Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

Revisão: Alluna Idle


Volume 1

Capítulo 10: Minhas mãos são as culpadas

Em um celeiro velho e caindo aos pedaços, um humano inquieto andava de um lado para o outro, roendo as próprias unhas e olhando de minuto em minuto para o relógio.

“São três da manhã… e Maike ainda não voltou!” Murmurou. A raiva e a apreensão acumuladas em seu peito o fizeram dar um soco em um pilar próximo, fazendo todo o lugar tremer. “Mas que merda!”

“Senhor, trago o relatório.”

Eis que então, saindo das sombras, um homem de meia idade com cabelos castanhos e uma máscara que tampava metade do rosto, ficou sobre os próprios joelhos com total respeito ao sujeito à sua frente.

“Descansar.” O homem inquieto disse, o outro presente na sala se levantou. “Quero os mínimos detalhes, Victor.” 

“Descobrimos que Maike estava procurando uma estalagem para nós ficarmos, como lhe foi ordenado.” Explicava sem olhar nos olhos do seu superior e com o mínimo de hesitação. “Ele causou problemas em todas que entrou, mas na última ele matou alguém.”

“O Maike matou um demônio?!” O superior perguntou irritado.

“Sim senhor.” Sem perder o olhar impassível no rosto, continuou o relatório. “Ele encontrou algo nessa estalagem que o fez voltar. Depois disso não tivemos mais informações.”

“Sabe o que ele foi procurar naquele lugar?”

“Nosso chute senhor...” Ele completou, com medo da palavra que usou. “É que ele descobriu um alvo secundário e tentou matá-lo, talvez um nobre de passagem.”

“Esse tipo de coisa é fácil de se confirmar.” O superior falava irritado. “Se vocês chutam que é um nobre, é porque não vasculharam o suficiente. Não volte até ter algo concreto e envie os pombos aos outros grupos, temos que seguir o mais rápido possível para a capital.”

“Não vamos instalar influências em Lilás do sul, senhor?” 

“O fato do Maike ter matado alguém e ter causado problemas aqui vai dificultar tudo. Agora, dispensado.”

“Entendido!”

Da mesma forma que veio, o soldado foi embora, desaparecendo nas sombras sem deixar rastro algum. O superior deu um longo suspiro.

“Essa missão já está sendo difícil e sequer alcançamos os nobres.” O superior desabafou para si mesmo.

Nove horas depois disso, bem longe dali, Arnok arrumava suas coisas na carroça de Hiotum. Tentava ao máximo não pensar sobre a noite passada, mas era muito difícil. Suas mãos tremiam e suavam o tempo todo.

“Falta mais alguma coisa, Arnok?” Hiotum perguntou. Com pressa, o garoto guardou as próprias mãos nos bolsos, tentando esconder a tremedeira.

“Acho que mais nada.”

“Ótimo. Vou ir me despedir do Konor, quer vir?”

“Não, vou esperar aqui.”

“Certo...” Ele se virou e afastou-se da carroça.

Hiotum caminhou de volta para dentro da estalagem e aquele lugar já estava lotado. Todos eram trabalhadores que vieram almoçar ou passar o tempo. Caminhou entre as mesas até chegar no balcão, onde Konor conversava com um demonkin alto e parrudo. Ele tinha uma deformidade branca no rosto entre suas escamas de carbono, uma ferida feita por bala de laralto.

“Concluiu o serviço?” Konor perguntou num sussurro para o demonkin.

“Sim senhor, descartamos o humano fora da cidade.” A voz dele era grave e arranhada, bem estranha aos ouvidos.

“O que ele tinha guardado?” Hiotum se intrometeu na conversa.

“Senhor, isso é parti...”

“Tudo bem...” Konor cortou o demonkin. “Ele é amigo meu.”

“Certo...” O demonkin se virou para Hiotum, sua ferida parecia ainda pior quando vista de perto. “Ele tinha um distintivo de classe.”

“Qual era o nível?” Hiotum perguntou. Ele evitava olhar para a ferida, aquilo o lembrava dos seus dias na guerra.

“Alta patente, segunda divisão.”

“E a classe?” Complementou a pergunta, apesar de já saber a resposta.

“Assassino.”

“Imaginei.” Suspirou com as ideias que se formavam na sua cabeça. “Pelo nível dele, não deve ser um cara só, Konor.” Ele se virou para o seu amigo, preocupado.

“Sim, pensei a mesma coisa.” Konor disse, divagando nas próprias ideias “Valtum, está dispensado.” 

O demonkin levantou-se sem dizer nada e saiu da estalagem, alguns olhares de medo e curiosidade o acompanharam.

“Bem...” Hiotum quebrou o silêncio enquanto abria um pequeno sorriso. “Vou voltar para a capital.” 

“Tem certeza? O enterro do Bralude vai ser em quatro dias, devia participar.” Konor falou num tom meio fúnebre. 

“Eu sei, mas preciso informar aos outros sobre esse caso...” Hiotum perdeu seu sorriso e relutava enquanto dizia aquilo. “E o Arnok precisa entrar na academia.”

Um ar fúnebre ficou entre os dois. Eles sentiram tudo ficar mais cinza, mesmo com todas as pessoas se divertindo ao redor. Ambos perderam um amigo de longa data, para algo que nenhum deles entendia.

“Bem, até!” Hiotum se virou antes que as lágrimas começassem a cair. Ele se sentia sobrecarregado por dentro, queria muito chorar pela morte do amigo. Mas não era o momento.

“Nos visite logo.” Konor falou. Diferente de Hiotum, ele não queria chorar. Sentia-se culpado, pensava que podia ter feito mais do que apenas limpar corpos e servir cerveja.

“Konor, desce mais uma rodada aqui!” Alguém numa mesa distante gritou para ele.

“Certo!” Com um sorriso falso e uma vontade imensa de socar a parede, ele entregou sete copos para aquela mesa.

Do lado de fora, Hiotum se sentou ao lado do jovem asa negra. Ambos tentavam pôr um sorriso no rosto, apesar de tudo.

“Para a universidade então.” Os cavalos começaram a andar depois de receberem suas ordens.

Levou algum tempo para eles saírem da cidade e o posto de vigia que eles pegaram estava um caos, com sete demônios vigiando o lugar. Conseguiram sair de lá facilmente, apesar disso.

A viagem foi um tanto desconfortável para os dois. A noite já ameaçava cair e eles não trocaram uma palavra, em momento algum. Hiotum tirou a carroça da estrada e desceu.

“Vamos acampar aqui.” Falou para Arnok. A noite deles foi curta a partir daí. Arrumaram o acampamento, comeram e foram dormir. Sem dizer uma mísera palavra.

Apesar do cansaço, o garoto não conseguia dormir. Sua mente estava agitada demais e foi difícil agir como se nada tivesse acontecido. Ele estava deitado com as mãos nos bolsos, era descontável olhar para elas. Sem perceber, acabou dormiu e começou a sonhar.

Ele olhava para as costas de um asa negra, que parecia não ter percebido sua presença.

“Ei!” Arnok o chamou.

O desconhecido se virou e Arnok sentiu uma felicidade gigantesca depois de muito tempo

“Hills!” Um sorriso abriu no rosto e começou a correr na direção do irmão. Hills também havia aberto um sorriso.

Mas, de súbito, seu olhar ficou sem vida. Uma lâmina atravessara sua garganta e sangue jorrava para todos os lados, enquanto o outro caiu para trás. 

A lâmina cortou lateralmente, fazendo a cabeça sair do corpo. Atrás de Hills estava um homem alto vestindo uma armadura branca.

Arnok se lembrava perfeitamente daquele homem. Aquele sujeito na frente dele era o mesmo que matou sua família. Começou a se afastar desesperado, tentando invocar suas chamas o tempo inteiro.

“Monstro!” Gritou para o sujeito. “Assassino!”

O humano correu na direção do menino e pisou em seu peito, deixando-o contra o chão. Ele olhou para o asa negra preso debaixo dos seus pés com escárnio.

“Como pode me chamar dessas coisas?” Sua voz era grave e retumbava no fundo da cabeça de Arnok. “Suas mãos também estão sujas de sangue!”

“Não é verdade!” Arnok retaliou usando toda sua força para fazer o homem cair, de alguma forma aquilo deu resultado e o humano tombou para trás. 

O mais rápido que conseguiu, Arnok pulou para cima do sujeito e agarrou sua cabeça. Porém não era mais o assassino dos seus pais. Mas sim o mesmo homem que Arnok matou, ele tinha um sorriso cheio de desdém.

“Você tem certeza?!” Conforme o humano falava, um cheiro forte de queimado começou a surgir no ar e sua cabeça incendiou-se. “Porque você me agarrou da mesma forma que ontem.” A pele derreteu e Arnok não conseguia tirar suas mãos. No instante seguinte estava preta como carvão e o cheiro de carne queimada era repulsivo.

Ele soltou a cabeça daquele cadáver e olhou para as próprias mãos. As duas estavam em chamas e não conseguia apagá-las.

Sentia como se aquelas chamas fizessem parte dele e começou a olhar para as próprias mãos com horror, medo e raiva.

“Você...” O cadáver se levantou e sua voz estava amedrontadora. “Não é...” Como um vulto, ele surgiu na frente de Arnok com o dedo indicador no meio de sua testa. “Melhor que os humanos que tanto odeia.” O cadáver fez força e o dedo atravessou a cabeça.

Uma dor agoniante passou por todo o seu corpo num único instante, fazendo o garoto gritar.

“Não é melhor.” O cadáver sussurrou nos seus ouvidos. Foi então que ele acordou.

Arfava e suava, com uma enxaqueca forte passando em sua cabeça. O sol já raiava e Hiotum estava jogando água nos restos de fogueira da noite passada. Quando viu a agitação do Arnok, foi correndo para seu lado.

"Ei, se acalme!” Colocou a mão nas costas dele, seu coração estava tão agitado que dava para sentir. “O que aconteceu?”

“Hm...” Ele gaguejava. Sentia-se tão abalado que as palavras lhe saíam com dificuldade. “Pesadelo... foi...” Engoliu em seco só de lembrar. “Horrível...”

“Vou pegar água!” Hiotum foi correndo até a carroça e voltou carregando um copo de madeira escura. “Beba!”

O tempo todo homem ficou sentado ao seu lado até ele se acalmar. Ficaram desse jeito por algum tempo. O mestre olhava preocupado para seu discípulo, que tremia ao lado, com medo de olhar para as próprias mãos. Levou um bom tempo até ele melhorar.

“Sente-se mais calmo?” Hiotum perguntou.

“Sim.” Cambaleando, Arnok se levantou e começou a andar na direção da carroça. A enxaqueca ainda não havia passado e ele se sentia tonto.

“Arnok, sente-se. Não está em condições de andar.” Hiotum soava preocupado, não imaginava que Arnok ficaria daquele jeito.

“Não.” Ele soava sério e a cada passo, sua enxaqueca parecia piorar. “Temos que seguir viagem para a universida...” Ele sentiu sua pressão cair e tombou direto para o chão.

“Arnok!”

Foi a última coisa que ouviu antes de desmaiar. Quando abriu os olhos, sentiu o balançar leve da carroça. Estava deitado na parte de trás, encoberto em diversas peles de animais e, devagar, ele se levantou. A enxaqueca ainda não havia passado, mas a tontura tinha sumido.

“Como está?” Hiotum perguntou, sentado na frente da carroça.

“Ainda estou com enxaqueca. Quanto tempo apaguei?”

“Só uma meia hora, ajeitei as coisas enquanto você dormia.”

“Certo.” Ele sentou-se com as costas apoiadas numa caixa e não olhou para as próprias mãos. “Sabe dizer quanto tempo até chegarmos na capital?”

“Meio dia se tudo correr bem. Escute, Arnok, estou curioso sobre algo.” Hiotum se virou e olhou nos olhos dele. “Quantos dos livros você leu?”

“Acho que nove.” Falou, sentindo dor pelo esforço de exercitar a memória.

“E leu o caminho para ser um mago de batalha?”

“Não.”

“Então leia nesse meio tempo. Acho que você vai aprender algumas coisinhas com aquele livro.”

Arnok, cambaleando pelo balanço da carroça, procurou, dentre os diversos livros, o exemplar que Hiotum mencionou. Não foi difícil, já que aquele era um dos poucos livros com o título escrito na capa. Encostou de novo as costas nas caixas e começou a folhear o manuscrito nas suas mãos.

O livro foi escrito por Kanrai Adenrro. Ele se apresentou como um nobre da linha direta da família Folha de Carbono, alguém poderoso que havia vivenciado muitas coisas.

Estava escrito no livro: Sou alguém que comandou exércitos inteiro.  Alguém que esteve ao lado do primeiro rei dos demônios. Alguém que comandou a família nobre mais poderosa por muito tempo, quem estou querendo enganar, sou o motivo daquela família ser tão poderosa.

Arnok achou Kanrai um arrogante sem escrúpulos, mas então uma surpresa veio:

Mas cometi um erro, um grave erro. Eu não me tornei o melhor mago de batalha. Aprendi muitas coisas estando ao lado do rei. Eu poderia levar seus conselhos e ensinamentos para a vida toda, mas não é o bastante, os que vierem depois de mim devem saber disso também. Por isso escrevo esse livro, um guia para aqueles que querem ser magos de batalha.

O livro era bem mais do que isso.

Kanrai contou a história de diversos magos de batalha, suas estratégias, os motivos para serem tão fortes e vários outros detalhes. Falou sobre técnicas de magia e o quanto elas eram supervalorizadas por pessoas comuns.

Não ache que uma técnica de magia o tornará poderoso. São poucas as que de fato são úteis e elas não estão nas mãos dos comuns, mas sim com os nobres. Isso pode até te desmotivar, mas se lembre desse conselho que vou te dar. Magia não é mana, magia é controle.

Aquela frase, por algum motivo, fixou-se na mente de Arnok. Ele viu com outros olhos os nomes que Kanrai havia citado antes. Percebeu que já não pensava mais sobre seu pesadelo ou sobre suas mãos.

“Arnok!” Hiotum o chamou.

“Sim?” Perguntou sem tirar os olhos do livro.

“Chegamos.”

Surpreso com aquilo, Arnok guardou o livro e foi o mais rápido possível para o banco da frente. Ele escancarou a boca.

A cidade era rodeada por um muro de talvez vinte metros de altura, que se estendia até onde a vista alcançava, feito de grossos blocos de pedra e, no topo, dava para ver vários soldados fazendo patrulha. O portão era tão grandioso quanto.

“Aqui já é a capital?” Arnok perguntou, sentindo-se um idiota por fazer uma pergunta dessas.

“Não exatamente, aqui é a periferia.” Hiotum respondeu.

“Parados!” Alguém gritou do alto do muro. 

Hiotum parou a carroça e esperou. Depois de algum tempo um oficial trajando algumas peças simples de armadura e uma cota de malha veio correndo do portão para o lado da carroça.

Ele arfava depois daquela breve corrida. Era um sujeito jovem, com talvez menos de vinte anos, e sua longa cauda peluda na cor bege entregou sua raça, um simiomono.

“Qual o motivo da vinda dos senhores?” Recuperando o fôlego, questionou.

Hiotum não disse nada. Apenas procurou nos seus bolsos um emblema de ouro cheio de entalhes, e mostrou para o simio na sua frente. 

“Estou retornando para a academia.”

Quando o soldado viu o emblema, uma expressão de surpresa apareceu no seu rosto e rapidamente ficou em posição de respeito. 

“Desculpe-me pela insolência, senhor. Seja bem vindo de volta!” O soldado disse. Uma gota de suor passou no seu rosto e engoliu em seco. 

“Oras, não se preocupe com isso. Descansar.” Hiotum falou, balançando as mãos, dispensando toda aquela formalidade. O soldado relaxou ainda um mínimo de respeito por Hiotum, foi então que ele viu Arnok.

“Desculpe a ousadia senhor. Mas quem é o sujeito do seu lado?”

“Ele é meu novo discípulo.” Hiotum afirmou, abrindo um grande sorriso. O sujeito arregalou os olhos como resposta. “Podemos passar então?”

“Oh, sim.” Ele se virou de volta para o muro e colocou as mãos ao redor da boca e gritou: “É o Hiotum, podem liberar.”

O grande portão abriu rangendo. Todo aquele tamanho fazia Arnok pensar como eles conseguiam abrir aquilo.

“Seja bem-vindo de volta senhor, e tenha um bom dia!” O soldado falou, saindo de perto da carroça e liberando a passagem.

“Para você também.” 

Eles começaram a adentrar na cidade e Arnok estava muito ansioso.



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