Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

Revisão: Alluna Idle


Volume 1

Capítulo 8: Tem uma primeira vez para tudo

Em um dos quartos da hospedaria em Lilás do Sul, dois faunos discutiam enquanto ajeitavam suas bagagens.

“Aquilo foi assustador.” Um deles disse.

“Aquilo o quê?” O segundo retrucou. “O humano?”

“Sim, eu nunca vi alguém matar outro ser vivo de uma forma tão fria.”

“Nunca matou um pernilongo?” Falou enquanto limpava as mãos depois de ter terminado com suas malas. “Além disso, não entendo porque está tão preocupado. Isso já aconteceu muitas vezes. Esses dias eu vi um humano matar um demônio com uma garrafa de vidro quebrada.”

“Eu sei que é comum... mas eu nunca vi alguém morrer com uma bala da Laralto.” Disse, amedrontado.

Um silêncio fúnebre ficou entre os dois, até que um baque forte veio do andar de cima e ambos olharam para o teto.

“Mas o quê...?” Murmurou um dos faunos.

O barulho constante de algo balançando e se remexendo veio em seguida e os dois demônios começaram a ficar desconfortáveis.

“Bem... acho que vou pegar algumas bebidas com o Konor, já volto.” O segundo falou, pouco antes de sair do quarto.

Enquanto isso, no terceiro andar. 

Arnok desesperadamente tentava evitar que uma adaga de osso ficasse cravada em seu peito.

“Não adianta resistir, garoto!” O homem em cima do jovem falou em um tom baixo, mas com muita raiva. Ele aplicou cada vez mais força e o asa negra já não aguentava mais.

No desespero, o menino convocou chamas em suas mãos e começou a aquecê-las rapidamente, até que chegaram a duzentos graus em menos de um segundo. A temperatura de suas mãos passou para a adaga e dela para as mãos do assassino.

O homem deu um grito agonizante e soltou a arma por instinto, perdendo assim o equilíbrio e cambaleando para trás. Vendo uma oportunidade, Arnok empurrou ele com um chute. 

O homem caiu direto no chão e seu capuz soltou-se, mostrando seu rosto. Ele era o humano que matou o homalupo no bar.

O mais rápido possível, Arnok pulou em cima dele e socou seu rosto. O humano, no entanto, virou a cabeça para o lado e evitou o ataque. Em seguida, ele contra-atacou com um soco nas costelas do garoto.

Ambos disputaram para ver quem ficava por cima, trocando socos - e quase facadas - o tempo inteiro. Até que enfim se desprenderam e afastaram-se um do outro. Os dois arfavam e se olhavam com raiva.

‘Onde diabos está o Hiotum?!’ Arnok gritou em sua mente.

Enquanto isso no térreo. 

Hiotum estava sentado com uma caneca de cerveja na mão. À frente dele estava Konor, e ao seu lado, Galla, com nenhuma intenção de voltar muito cedo para o seu quarto.

 “Hoje cedo esse lugar pareceu um inferno e agora você me vem com a notícia que o Bralude morreu?” Hiotum estava irritado e chateado.

“Eu sei, isso é uma merda.” Konor disse, com um tom fúnebre. Seus olhos estavam vermelhos e marejados. “Um grupo de humanos invadiu Lilás do Sul, e talvez aquele de hoje mais cedo fosse um deles.”

“Se ele era um deles...” Galla comentou, dividindo entre ficar de luto e beber. “Já deve estar longe daqui.” Tomou a bebida no copo e cambaleou levemente para o lado.

“Konor!” Da escada, um fauno desceu gritando. “Me vê dois canecos de bebida, fazendo favor.”

“Certo.” Konor se afastou de Hiotum e Galla, e foi em direção ao seu balcão.

“Konor, que horas são?” O fauno se aproximou do balcão e perguntou.

“23:30, por quê?”

“Então, será que pode falar com os caras no andar em cima do meu? Eles estão fazendo barulhos estranhos demais.”

“Certo, qual o seu quarto mesmo?” Konor começou a encher duas canecas de madeira com cerveja.

“21B.”

Konor parou abruptamente e pensou se o que ele ouviu estava de fato correto.

“O 21C só tem duas pessoas...” Konor comentou, virando-se lentamente. “E uma delas está aqui.”

“O que tem meu quarto, Konor?” Hiotum comentou.

“Não sei quem é seu colega de quarto, mas ele está fazendo alguma coisa estranha no quarto, se é que você me entende.” O fauno comentou, tentando parecer engraçado.

“Meu colega de quarto é um garoto de quatorze anos. Algo não parece certo.” Hiotum levantou-se apressado.

“Tem uma primeira vez para tudo, meu caro. A minha foi com doze anos.” O fauno comentou, ainda tentando parecer engraçado.

“Konor e Galla, venham comigo!” Hiotum falou.

“Certo, já vou.” Konor saiu de trás do balcão e já estava acompanhando Hiotum.

“Logo atrás de você.” Galla disse.

“Mas... e a minha bebida?” O fauno parecia meio chateado.

Os três subiram as linhas de escadas, com muita pressa.

Enquanto isso, no quarto 21C.

O humano se aproximou em menos de um segundo e desferiu um soco no estômago de Arnok, não lhe dando tempo para reagir.

 O soco fez o garoto se contorcer de dor e envergar. Aquele homem, no entanto, não parou por ali, dando mais um chute em seu rosto. O pobre asa negra caiu no chão e mais um golpe veio em seguida. Seu agressor chutou-o com toda sua força no estômago, o empurrando para longe.

“Vocês demônios são mais fracos do que aparentam, não é?” O humano comentou, caminhando lentamente até Arnok, que estava cuspindo saliva junto ao sangue. “Só porque podem usar magia, acham que são grande coisa.” Parou bem perto do jovem, olhando-o de cima com desdém. “Isso foi entediante.”

Em uma explosão de raiva, Arnok chutou o joelho do humano com toda sua força, quebrando-o no processo. Uma dor agonizante passou por todo o corpo do humano e ele perdeu o equilíbrio, caindo no chão.

Arnok pulou para cima dele de novo e agarrou a cabeça do homem com as duas mãos e começou a focar o mais rápido que podia. 

“O que vai fa...”

Arnok imaginou suas mãos acendendo em chamas e assim elas fizeram. Em um piscar de olhos, o quarto foi iluminado pelas chamas e elas queimaram o rosto do humano. Ele gritou e se contorceu de dor.

“Seu...” Com toda a força que tinha, o assassino tentou alcançar o coldre do lado direito no seu corpo. “...desgraçado!” Ele puxou o mesmo revólver que matou o homalupo no começo do dia.

Arnok reagiu se concentrando ainda mais e aumentando o calor de suas chamas. O grito de dor vindo do humano foi ainda mais alto que antes.

Tão alto que Hiotum ouviu das escadas.

“Merda!” Hiotum começou a correr enquanto Galla e Konor tentavam acompanhá-lo.

Eles chegaram ao quarto 21C e escancaram a porta com tudo. Konor ficou aterrorizado, Galla quase vomitou e Hiotum ficou pasmo. O cheiro de pele e cabelo queimado era insuportável. Hiotum então viu Arnok com as mãos em chamas largadas ao lado do corpo e arfando, em cima de um cadáver com a cabeça completamente queimada.

“Arnok...” Hiotum estava aterrorizado, assim como Galla e Konor. “O que... aconteceu?”

Lentamente, Arnok olhou para Hiotum. Ele estava acabado. 

Era difícil para Hiotum classificar, e ele sentia-se culpado. O olhar de inocência que Arnok tinha nos dias anteriores, o olhar de alguém com um grande sonho desapareceu num instante. No lugar, parecia um olhar pesado, infeliz e desesperado. 

“Eu... Eu... Eu...” Arnok não conseguia falar direito e parecia cada vez mais desesperado, e em choque. Hiotum rapidamente se aproximou e se abaixou. Colocou a cabeça dele em seu peito e o abraçou. Suas asas dificultavam, mas isso não importava agora.

Apesar do leve cheiro de álcool, era aconchegante e quente. Arnok se sentiu seguro como nunca e desatou a chorar.

“Está tudo bem.” Hiotum acariciava levemente os cabelos do garoto, tentando acalmá-lo, e tentou ao máximo esquecer o sentimento de culpa que sentia. “Está tudo bem.” Não podia se culpar por aquilo. Não agora, pelo menos. “Você não teve escolha.”

“Eu...” As lágrimas de Arnok eram tantas que as palavras lhe saíam com dificuldade. “Podia... ter gritado por ajuda... podia ter feito... alguma outra coisa.” Ele se agarrou ainda mais forte em Hiotum.

“Alguém me disse que existe uma primeira vez para tudo. Isso alguma hora ou outra iria acontecer, Arnok. Principalmente com o caminho que você está seguindo.”

Eles ficaram daquele jeito por algum tempo, até que as lágrimas de Arnok começaram a diminuir e ele se acalmou. Seu nariz continuava escorrendo, mas parecia mais calmo que antes.

“Konor.” Hiotum se virou para seu amigo, que parecia preocupado. “Traga alguma coisa quente para o Arnok, por favor.”

“Certo.” Konor saiu correndo e desceu as escadas de três em três degraus, com Galla indo logo atrás.

“Arnok, vamos comer alguma coisa.” Hiotum sugeriu. “Acho que isso vai melhorar seu humor.”

Arnok não respondeu, mas aos poucos se soltou de Hiotum e se levantou com a ajuda dele.

Os dois lentamente desceram as escadas e quando chegaram ao térreo, o fauno que veio pedir cervejas anteriormente levou um susto.

“O que diabos aconteceu?!” 

“Não te interessa” Hiotum respondeu, irritado. Eles ignoraram aquele fauno e se sentaram em uma mesa.

Depois de uns trinta minutos em um silêncio desconfortável e fúnebre, Konor trouxe um prato com um ensopado de carne e salada. Enquanto comia, Arnok olhou cabisbaixo para o próprio prato.

Um bom tempo se passou depois que ele terminou de comer e o silêncio anterior voltou. Hiotum olhava para ele, preocupado.

“Acha que consegue me explicar o que aconteceu?” Perguntou. Ele recebeu o silêncio e um rosto sem qualquer reação como resposta.

‘Droga!’ Hiotum começou a pensar. ‘Se por causa de um assassinato ele ficou assim... Talvez ele não aguente se tornar um mago de batalha.’

Ele estava prestes a dizer que ficaria na cidade por mais algum tempo, quando o jovem finalmente falou.

“Ele entrou no meu quarto enquanto eu dormia...” Contou em detalhes o que aconteceu. Comparado à antes, sua voz parecia bem menos abalada, mas seu olhar não mudou, eram os mesmos olhos desamparados. A explicação levou um tempo considerável e sua expressão continuou a mesma até o fim.

“E como você...” Hiotum se sentia desconfortável ao perguntar isso. “... se sente?”

“Me sinto... Me sinto...” Arnok hesitou. Ele não sabia expressar o que estava sentindo. “Não sei, de verdade, Hiotum. Me sinto culpado, mas sei quem era aquele cara, sei o que ele fez e também sei que o que eu fiz foi autodefesa e necessário. Mas ainda assim...” Depois de muito tempo ele olhou para os olhos de Hiotum. Arnok parecia finalmente ter perdido um pouco do olhar de desamparo. “Não consigo me sentir bem o que eu fiz.”

Hiotum começou a rir alto e continuou assim por um tempo. Konor e Galla estranharam, e Arnok se sentiu ofendido achando que seu próprio mestre estava rindo da sua situação. Ele parou de rir e deu um suspiro aliviado.

“Me sinto melhor agora...” Hiotum se explicava agora que percebeu que havia se empolgado e ofendido Arnok. “Em saber que não perdeu a cabeça por isso. Acredite quando eu lhe digo isso, Arnok: você vai matar mais vezes! Vai se se tornar um mago de batalha, um exemplo de uma máquina de matar.”

 Ele deu uma pausa vendo se Arnok prestava atenção nele.

 “Alguns matam tanto que perdem a sanidade e começam a gostar, já outros deixam de se preocupar com isso.” Ele se levantou, se aproximou de Arnok e tocou seu ombro. “Quero que sempre se lembre dessa sensação. Não ache que matar será prazeroso. Você não deve ter medo de matar, deve ter medo de gostar.”

Arnok ouviu atentamente cada palavra, por mais que para ele não fizesse sentido. Não achava que algum dia gostaria de matar, mas o tom de preocupação de Hiotum, seu olhar, seu jeito, tudo fazia com que aquela mensagem ganhasse um peso descomunal para ele.

“Entendeu?” Hiotum perguntou.

“Sim. Vou tentar.”

“Você não vai tentar. Vai conseguir.” Ele soltou a mão do ombro do jovem e voltou a se sentar, com sorriso e olhar de satisfação. “Konor, que horas são?” 

“Uma da manhã.” Konor falou. Seu tom era de preocupação, apesar de não olhar para os dois.

“Certo. Arnok, acha que consegue dormir?”

“Duvido que consiga.”

“Então vamos tentar passar o tempo com alguma coisa.” Hiotum tentava animar Arnok, gesticulando as mãos e abrindo um sorriso animado. “Vamos sair amanhã perto do almoço, temos muito tempo até lá.”

“Konor.” Hiotum se virou para ele com um olhar de dúvida, mas com o sorriso de uma criança. “Ainda tem o baralho de Reis e Santos?”

“Óbvio que sim.”

“Então chame Galla e vamos jogar com o Arnok.” Hiotum se virou alegremente para Arnok. “Vou lhe apresentar ao melhor jogo de cartas desse mundo, Arnok.”

Os quatro se sentaram em duplas, Konor com Galla e Hiotum com Arnok, e passaram um bom tempo ensinando-o a jogar. Quando ele finalmente entendeu, mostrou-se um jogo interessante e bastante estratégico. 

Depois de sete pontos perdidos, Arnok finalmente ganhou uma rodada.

“Finalmente.” Disse aliviado, ele parecia bem menos abalado agora. Seu olhar ainda estava desamparado, apesar de tudo. “Como esse jogo pode ser tão difícil?”

“Não é difícil.” Konor falou pegando as cartas de cada um e as colocando de volta no baralho. Ele detinha o maior número de pontos. “É complexo, principalmente nas rodadas de recrutamento...” 

Enquanto entregava as três primeiras cartas de cada um naquela nova partida, continuou explicando. 

“Deve escolher as tropas certas para jogar na luta pela fronteira e as certas para descartar.” Ao olhar as próprias cartas ele abriu um sorriso arrogante. “Mas também existe sorte...” Quando mostrou a própria mão para a mesa, todos ficaram com um olhar frustrado, irritado ou surpreso. “Por exemplo, tirando os três Santos, todos na mesma mão.”

“Mas que merda!” Hiotum gritou. “Já é a segunda vez que você consegue fazer isso.”

“Isso é sorte, meu velho amigo.” Falou enquanto entregava as próprias cartas para Galla, já que ela embaralharia nesta rodada. “A boa e velha sorte.” 

“Não é sorte tirar duas vezes as três melhores cartas num jogo com um baralho de 120 cartas. Isso é trapaça!” Hiotum reclamou.

“Falou o cara que fazia isso sempre que possível na época da academia.” Galla comentou enquanto entregava a última carta.

“Eram tempos diferentes, Galla. Às vezes não dava certo e perdíamos para o Morpheus. Ele era um monstro neste jogo.”

“Ele era um monstro como comandante...” Konor comprou uma carta do baralho e descartou outra. “E por que não seria, quando estamos em um jogo que simula táticas militares?”

“Porque é um jogo de cartas, não um campo de batalha.” Hiotum comentou de forma sarcástica enquanto comprava duas cartas e não descartou nenhuma.

“Me pegou nessa.”

Desse ponto em diante, eles continuaram jogando até o amanhecer. Arnok conseguiu vencer seis vezes, e no final o vencedor, por incrível que parecesse, foi o Hiotum. Ele teve uma onda de sorte com a sua mão e venceu quatro vezes seguidas, ultrapassando o Konor.

“Essa partida foi ótima!” Hiotum comemorou.

“Acho que sim...” Konor olhou o relógio de bolso e se levantou da cadeira. “05:30... Galla, vá chamar as meninas. Vamos abrir logo.”

“Certo!” Galla saiu de perto da mesa enquanto soltava um longo bocejo.

A mesa ficou silenciosa por um tempo. Arnok olhava as próprias mãos, enquanto Hiotum observava Konor trabalhar no balcão e Galla ajeitando as mesas, junto das outras sakyubasu da hospedaria.

“Muita coisa aconteceu, não é?” Hiotum estava com um sorriso no rosto, mas ele passava o ar de alguém em luto. O asa negra, em contrapartida, não falou nada, mas afirmou com a cabeça.

“Como se sente?”

“Me sinto bem.” Era uma meia verdade, ele ainda sentia algo ruim no peito, mas não queria falar para Hiotum, pois já o preocupara demais.

“Certo.” Ele se levantou da mesa e alongou os braços e as pernas. “Vamos tomar café, ajeitar nossas coisas e na hora do almoço vamos embora.”

“Entendi.” Arnok assentiu e Hiotum se afastou da mesa, deixando o pequeno demônio sozinho com seus próprios pensamentos

Não importava o quanto tentasse, a mente de Arnok não afastava o ocorrido. O cheiro de cabelo e carne queimada ainda estavam claras em sua mente. 

Era um sentimento estranho para ele. Olhar as próprias mãos com nojo e repugnância, como se elas fossem as culpadas de tudo o que aconteceu. Foram elas que agiram por instinto. Foram elas que mataram um homem, queimando sua cabeça a mais de 300 graus de temperatura. Foram elas que deixaram um gosto horrível no íntimo de Arnok, um gosto que ele nunca vai esquecer.



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