Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

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Volume 1

Capítulo 33: A ligação

Era um momento barulhento. No velho celeiro vermelho de Philip, o ranger do vento transpassando entre as tábuas de madeira era, talvez, o mais baixo deles. 

Em meio aos sons das pancadas de madeira contra madeira e dos leves grunhidos de alívio, Philip dava longos suspiros, enquanto brincava com seu antigo emblema do exército. Vendo-o subir para bem próximo do teto, então voltar para sua mão. 

Com os olhos fechados, ele tentava manter a mente limpa. Tentava focar nesses sons para evitar um excesso de trabalho mental, em meio a sua própria psique abalada. 

Os sons pareciam, aos poucos, cada vez mais nítidos. Como o leve tilintar da espada de Lira, treinando no cômodo ao lado, indo o poste de madeira que equilibrava o boneco de palha. 

O leve baque do seu emblema de cobre na palma de sua mão. Um som débil de metal contra pele, quase uma sinfonia de canhões. 

Ele deixou o emblema cair mais uma vez em sua mão, mas não o jogou para cima como antes. Quando abriu os olhos e se concentrou no metal frio contra sua pele, o canto de seus olhos e boca se levantaram em puro repúdio. 

Colocando o emblema num canto da mesa a sua frente, ele se endireitou na cadeira, para logo depois alongar os braços e o pescoço. 

Seu olhar recaiu por um momento no gigantesco quadro de fotos e condecorações que tinha no seu escritório. 

Em meio a tantas memórias com diversos significados, que antes poderiam lhe trazer algum orgulho e felicidade, agora já não mais faziam isso. Restava apenas o sentimento de auto-repúdio em meio aos sorrisos sádicos e egocêntricos estampados naquelas fotografias. 

Havia apenas uma foto que lhe trazia ainda algum sentimento de felicidade… Ou talvez fosse nostalgia? Philip coçou a cabeça quando pensou nisso. Apesar desses sentimentos confusos sobre aquela foto, ele só podia pensar uma coisa sobre ela… 

Sinto falta dela. 

O telefone tocou naquele exato instante. 

Por um longo momento, Philip não o respondeu. Seu olhar evitava caminhar naquela direção, assim como seus ouvidos tentavam ignorar o som alto e estridente de lá. Mas algo parecia instigá-lo a tirá-lo do gancho. 

Sua mão parou logo acima dele. Via seus dedos tremerem conforme o gancho e a base do telefone tremiam pelas vibrações e sua boca começava a ficar seca.

Engoliu em seco, antes de finalmente tirar o telefone do gancho. 

“Alo?” Disse em um tom firme, já imaginando quem estava do outro lado da linha. 

“Yoo!” Uma voz forte e grave veio de repente. Philip a reconheceu no mesmo instante e agarrou com ainda mais força o telefone em sua mão. 

“Tem muita coragem, Deviam!” Philip já avançava com as mãos para desligar o telefone, quando um súplico vindo da outra linha. Suspirando, ele colocou o telefone ao lado da cabeça mais uma vez. “O que quer comigo dessa vez?”

“Eu não quero nada. Ele quer.” 

“Como é?” Philip começou a dizer, mas ele ouviu uma leve comoção ao fundo da ligação. 

“Você disse que falaria com ele!” Ouviu ao longe. 

“Eu sei, não precisa me lembrar.” Uma segunda voz discutiu, estava claramente irritada, talvez até arrependida. 

Pouco depois, ouviu-se ao fundo um suspiro leve, como o de alguém que ao mesmo tempo que estivesse aliviado, também se arrependia de estar fazendo aquilo. 

“Oi, Philip.” A pessoa do outro lado da linha falou então, com sua voz grave carregada de arrependimento e culpa. 

Quando percebeu quem era, Philip não sabia como reagir. Sua boca se abriu numa meia lua que parecia querer dizer algo, mas nunca o fez. Um longo silêncio incômodo ficou entre os dois, sendo interrompido pelas breves tentativas de um tentando falar algo para o outro.

“Já faz tempo… Não é?” William disse por fim. 

“Pois é, não é?” 

O mesmo silêncio de antes se repetiu. Suas respirações assíncronas eram a única prova de que ainda estavam na linha. 

O que será que ele quer? Philip começou a pensar. Já fazem anos que não nos falamos e repentinamente ele querer falar comigo… Não me parece uma boa notícia. 

“O que aconteceu, William?” Philip disse, quebrando o silêncio. Inconscientemente, ele se sentou na cadeira próxima a sua mesa, já esperando algo problemático do outro lado da linha. 

 “Bem…” William parecia hesitar. Sua respiração lenta deixava claro o quanto pensava em cada palavra que saía de sua boca. “Duas coisas essencialmente." 

“O que?” 

“Recebemos um relatório novo do Caim.” 

Philip se calou por um momento. Enquanto sentia um enorme suspiro de alívio saindo de seu âmago, uma ruga de preocupação começava a transparecer em seu rosto. 

“O que dizia?”

Levou algum tempo até que ele William respondesse, ainda parecia hesitar em qual resposta era a adequada. 

“A situação está caótica por lá… Está em falta de pessoal, e causaram algumas comoções indesejadas pela capital. Fora as mortes.”

“Quantas?” 

“Quatorze assassinos, de patente inferior ou superior.” 

“Maike morreu da mesma maneira?”

“Não… Um asa negra o matou.”

“O qu…” Philip sequer conseguiu finalizar a frase. Sua boca travou enquanto olhava ao seu redor, sem nada de específico. “Deviam falhou na missão dele?” 

 “Aparentemente sim.”

“Droga…” Antes que percebesse, sua mão foi até uma de suas têmporas e começou a massageá-las. “E quanto a segunda coisa? O que era?” Ele perguntou, suspirando por conseguir mudar de assunto. 

“É verdade que arranjou uma discípula?" 

As palavras lhe faltaram mais uma vez. No entanto, não foi por confusão ou tristeza. Sentiu sua respiração aumentar, junto de seus batimentos cardíacos. Tudo chegará em um ápice, e uma veia de seu pescoço começará a saltar.

"É sim, é verdade. Arranjei uma discípula." Ele retrucou com sua voz soando como uma forja. 

"Mesmo depois do Carmin?" 

"Mesmo depois dele." 

"Você disse que não teria mais discípulos."

"Pouco me importa o que eu disse. Também disse que cuidaria de Merlin até ela não precisar passar por todo aquele sofrimento de novo, e acho que o Deviam já fez o favor de te dizer o que aconteceu com ela." 

"O que aconteceu com ela?" William perguntou de repente, com seu tom mudando para algo mais preocupado, e Philip não soube ao certo como reagir. 

"Ele não…"

"Philip, se você não tiver contado diretamente a ele, sabe que o Deviam não seria capaz de raciocinar direito." Ele comentou rindo, mas dava para sentir um leve nervosismo em sua voz.

Philip mais uma vez não sabia como pôr em palavras o turbilhão de pensamentos que estava tendo. Sua boca se abria em diversas tentativas falhas de dizer algo que ele mesmo não queria acreditar. 

No fim, uma sensação azeda lhe atravessou a garganta e disse:

"Merlin não acorda a cinco dias, William."

O silêncio retornou, mas era óbvio o sentimento de ambos os lados.

"Talvez seja só uma recaída…" William disse, forçando um tom mais reconfortante e apaziguador. 

"Dá ultima vez, ela dormiu um ano inteiro William. Não há mais recaídas depois disso."

"Com esse pessimismo não vai haver mesmo."

"Se vai ficar fazendo comentários, pelo menos se dê ao trabalho de se sentir culpado!" Philip disse, para se arrepender logo em seguida.

Um breve instante de silêncio ficou entre eles, que no entanto mais pareceu uma década. Philip ouvia os longos suspiros de William do outro lado da linha. 

Suspiros melancólicos e pesados.

"Eu me culpo Philip. Não pense que não." O tom de sua voz caiu para algo semelhante a um sussurro exausto. Cheio de mágoa. "Sei muito bem o que fiz naquela época, e agora só posso lamentar por não ter pensado em alguma coisa diferente."

"Deve fazer bem mais que lamentar se quiser me julgar por estar com uma discípula nova. Agora, se sua ladainha já terminou, tenho mais o que fazer." 

Antes que William pudesse sequer suspirar em desacordo, Philip colocou o telefone de volta ao gancho. 

Suas mãos deslizaram até a beira da bancada onde o telefone ficava. Antes que percebesse, elas se fecharam e agarraram com força aquela bancada.

Em meio aos sons do treino de Lira e da brisa do vento trespassando por entre as tábuas de madeira, agora também havia os gritos de Philip. 

O baque alto da mesa de bancada onde o telefone-gancho estava, junto do som de vidro quebrando quando ela acertou um lampião apagado próximo dali. 

O som de seus pesados passos se aproximando do quadro de recordações foi prenúncio do grande baque seguinte. 

O som agudo de vidro quebrando-se, junto do tilintar de diversas tachas batendo contra o chão e os emblemas de cobre e bronze. 

De pé, em meio a toda aquela bagunça que o cômodo havia se tornado, Philip arfava de maneira pesada e parecia estar prestes a cair aos prantos. 

Queria evitar olhar na direção do quadro caído.

Queria evitar ver a última memória que tinha de tempos mais calmos e simples. 

Tempos onde as fronteiras pareciam simples histórias que os soldados experientes contavam às crianças.

"Porcaria…" Se viu dizendo por impulso. 

Quando suas pernas já começavam a perder as forças, alguém bateu na porta do escritório.

"Philip…" Uma voz um tanto aguda começou a dizer, junto do som arrastado da porta se abrindo. "Tudo bem aí?"

Lira parou abruptamente quando viu o estado do cômodo à sua frente, mas o que mais lhe aturdia era o vislumbre de Philip. 

Ele parecia ganhar alguns anos de vida cada vez que inspirava ar para seus pulmões. Com uma expressão exausta no rosto, ele olhou para Lira, cheio de remorso e culpa. 

Seus olhos se abriram, como se percebesse a própria aparência. O cansaço lhe sumiu aos poucos do rosto e ele abriu um sorriso de canto. 

"Sim… tá tudo bem Lira. Só está meio bagunçado aqui." Ele começou a caminhar na direção de sua discípula, mantendo a todo instante o sorriso de canto.

Lira não conseguiu evitar comparar aquela expressão ao sorriso forçado de Deviam alguns dias antes. 

"O que acha de irmos comer alguma coisa?" Disse, já a afastando-a da porta, enquanto a fechava lentamente. 

Lira olhou para trás por um instante, tudo para ter um breve vislumbre do retrato quebrado no chão. 

O baque alto da porta serviu como um divisor de águas para diversas coisas. Mas para Philip, principalmente, serviu como uma tranca para sua última memória feliz.



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