Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

Revisão: Hide


Volume 1

Capítulo 34: Traição

 

Passava um certo desconforto a maneira como Hiotum olhava para a mesa de criação de Arnok. Ao mesmo tempo que olhava desconfiado para ela, ele mantinha um olhar orgulhoso para com seu discípulo. No entanto, a falta do seu comum sorriso, ou das palavras de apoio tornou aquilo tudo levemente falso.

“De fato interessante…” Ele comentou conforme afastou-se.

Por mais que Arnok tenha percebido tudo isso, não conseguiu ficar com raiva ou sentir qualquer coisa contra Hiotum. Ele estava confuso sobre o porquê de sua mesa de criação ser uma bigorna em chamas.

Levou algum tempo para que todos tivessem revelado suas próprias mesas. O próximo, depois de Arnok, foi Vincent e estranhamente, sua mesa de criação era um circuito elétrico ligado a uma lâmpada.

Depois disso, todos começaram a demonstrar suas próprias mesas. Algumas eram “genéricas”, como a de Hiotum, e outras eram ainda mais estranhas do que a de Vincent. Como a “mesa” de Kaesar.

Depois que um brilho verde-musgo surgiu à sua frente, aquilo se deformou e se concentrou numa esfera perfeita. Até que, mais uma vez, o brilho perdeu seu formato e ficou cada vez mais achatado e colorido.

Eis que então, surgiu à frente de Hiotum e Kaesar uma bola de brinquedo para cachorros. Tinha como um todo o verde-musgo da mana de seu dono, mas tinha duas manchas impressas nela, ambas com colorações diferentes. Uma negra como piche, e a outra vermelha como sangue.

“Bem…” Hiotum começou a dizer. “Melhor deixar o termo mesa entre aspas.” Ele deu uma risada curta e Kaesar ficou levemente envergonhado por aquilo. 

Ele devagar passou por cada um dos alunos, fazendo comentários curtos sobre suas mesas e depois de tudo isso, voltou ao centro do anfiteatro. Onde tinha a atenção de todos os alunos. 

“Agora que vocês possuem suas… mesas, vou lhes explicar, de fato, o que é criar magia.” Ele ficou em silêncio por um breve instante, enquanto pensava nas suas palavras seguintes para que fossem as mais entendíveis possível. “A criação de magias é um processo feito em etapas, independente do caminho que você tomar.”

Diferente de antes, agora ele transcrevia cada palavra dita para o “quadro”. As mais importantes, como magia e processos, ficavam em destaque, com a letra sendo mais nítida que a das outras.

“E existem dois tipos de caminhos aqui, que por eu estar com fome, vou usar como exemplo receitas de bolo.” Disse se virando para a turma. “Existe o processo de enfeite, ou mais conhecido como pré-conceito. Minha mãe costumava comprar bolos prontos para decorá-los ou recheá-los em casa. Aqui não é muito diferente, tirando a parte do bolo.”

Coincidentemente, sua barriga roncou alto naquele exato momento e aquilo surpreendeu a turma, fazendo todos eles rirem. 

“Eu disse que estava com fome… Mas bem, a diferença aqui é que você pegará conceitos de magias que já conhecemos e os usará de base para algo novo. E no momento, é algo complexo demais para vocês. Então partiremos para o segundo caminho. A receita de bolo, ou também conhecida como…” Se virou para escrever na lousa três grandes palavras. “Método de criação!”

Foi uma longa explicação, que ocupou grande parte da aula. 

O método de criação consistia em ordenar os principais itens e ingredientes de uma magia e colocá-los todos na mesa de criação. 

Quanto mais complexa uma magia, mais itens e ingredientes ela precisaria e sua criação se tornaria cada vez mais complicada, instável e maior seria o gasto com a mana interna.

“Existem algumas maneiras de se evitar isso. A primeira e melhor delas, devo admitir, é a lista de itens… Obviamente, os magos mais famosos e poderosos davam nomes ofuscantes e enfeitados, como ingredientes da criação, ou ainda senmakula mediumo. Mas tudo isso se resume a uma série de coisas que devem, enfoque nisso, existir em sua magia.” 

Depois de escrever tudo isso no “quadro” ele virou-se para a turma e se deparou com alunos concentrados como animais olhando a própria presa.

“Os mesmos magos que eu disse tinham listas enormes, de mais de dez, ou vinte itens. Mas serei sincero com vocês, é possível criar todas aquelas magias com apenas seis ingredientes, e eu já apresentei três deles a vocês.”

Começou a escrever no quadro um tópico de seis itens. Os três primeiros eram os já citados no exercício da flecha; tamanho, formato e gasto. Depois disso ele escreveu os outros, ao mesmo tempo que os explicava. 

O quarto era o elemento. Como o próprio já dizia, você pensaria no principal elemento daquela magia, e se fosse mais de um, deveria pensar nele também. Dentre a lista gigantesca de elementos, dos mais de 87 conhecidos, os mais importantes eram os diretamente relacionados a sua magia.

Em uma flecha de fogo, você não deve pensar no oxigênio e no carbono gerado nessa reação, pense apenas no fogo, como algo único e isolado. 

O quinto era estado físico. Elementos no geral podiam assumir diversas formas físicas, pensando não somente no sólido, líquido ou gasoso. Hiotum usou de exemplo seu controle sobre a eletricidade.

“Como denominar o estado físico do raio?” Ele perguntou a todos na turma. “Não é algo exato nessas situações, então o melhor a se fazer é criar conceitos próprios para esses estados, ou simplesmente juntar o quarto item com o quinto item.”

O sexto item foi algo que se divergiu do resto. Enquanto todos determinavam a forma e o gasto que a magia, o sexto item era sobre o seu “objetivo”. 

“Existe uma regra não escrita sobre todas as coisas, você as cria para cumprirem algo. Com as magias, isso não é diferente. Aqui vocês devem literalmente pensar no papel que sua magia desempenhará. Seja ela curar alguém, assistir com algo, ou destruir esse algo. O importante aqui é ter em mente o que você fará com esta magia.” Enquanto dizia isso, ele puxou do bolso um relógio dourado e aparentemente bem antigo, e suspirou ao olhar para ele. “E eu até pediria para fazermos uma aula prática agora. Mas vocês tem aula de combate.” 

Todos ficaram meio decepcionados com aquilo. Mas ainda assim, se levantaram para seguir Hiotum pelos corredores para chegarem a próxima aula.

Eles estavam formando a mesma fila de antes, quando de repente, Kaesar avançou no grupo para poder falar com Arnok. Ele parecia estar apressado. 

"Arnok, me faz um favor?" Ele perguntou.

"Que tipo?"

"Eu esqueci de entregar aquele livro para o Kaijum, será que você pode avisar o Hiotum que vou passar na biblioteca?" 

"Aviso sim, não se preocupe." Arnok respondeu, enquanto via seu amigo se separando do grupo e virando em um corredor diferente. 

A biblioteca não era muito longe dali. Kaesar precisava apenas virar mais alguns corredores para chegar de frente à enorme porta de madeira. Depois de ofegar bastante por conta da corrida, ele finalmente a empurrou.

Estava como sempre por ali. Kaijum estava sentado em sua mesa enquanto conversava com uma aluna, aparentemente do terceiro ano. Era uma feline de pelos brancos. 

Evitando olhar para a Feline, Kaesar se aproximou de Kaijum enquanto tirava do bolso o pacote com o livro.

“Bom dia, Kaijum!” Ele cumprimentou. 

“Olha só… a que devo sua visita? Veio devolver um livro?” Kaijum perguntou, deixando Kaesar confuso por um momento.

“Como assim? Vim trazer o livro que você havia pedido.” Ele retrucou, enquanto entregava o pacote para Kaijum. 

O bibliotecário olhou para o embrulho em suas mãos com a mesma expressão confusa que Kaesar mostrou antes.

“Eu te pedi um livro?” Olhou no fundo dos olhos dele, tentando entender aquilo.

“Como assim cê me pediu? Fomos buscar o pacote com aquele seu conhecido humano, de pele morena.”

“Oh… Fico feliz que você tenha conhecido o Serra, mas, de verdade menino, eu não pedi para vocês buscarem um livro, e muito menos para o Serra me trazer algo. Posso estar velho, mas memória não me falta.” 

Ambos se olharam confusos por alguns instantes, então para o pacote e de novo para si mesmos. Não sabiam exatamente o que dizer agora. 

Kaesar não estava louco, definitivamente. Ele e Arnok ouviram o pedido de Kaijum, não fazia muito tempo. No entanto, Kaijum simplesmente dizer que não se lembrava de ter dito isso, o homem que conhecia a posição exata dos mais de um milhão de exemplares ali presentes. 

“Do que isso importa?” A Feline disse de repente, assustando ambos. “É um livro a mais na biblioteca, não?”

“Tem razão…” Kaijum comentou, enquanto rasgava o embrulho. Era um livro sem título, ou marcas na capa. Nenhum entalhe que o diferenciasse de algo. Apenas uma capa de couro negro, com talvez cem ou duzentas paginas. 

Kaijum começou a olhar para as páginas daquele livro, enquanto Kaesar se espreguiçou por um breve instante. 

Foi então que pelo canto dos olhos, ele viu a Feline com um olhar preocupado e apreensivo. Olhou novamente, e parecia estar próxima de gritar de pânico. Até que ela percebeu estar sendo observada, e sua expressão mudou para algo completamente impassível.

“Tenho cara de espelho para ficar me olhando?” Falou da maneira mais grosseira que pôde, quebrando a postura de Kaesar. 

“Não… Eu… Sinto muito.” Ele falou por fim, desviando o olhar de volta para Kaijum.

“Coloque na parte de mitologias.” Ele comentou, entregando o livro para a Feline em sua frente.

Ela acenou positivo e começou a se afastar. Eles dois a viram se afastar, Kaesar com um olhar apreensivo e Kaijum com uma expressão cansada.

“Quem é ela?” Kaesar perguntou depois de um instante em silêncio.

“Minha ajudante, por quê?”

“Ela me dá medo.”

“O quê?!” Kaijum disse rindo. “Como pode estar com medo de uma mulher inofensiva como ela?” 

“Eu não sei… É só que…” Quando Kaesar parou para olhar a Feline novamente, ele teve a sensação de olhar para uma montanha íngreme e mais alta que as nuvens. Poderosa demais para ser vencida por alguém dentro do senso comum, e perigosa demais para alguém em plena consciência tentar matá-la. “Ela me arrepia.” Mentiu. Sentia muito mais que isso. 

Suas pernas só pararam de vacilar depois que ela virou um corredor em meio às estantes. 

A Feline continuou andando, com uma expressão vazia como um quadro de pintura recém comprado. Ela virou mais um corredor e continuou em frente. Foi então que passou reto da sessão de mitologias.

Ela continuou andando por mais algumas sessões, até que abriu um sorriso anormalmente largo. Por muito pouco que uma risada gutural escapou por entre seus dentes, que de repente, se afiaram como navalhas novas. Cada um deles. 

E então, seu cabelo alongou enquanto se separava do couro cabeludo e se tornou um gigantesco rabo branco, que não se assemelhava em nada ao cabelo. Suas roupas também pareceram se unir a sua pele, e seu rosto se deformou até ficar desproporcional a algo humano, ficando quase como um ovo perfeito.

Até que surgiu uma abertura no meio daquilo, um buraco que parecia ser tão profundo quanto o próprio conceito de escuridão. E aquela coisa, pareceu sorrir. 

“Finalmente!” Se houvesse alguém por perto, teria ouvido algo pior que uma lousa sendo arranhada por mais de quarenta pregos. Uma voz tão arranhada e estranha aos ouvidos que poderia fazê-los sangrar. “A última cópia…” 

Ele pegou o livro com o descuido de alguém que conquistou algo descartável, e então, jogou ele dentro do buraco em sua boca. Com o mesmo sorriso de antes, aquela coisa se deformou mais uma vez. Seus braços ficaram menores, e parte do seu rabo voltou a ser seu cabelo. 

Depois de uma cena digna de um livro de horror, aquilo agora era um homalupo de pelo negro. Vestia o uniforme dos alunos do quinto ano e tinha uma expressão brincalhona e completamente comum. Você o chamaria de demônio, se não soubesse o que ele havia feito há poucos segundos. 

Enquanto isso, bem longe dali, no pátio de areia dentro de uma das arenas de treino da academia. Hiotum e seus alunos finalmente estavam chegando para a aula de combate. 

No meio do campo de areia, estava um sujeito alto e com grandes chifres negros, que apontavam para o céu. Era um demonkin. 

Ele vestia vestes longas numa coloração azul desbotado e quanto se virou, os alunos perceberam que ele era um demônio de sangue azul. Todos formaram uma fila, e prestaram continência. Arnok estava atrasado se comparado com eles, já que não sabia da existência de tais formalidades. 

“Este é o professor de combate de vocês.” Hiotum comentou de trás do grupo de alunos. “Vou deixá-los por sua conta, Korpo Kaj Fiziko. Não se esqueça de se apresentar.” Disse, pouco antes de se afastar dos alunos. 

Korpo então abriu um sorriso animado, enquanto tirava sua túnica azulada. Por baixo daquilo, ele vestia uma camisa colocada que delineava os músculos que tinha. No entanto, a calça tinha uma boca anormalmente larga que destacava o quão finas eram suas pernas. 

“Muito bem. É um prazer conhecer vocês.” Ele disse, formando um rastro largo na areia por onde andava. “Sou Maquilável, um demônio de sangue azul, como podem perceber.” Flexionou levemente os músculos do braço, mostrando o contraste da pele azul contra a roupa. 

Foi neste momento que Kaesar apareceu. Ele arfava e suava pela aparente corrida que teve de fazer para chegar ali a tempo, e falhar do mesmo jeito. Maquilável olhou torto para ele assim que chegou. 

“Entre na fila, garoto!”

“Sim, senhor! Me perdoe o atraso.” Disse dando continência e relaxando logo em seguida, ficando em posição junto dos outros.

“Bem, antes de começarmos de fato, devo dizer que existem dois professores de combate nesta instituição. O instrutor tático e o prático. Eu sou seu instrutor prático.” 

Ele olhou para cada um dos alunos da turma e quando seu olhar pousou sobre Arnok, ele abriu um sorriso de canto de olho.

“Então, hoje explicarei como as aulas funcionarão a partir daqui e precisarei de um voluntário. Qual de vocês é o representante da sala?” 

Arnok não percebeu a princípio que aquilo era com ele, então Kaesar o cutucou rapidamente para que se tocasse, assim, o jovem asa negra logo levantou a mão. Foi então que o sorriso de Maquilável se tornou algo descarado e quase maníaco. 

“Muito bem, venha aqui!” 

Hesitando, Arnok caminhou com dificuldade pelas areias. Ele ficou a alguns passos de distância de Maquilável e aquele sujeito tinha o mesmo sorriso maníaco de antes.

"Bem, vou demonstrar a vocês o que é o treino prático. Mas antes, qual o seu nome, pequeno asa negra?"

"Pequeno asa negra?" Arnok pensou por um momento. "É Arn…"

Sua frase foi cortada inopinadamente. Ele sentiu uma pressão forte como um canhão indo direto contra seu estômago, ao mesmo tempo, seus pés se desvencilharam da areia e ele foi jogado para longe. 

Caiu de costas contra a areia, o que diminuiu a maior parte do impacto. Se levantou o mais rápido que pôde e tentou entrar em posição de combate, mas antes que pudesse fazer algo, Maquilável já estava na sua cola. Partiu com um chute, que lançou o garoto mais longe ainda.

"Na aula prática de combate aprenderemos o que não se deve fazer em um combate." Ele disse irônico ao mesmo tempo que ria. 

Então, como se rasgasse a própria pele, passou os dedos por cima dos braços e sua pele azul se descascou ao toque. Escamas negras como carvão ficaram no lugar, eram lisas como mármore e tão polidas que refletiam a expressão de desespero no rosto de Arnok. 

“Vamos ver como lida com isso, asa negra!” Dizendo aquilo com um desdém imenso, Maquilável de repente já estava há poucos passos de Arnok, e ele mal teve tempo de se esquivar. 

Foi uma sequência direta de três socos. O primeiro atordoou Arnok e os dois seguintes serviram apenas para quebrar ainda mais seu equilíbrio. Para finalizar tudo aquilo, ele partiu com um chute lateral no rosto do jovem asa negra, o mandando contra a parede do pátio de areia. 

Todos da sala ficaram chocados demais com aquilo para fazerem algo.

Zonzo e sem muita noção de onde estava, Arnok conseguiu esquivar do soco seguinte por pura sorte. Ele aproveitou a chance e contra atacou o mais forte que pôde no estômago de Maquilável, mas foi como socar uma parede de aço. 

Enquanto sentia que algum dedo de sua mão havia quebrado, o demônio de sangue azul a sua frente partiu com mais alguns golpes diretos contra Arnok, que o fizeram não conseguir se desencostar da parede. 

A dor e a incapacidade de fazer algo foram como catalisadores para sua fúria. De repente, uma onda de fogo inconscientemente saiu de suas mãos e Maquilável foi obrigado a se afastar. 

No entanto, quando a poeira se abaixou e o fogo se tornou mera brasa, ele se levantou como se não fosse nada e ainda tinha um sorriso sarcasticamente largo no rosto. 

“Meus parabéns, mas por que não usa a técnica dos asas negras?” Ele perguntou repentinamente. Aquilo fez Arnok travar, definitivamente não esperava ouvir aquilo. “Já lutei contra alguns asas negras antes, então por que não me mostra do que vocês são verdadeiramente capazes?” Ele deu uma risada longa depois de ter dito isso. Começou a se aproximar de Arnok, com uma postura arrogante. 

Arnok, no entanto, não sabia ao certo o que fazer. Muita coisa passava na sua cabeça naquele momento. Pouco ele sabia sobre a “técnica de luta dos asas negras”. Supostamente, era para estar aprendendo sobre ela. Mas seu pai não estava ali… Ou seu irmão… Ou qualquer asa negra capaz.

“Eu sou o último…” Murmurou sem perceber, e Maquilável ouviu de relance.

“Como é?” 

De repente, um estrondo. Aos pés de Arnok, suas chamas vazaram numa torrente praticamente imparável, formando uma onda tão alta e densa que praticamente o escondeu de Maquilável.

“Eu sou o último asa negra.” Disse finalmente. Aquilo não era exatamente para Maquilável, mas praticamente estava admitindo para si mesmo. 

“E do que isso importa?...” Maquilável começou a dizer, mas foi cortado quando de supetão, uma massa negra saiu de dentro da enorme onda de chamas. 

Depois de um impulso imenso, Arnok partiu para cima de Maquilável já pronto para dar um golpe. No entanto, as chamas atrás dele fraquejaram. 

O nível de controle que Arnok demonstrou naquele momento foi algo além do comum para alunos do primeiro ano. Suas chamas seguiram seu movimento em um vórtice que começou a se aproximar rapidamente dos seus ombros, e então dos seus braços.

Chamas que giravam tão rápido quanto um furacão, elas encobriram todo o punho de Arnok. Até que ele finalmente encostou Maquilável. 

Por mais que o demônio de sangue azul já estivesse pronto para tomar o golpe, ele não esperava por uma coisa. As chamas não pararam quando bloqueou o soco de Arnok. Elas continuaram em frente, como uma ventania infernal, e o empurrou para tão longe que parecia ter sido atingido por uma bola de canhão. 

Muita coisa aconteceu ao mesmo tempo. Baques tão altos quanto tambores, o som de algo quebrando, a poeira subindo como se fosse uma cortina de fumaça e o gigantesco vórtice de fogo criado por Arnok sem controle algum indo para cima, se dispersando pouco depois. 

Ele suava pelo calor e pelo cansaço de ter feito tudo aquilo. Também arfava, como se tivesse carregado meia tonelada por alguns metros. Subitamente, Arnok de trás dele ouviu sons altos de diversas coisas. Quando se virou, viu a turma comemorando. Alguns assobiavam e aplaudiam. 

Com dificuldades, ele abriu um sorriso. Aqueles barulhos retumbaram na sua cabeça, como se fossem um calmante natural. Foi a primeira vez naquele dia que ele não sentiu os olhares de ameaça, ou hesitou para algo. 

Mas então, os olhares dos seus colegas mudaram e os aplausos também cessaram. Foi quando percebeu o olhar de horror instalado no rosto de Kaesar.

“Arnok! CUIDADO!” Gritou. 

Quando Arnok se virou, seu rosto afundou. Sentiu um golpe tão forte e pesado quanto uma ariete. Se antes ele já havia sido lançado longe, agora ele havia sentido suas costas baterem com tanta força na parede que sentiu suas costelas estalarem. 

O ar havia lhe escapado dos pulmões e mal teve tempo de recuperá-lo, quando veio a segunda onda de golpes. Socos tão fortes quanto o anterior, mas eram incessantes. 

Por breves lampejos, Arnok conseguia ver o olhar de Maquilável. Era algo animalesco e brutal. A ira que queimava ali, era tão quente quanto uma forja e afiado quanto uma lâmina recém feita. 

Aquilo continuou por algum tempo, já mal sentia seu rosto quando aquela coisa que já não podia ser comparada a um demônio finalmente parou por um momento. 

Ele deu um suspiro longo e levantou o braço pronto para um último golpe. Algo dentro de Arnok dizia que se ele tomasse aquilo, não se levantaria de novo.

“Vai se arrepender ter feito tudo isso, asa negra.” Sua voz já não soava irônica ou arrogante, era pura ódio e insatisfação. Por um lampejo de curiosidade, Arnok decidiu olhar para como Maquilável havia ficado depois do golpe. 

Não havia um mísero arranhão ou queimadura, ele mal havia sujado a própria roupa. Aquilo foi como um choque, e Arnok de repente se sentiu completamente exausto. Ele fechou os olhos e esperou o golpe final. 

Mas foi então que uma luz azul e brilhante como o sol surgiu.Tão forte era essa luz, que ele pôde enxergá-la por detrás de suas pálpebras. 

Quando abriu os olhos, viu o punho de Maquilável parado há poucos centímetros do seu rosto. Ele estava sendo segurado com uma força diversas vezes maior que a do próprio demônio de sangue azul, forte o bastante para quebrar o seu braço apenas ao segurá-lo. 

Ao mesmo tempo, ele o eletrocutava com uma descarga tão alta que os gritos de dor que soltava saiam falhados por suas cordas vocais estarem queimando.  Arnok olhou melhor e para a surpresa de ninguém, ele viu seu mestre com um olhar de fúria para Maquilável. 

O demônio de sangue azul tentava resistir, mas a mísera tentativa fazia Hiotum aumentar a onda de choque, fazendo-o gritar ainda mais. 

Depois de longos segundos, Hiotum finalmente o soltou e ele tombou praticamente imóvel, exceto pelos espasmos musculares. 

“O que você fez não é de longe algo que um professor faria…” Ele ponderou como uma voz carregada com um ódio jamais visto por Arnok. “E fazer isso ao meu discípulo, é o mesmo que se declarar morto!” Foi então que os espasmos pararam e Maquilável nunca mais se mexeu. 

Todos olhavam chocados com o corpo e o cheiro de queimado que surgiu logo depois foi o suficiente para fazer um dos alunos vomitar. 

“Cinky, venha aqui.” Hiotum chamou subitamente, e ainda em choque, uma das alunas no meio do grupo, uma Drakodemono, veio correndo evitando passar perto do corpo queimado. “Estabilize o Arnok da melhor forma que puder.” 

Ela acenou positivo, e com as mãos tremendo fez uma luz verde e cintilante sair de suas mãos. Conforme aquelas pequenas esferas brilhantes tocavam Arnok, sua dor aos poucos se dissipou. 

“Todos, dispensados. Exceto você Cinky, cuide de Arnok até ele conseguir se levantar.” Hiotum começou a dizer, mas de repente a mão de Cinky foi agarrada e ela parou o processo pelo susto.

“Não é necessário. Estou bem.” Arnok disse o mais confiante que pôde, mas sua dificuldade para se levantar quebrava toda essa postura de “estar bem”.

“Não!” Hiotum disse, quase como uma ordem. “Não está!” 

Os dois se olharam por um breve momento, uma raiva estranha pareceu faiscar entre eles e o clima começou a se tornar pesado para quem estava por perto. 

Aos poucos, todos os alunos, incluindo Cinky, se retiraram do pátio e apenas Hiotum, Arnok e o cadáver ficaram ali. 

Quando seu mestre começou a se afastar, com os ombros rígidos e tensos como pedra, Arnok caminhou atrás dele com bastante dificuldades. Sentia que cada parte do seu corpo poderia falhar a qualquer momento, mas não iria fraquejar. Não ali. 

“Pode cair quando quiser.” Hiotum comentou depois que eles saíram do pátio. “Já não há ninguém olhando.”

“Eu não vou cair.” Retrucou, ainda tentando soar como se tivesse forças disponíveis. 

“Por quê? Não precisa provar a ninguém a força que tem.” 

“Sim, eu preciso!” 

“E por quê?” Hiotum se virou, berrando quase aos prantos. “Hein? Para mostrar que é mais forte que os outros? Para se sentir bem? Me diz, Arnok! Por que tentar se provar ser forte?” 

Quando ele tentou responder, sentiu o olhar de ameaça novamente, mais forte do que nunca. As palavras não saíram, sua respiração parou e seus olhos marejaram no mesmo instante. Estava desesperado e não tinha coragem sequer para dizê-lo. 

Vendo aquilo tudo, Hiotum não pôde fazer nada além de suspirar. Seus ombros desabaram, emitindo um ar de melancolia e culpa quase palpável. Quando olhou novamente para Arnok, ele tinha o mesmo olhar de desamparo de um pai para com seu filho. A diferença aqui era óbvia, no entanto. Eles não eram pai e filho.

“Eu sinto muito, Arnok…” Sua voz soou culpada e pesada. “Achei que você já estava bem e não me preocupei em tentar te ajudar… E agora…” Ele não teve forças para terminar a frase e só pôde suspirar. “Eu… sinto muito.”

Os dois se olharam por longos minutos, até que Hiotum começou a se afastar de Arnok e aos poucos continuar seu caminho. Seja lá para onde estava indo. Cansado e abatido, o jovem asa negra estava prestes a caminhar em direção a seu mestre. Quando ouviu um assovio.

“Que briga feia, em…” Uma voz grave e forte disse subitamente, ele reconhecia aquela voz. “Há quanto tempo, asa negra.” 

Quando Arnok se virou viu que bem ao longe do corredor, estava uma figura alta e parda que se apoiava em uma bengala de madeira negra. Vestia vestes excêntricas e tinha uma boina justa em sua cabeça, que ele usou para cumprimentar o demônio à sua frente. 

“Afim de conversar?” O homem que entregou o livro dos profundos para Arnok há tantos dias, perguntou. Sem muitas opções, foi o que Arnok fez. 

O som de seus passos e da bengala de madeira apoiando uma pequena parte no peso da perna do humano eram os únicos sons que soavam naqueles corredores da academia. Em meio àquele silêncio, Arnok se perguntava como aquele sujeito excêntrico e que se destacava fácil havia entrado na academia. 

“Eu vi o que você fez ao demônio de sangue azul… Foi impressionante.” Ele disse, quebrando a monotonia dos barulhos. 

“Foi o Hiotum quem fez aquilo…” Ele comentou, achando que o humano estava falando da morte do Maquilável. 

“Estou falando daquele soco, garoto.” Sussurrou, surpreendendo Arnok. “Foi uma técnica no mínimo interessante que usou ali. Tem um nome?”

“Não… E para que me preocupar com nomes? Eu ainda quase morri nas mãos daquele imbecil.” 

“Você apenas escolheu o inimigo errado. A força que ele tinha era simplesmente incomparável contra você.” Comentou, fazendo Arnok abaixar a cabeça. No entanto, o humano arqueou os lábios pouco depois. “Mas ainda assim, você foi capaz de improvisar um soco que fez ele voar para longe. Fez mais do que simplesmente feri-lo, você machucou seu orgulho. Não me surpreende ele ter reagido daquela forma.” 

Arnok, por um breve instante, olhou aturdido para o humano. Ele tinha um sorriso carismático no rosto e de alguma maneira, seu olhar parecia contar muito mais do que seu sorriso. 

“Você parece animado demais sobre isso, não é?” Arnok comentou, quebrando o sorriso daquele homem e o fazendo rir. 

“De fato estou. É que eu adoro uma boa luta…” Ele parou abruptamente, obrigando Arnok a fazer o mesmo. “Na realidade, é sobre isso que vim conversar com você.” 

Os dois se olharam por um breve instante, Arnok confuso com o que havia acabado de escutar e o humano com o mesmo “olhar de sorriso animado”. 

“Ainda não me apresentei, sou Serra, e venho com uma proposta para você, asa negra.” Serra esticou a mão, o cumprimentando. Arnok retribuiu rapidamente.

“Sou Arnok, e que tipo de proposta?” Ele perguntou curioso. 

“Bem, conhecendo o passado dos asas negras, duvido que você conheça o ringue entre raças, não é?” Serra perguntou, e Arnok respondeu com uma recusa de cabeça. “É um show que ocorre quase todas as noites na cidade baixa, entre humanos e demônios.”

Quando Arnok ouviu isso, ele não pôde deixar de ficar surpreendido e ao olhar para Serra, ele tinha um sorriso e um olhar ainda mais largos. 

“E serei sincero com você. Preciso de mais telespectadores naquelas lutas e para isso, eu precisaria de um lutador novo, que lutasse de uma maneira nova e se portasse diferente dos outros…” Olhou para Arnok de cima a baixo por mera brincadeira. “E acho que você se encaixa nisso.” 

Arnok olhou torto para ele. Ficou extremamente desconfiado com o que aquele humano podia estar aprontando com ele, mas algo nele dizia para que continuasse ouvindo. 

“Por que acha isso?” Arnok perguntou por fim.

“Pois eu vejo que você deseja ser mais forte, mas não sabe como.” Ele sussurrou, fazendo Arnok se afastar de Serra pelo susto. “Eis minha proposta. Não sou somente um bom empresário, sou também detentor do título de mestre. Alguns dos mais poderosos demônios que já pisaram naquele ringue. Você lutará no ringue para fazer sua melhor performance, em troca, te torno o demônio mais poderoso que já pisou na terra. O que acha?” 

Por mais que desconfiasse de tudo aquilo e hesitasse, Arnok ponderava cada uma das coisas que ele disse como algo possível e para ele era extremamente difícil dizer não. Porém…

“Eu já tenho um mestre.” Ele tentou recusar a proposta dizendo aquilo, no entanto o sorriso de Serra não pareceu diminuir.

“Que bom, aprendizado em dobro. Vamos… Não haverá nenhum prejuízo para você, apenas lucro…” Ele estendeu a mão mais uma vez, desta ainda mais convidativo. “E então?” 

Arnok olhou para ele, e então para sua mão. Não conseguia parar de pensar naquilo como algo que podia dar incrivelmente errado, em como talvez estivesse se metendo na maior enrascada de sua vida e que deveria consultar Hiotum sobre tudo aquilo.

Mas sempre que ponderava negar, um mísero pensamento quebrava tudo aquilo. Sua derrota perante Maquilável, e no quanto estava impotente naquela situação. Ferido e paralisado, só conseguia olhar nos olhos dos seu agressor e implorar por misericórdia. 

Ele não queria aquilo. Nunca mais.

Antes que percebesse, tinha apertado a mão de Serra o mais forte que pôde e seu sorriso pareceu ficar ainda maior.



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