar uma pausa tão cedo. Levou cinquenta minutos para completar a primeira volta e estava exausta. Conforme chegava perto do portão, viu Philip sentado de braços e pernas cruzados, e com os olhos fechados.
Quando Lira se aproximou do portão ele abriu os olhos para ela e tinha um expressão impassível no rosto.
“Demorou muito, não acha?”
“Se acha que eu demorei...” Cansada, ofegante a ponto de formar uma breve névoa diante seus lábios, continuou: “Por que não vai na frente?”
Philip se calou. Ficou olhando Lira descansar sem mover um músculo. Depois de cinco minutos descansando, ela se preparou para voltar a correr.
“Você parece um pervertido me olhando desse jeito.” Ela voltou a correr do mesmo jeito que antes.
Sentia que desmaiaria a qualquer momento pelo cansaço e pela dor nos músculos. Mas não podia cair, não agora. “Merlin se decepcionaria.” Pensava.
Estava há trinta minutos correndo, quando perdeu o ritmo dos próprios pés, eles bateram um no outro e ela caiu no chão rolando.
Um dos seus joelhos ficou completamente ralado e sujo de terra. A dor se intensificou muito por conta do cansaço e das dores musculares que sentia, mas não podia parar. Se levantou com esforço e voltou a correr.
Levou quarenta minutos para ela chegar na frente do portão de madeira e quando parou para descansar, desabou sobre os próprios joelhos. Não se importava mais com a dor do joelho ralado, o cansaço já havia passado isso fazia tempo. Philip olhava para ela do mesmo jeito que estava antes, sentado e impassível.
“Você está bem?” Perguntou preocupado, apesar de não ter feito esforço algum para ir até a menina. Ela não respondeu, arfava muito mais pesado que antes e não sabia se aguentaria outra volta.
“Eu tenho que aguentar!” Pensava. “Vou aguentar.” Dez minutos depois, se levantou com a mesma dificuldade, como se fosse sua primeira vez andando, e voltou a correr.
A cada passo sentia que cairia. A cada passo seus músculos doíam mais e mais. Aquela foi a volta mais longa das três, levou uma hora e meia para terminá-la e a cada dez minutos de corrida, parava por algum tempo antes de voltar a correr.
Lira foi indo cada vez mais devagar conforme chegava perto do portão e quando chegou, ela caiu na grama e ficou deitada lá. Um sentimento de satisfação tão grande se inflou no seu peito que se falhasse no resto do treino, não se importaria. Ela se entregou ao cansaço e fechou os olhos.
“Quem imaginaria.” Ela ouviu Philip comentar, também ouviu a grama se mexendo e devagar ele se aproximando dela. “Não me passou pela cabeça que conseguiria.” Com cuidado, ele colocou Lira nos braços e começou a carregá-la.
Philip começou a caminhar a passos lentos, e em momento algum Lira abriu os olhos, ela apenas ouvia os passos dele na grama e sua respiração.
Aquela situação era familiar para a garota. Estava em paz e sentia que já havia passado por algo semelhante. Sua mente divagou naquilo até que a porta apareceu. Neste momento, nem sequer conseguia abrir os olhos.
“De verdade, não consigo entender porque quer seguir com isso.” Ouviu o homem comentando ao longe. Ela não tinha dormido, mas não conseguia entender o porquê da porta estar ali. “Está treinando para virar um soldado, vai ver muita gente morrer...” Sua voz estava melancólica e fúnebre. “Incluindo humanos.”
Conforme ele falava, Lira se aproximava da porta. Cada vez mais ela sentia que suas respostas estariam logo atrás.
“Vi todos os meus alunos mudarem...” Ele hesitava enquanto falava, parecia estar chorando. “Tornaram-se frios e não tinham medo de matar, alguns até gostavam.”
A jovem estava de frente para a porta, não se sentia pronta para abri-la, entretanto, sentia que precisava.
“Foi então que eu percebi que eu não era melhor que eles...” Um tom de raiva começou a surgir na sua voz. “Eu matei tanto quanto todos eles. Talvez até mais.” Admitiu com vergonha.
Lira aproximou a mão de uma das trancas da porta, ela fazia um esforço enorme para mover a mão, talvez até maior que o esforço que fez na terceira volta da corrida. Mas aos poucos, ela chegava perto das trancas.
“Não me lembro de ter feito algo de bom na guerra.” Philip falava cada vez mais triste. “Eu pensava que fazia aquilo por um bem maior.” Completou com desdém. “Mas era apenas um ódio vindo de lugar nenhum, contra inocentes.”
A menina agarrou uma das trancas e ela queimava ao toque, mas não porque era quente. Ela parecia tão fria quanto o pior inverno. O esforço que Lira teve que fazer até agora não foi nada comparado a mover aquele trinco.
“Só não enlouqueci porque esqueci do antes da guerra, dos assassinatos, de tudo que era comum.”
Ela finalmente destrancou o trinco e uma voz veio por trás da porta.
“Parabéns Lira!” Era uma mulher, parecia animada e feliz. “Só mais alguns metros.”
Sentiu de repente que algo estava diferente. Pareceu que um estalo havia acontecido dentro de sua cabeça e ela reconheceu aquela voz. Era sua mãe, Laura.