Volume 1
Capitulo 3: Um refugio ou um lar?
“Onde você achou essa menina?!”
Lira ouviu uma voz cansada e irritada de uma mulher, aparentemente distante.
“Ela estava na floresta e está gelada, e encharcada e ... e ...” um homem falou dessa vez, falava rápido e desesperado.
E sua consciência a abandonou de novo.
“Eu sou uma historiadora, filha.” Lira ouviu uma voz. Parecia distante, mas era nítida e clara. “Viajo pelo mundo vendo grandes eventos, registro eles em meu caderno e ando por aí, contando para as pessoas o que eu vi.”
Isso era uma memória antiga, de um bom tempo atrás, um tempo em que Lira era uma criança curiosa e que não havia passado por um inferno.
Aquela memória se distorceu e um grito agudo de dor tomou o lugar.
Ela acordou já caindo da cama. Bateu com a cabeça no chão, mas não era por isso que estava com enxaqueca. Olhou ao redor, confusa. O quarto em que se encontrava era um tanto pequeno, com uma porta, uma cama, uma lareira e um baú de madeira, aberto.
Quando olhou para si mesma, viu que as roupas que vestia não eram suas. Nunca teve uma roupa assim. Era um pijama cinza, solto, confortável e feito de lã.
Devagar ela levantou-se, estava zonza e desnorteada, com a cabeça latejando e os olhos doendo. Sentou-se na cama e começou a pensar.
“Onde eu estou? Como vim parar aqui?”
Não importava o quanto pensasse, as respostas não vinham e só lhe sobrou uma opção.
“Tem alguém aí?” Gritou para o vazio do quarto e depois de um breve momento de silêncio, ouviu uma resposta.
“Menina, desça aqui!”.
Ao ouvir a voz de uma mulher, a jovem levantou-se da cama e foi até a porta. Sua tontura havia passado, mas a dor de cabeça não.
A porta levava para um corredor longo com outras cinco portas. Havia uma escada no fim, então Lira caminhou até lá e a desceu.
Cada vez mais um cômodo amplo entrava na sua visão. Era uma sala aberta, com uma porta e algumas decorações ao redor dela. Um hall de entrada.
Ficou no meio do hall esperando alguma coisa acontecer enquanto olhava ao redor. Sentiu um cheiro forte de tempero, cebola, e de algo fritando.
“Aqui, na cozinha!” A mesma voz de antes gritou, e Lira seguiu o som.
Seguindo a direção da voz, a pequena foi até uma sala de estar bem grande. Ali tinha duas poltronas lado a lado, e no meio delas, uma estante cheia de livros e um sofá de quatro lugares, com um rádio na sua frente. Lira nunca havia visto um na vida, mas sabia como eles eram e como funcionavam graças a sua mãe. O simples treino dessa memória fez sua cabeça doer.
Ela continuou seguindo na direção do cheiro e chegou a outro cômodo, também grande. Aquela casa era enorme.Era a cozinha e a sala de jantar, separados por um balcão de madeira, cheio de travessas, pratos e talheres.
Uma mulher, com os cabelos longos e presos num coque, estava na ponta mais distante da cozinha, de frente para o fogão. Um chiado de fritura e um cheiro bom vinha daquela direção.
“Então você finalmente acordou? ” Um homem sentado numa cadeira perguntou. A jovem não o havia visto ali, então tomou um leve susto. “Não sou tão feio ao ponto de assustar crianças, menina.” O homem comentou.
Ele tinha uma aparência estranha. Seu cabelo era bem grisalho, apesar de não parecer tão velho, e no seu rosto tinha uma longa cicatriz que descia do seu olho para a garganta e continuava, mas não era possível ver por conta da camisa.
“É essa sua cicatriz que bota medo nas crianças, Phili.” A mulher comentou enquanto olhava para o sujeito de cabelo grisalho e para a jovem de cabelos alaranjados. “Acho que seria uma boa ideia começarmos com as apresentações, não é, Phili? ” Olhou para ele diretamente nos olhos, seu tom e olhar diziam “você primeiro”.
Hesitante, ele olhou para Lira e depois de coçar a garganta duas vezes, disse: “Sou Philip, mas minha querida me chama de Phili. A propósito, ela se chama Merlin.” Apontou na direção da mulher que, agora, colocava vários pedaços de carne numa travessa de madeira bem polida e lixada. Temperou ela e cruzou os braços abrindo um sorriso de satisfação.
“Merlin? Como o mago Merlin? O herói mago que viveu no tempo do antigo rei demônio?!” Lira falou animada, um sorriso brilhava em seu rosto quando olhava para a mulher, que estava meio confusa.
“Bem, meu nome é uma homenagem a ele.” Merlin respondeu meio desconcertada e com a mão na têmpora, mas depois ela se deu conta de algo. “Como você sabe sobre o Merlin, garota? ”
A dor de cabeça voltou.
“Minha mãe é uma historiadora.” Ela respondeu olhando para baixo e escondendo a dor de cabeça que sentiu quando respondeu.
Philip pareceu surpreso.
“Historiadora?! Imaginei que todas estivessem mortas.”
Lira perdeu o equilíbrio e caiu nos próprios joelhos.
“Opa! Acho que você não está muito boa ainda.” Philip foi ajudar Lira a se levantar, mas hesitou, ela começou a chorar. Ele não soube o que fazer.
“Ei. Não precisa chorar, querida.” Merlin saiu da cozinha correndo e abraçou a pequena. Era um abraço quente, amoroso e com cheiro de gordura. “Não vamos mais falar disso, tá bom? ” O olhar de Merlin conseguiu apaziguar as coisas. O choro de Lira começou a ficar mais fraco e baixo, até que se tornou apenas soluços e murmúrios, mas o olhar dela ainda era triste.
“Acho que comer fará bem nessa situação. ” Merlin comentou e nesse mesmo instante, a barriga de Lira roncou forte e alto. “Não disse?” Merlin levantou-se e começou a arrumar a mesa.
Lira e Phillip ficaram parados olhando a comida ser colocada no meio da mesa, em seguida dos pratos e dos talheres.
“Podem se sentar!”
Merlin começou a servir a comida para Philip e estava prestes a servir para Lira quando parou no meio do caminho.
“Acabei de me lembrar, não gosto de estranhos na minha mesa.”
A garota estranhou, achou que estivesse sendo expulsa, mas não era isso. O tom de Merlin não era arrogante, mas sim convidativo, então a jovem logo entendeu. “Ah, meu nome é Lira.” Disse com um sorriso.
“Agora sim!” Merlin colocou o arroz no prato da sua convidada e todos começaram a comer. Um silêncio, que era quebrado somente pelo barulho dos talheres e da comida sendo mastigada, fez algumas dúvidas surgirem na cabeça de Lira.
“Onde estou?”
“Na nossa fazenda.” Philip respondeu meio apático, parecia mais focado em comer.
“Como vim parar aqui?”
“Eu encontrei você desmaiada no meio da floresta.” Ele largou seus talheres e olhou nos olhos de Lira. “Você estava encharcada. De suor...” começou a pontuar com os dedos “...De água da chuva e de sangue. ” Lira ficou surpresa e Merlin quase cuspiu a própria comida “Fora isso estava suja de terra e com febre."
“Phili!” Merlin gritou em advertência.
“O quê? O sangue não era nem dela!”
Lira estremeceu com a memória, sua dor de cabeça piorou e o seu coração agitou muito. Não parecia que ela ia chorar, mas parecia triste e abalada. Philip percebeu seu erro.
“Sinto muito.” Disse, olhando para a própria comida. Empurrou o prato para frente. “Perdi o apetite.”
“Para onde vai?” Merlin perguntou, parecendo preocupada.
“Para o meu escritório.”
Lira não entendeu muito bem o que havia acontecido, mas se sentia meio culpada.
“Sinto muito.” Disse cabisbaixa, olhando para o prato à sua frente.
“Não precisa se desculpar, minha querida. Esse velho rabugento passou da idade para entender crianças.” Falou, rindo de si mesma, mas lá no fundo do seu tom, deu para sentir uma pitada de preocupação. “Bem, vamos terminar de comer.”
Um silêncio desconfortável ficou na mesa e ele permaneceu, até que o último grão de arroz tivesse sido comido.
“Ele é um ex-militar.” Merlin quebrou o silêncio de súbito. “Deserdou depois de ...” Tentou procurar as palavras certas. “... Alguns problemas no campo de batalha. Seu convívio social é basicamente comigo e com os laraltos lá fora. Faz muitos anos que não temos uma visita como você...” Seu rosto ficou triste. “E talvez ele não tenha abandonado os costumes de guerra. Seus relatórios eram iguais a como ele descreveu sua situação na floresta.”
Lira assimilou toda aquela informação e só agora percebeu que foi salva na floresta, e o que isso significava.
“Obrigada por terem me salvado. ” Comentou triste.
“Não há de que, e na verdade, eu não fiz nada. Foi o Phili que encontrou você.”
O silêncio retornou e perdurou por alguns longos segundos.
“Lira, você se sente confortável para me dizer, o que aconteceu com você?”
A dor de cabeça voltou, queria responder à pergunta de Merlin, mas alguma coisa no seu interior não permitiu isso. Com todas as forças que tinha conseguiu dizer apenas: “Fomos atacados por demônios.” Um sentimento novo, no íntimo de Lira, começou a aparecer. Ou melhor, a reaparecer.
Ela havia sentido isso na floresta, mas agora era mais nítido e de uma clareza imensa. Era raiva.
Raiva contra alguém, contra algo... contra os demônios.
“Entendo. ” Foi a resposta de Merlin.
O sossego veio mais uma vez, mas ele não foi bom para a ruivinha. Sua raiva começou a enraizar, se tornou cada vez mais nítida e lúcida. E uma ideia surgiu desse poço cheio de ódio.
“O Philip aceita aprendizes?”
Merlin ficou muito surpresa com a pergunta.
“Como assim?” Perguntou olhando para Lira, confusa.
“Ele aceita aprendizes?”
“Bem, na época do exército ele aceitava, mas não sei dizer se ele aceitaria agora. Principalmente depois de ter abandonado o exército.” Ela parecia preocupada.
“Vou perguntar a ele.” Lira pegou seus talheres e seu prato e o levou até a pia. “Onde fica o escritório dele? ”
Merlin estava prestes a dizer, mas então vacilou. Ficou pensando algo consigo mesma e aparentou estar preocupada.
“No último celeiro vermelho. Suba as escadas da direita.” Respondeu enfim. “Lira, se você conseguir convencê-lo a aceitá-la, poderia me fazer um favor?”
Lira não entendeu muito bem, mas acenou positivo.
“Faça-o esquecer dos horrores da guerra.” Seu olhar e rosto pareciam suplicar por aquilo.
Lira estranhou mais ainda.
Do lado de fora da casa, ela viu o quão grande era aquela fazenda. Ia até onde sua vista alcançava, com vários celeiros e campos cercados com animais diversos. Caminhou observando cada um deles. Não tinha animais soltos, então não sabia para que usavam aqueles lugares.
Ela caminhou até o último celeiro vermelho da fazenda. Ele estava bem distante.
“Será que só eles dois cuidam dessa fazenda gigante?”
Aquela caminhada deu espaço para Lira pensar em algumas coisas.
“Por que será que ele abandonou o exército? Será que aconteceu alguma coisa durante uma batalha?”
Ela pensou em várias coisas, todas relacionadas ao que aconteceu com Philip. Mas pensar não traria respostas agora… como sempre.
Foram talvez dez minutos de caminhada e Lira estava de frente para o celeiro vermelho. A porta estava entreaberta e o vento fazia ela ranger
Lá dentro era um espaço bem grande, com várias ferramentas penduradas, algumas caixas e balcões de madeira. Parecia um grande depósito, ou uma grande área de trabalho.
Nas duas paredes, a da direita e da esquerda, havia uma escadaria que levava para o segundo andar.
“Suba as escadas da direita. ” Lembrou-se do que Merlin havia dito.
Aquelas escadas rangiam e parecia que cederiam a qualquer momento, mas Lira continuou subindo-as. Foi quando ouviu um barulho. O tilintar alto, de algo batendo contra o cobre.
Ela começou a subir mais rápido. Entrou num cômodo que mais parecia um corredor, e que levava a uma outra porta.
“Caim! Está atrasado hoje.” Deu para ouvir Philip por detrás da porta. Ele parecia animado conversando com seja lá quem estivesse ali.
Lira lentamente abriu a porta, evitando fazer com que rangesse, e entrou.
Era um lugar muito bem arrumado. Tinha fotografias, retratos, armas, quadros cheios de condecorações, e um deles tinha um uniforme preto e branco, lindo e bem cuidado.
Philip estava sentado numa cadeira, próximo a uma bancada, também cheia de recordações e segurava um telefone, cujo fio estava conectado a uma base perto da porta.
“Teve uma reunião com os superiores hoje, é? Parece que as coisas estão difíceis por aí.”
Philip fez uma breve pausa, ouvindo o que a pessoa na outra linha dizia.
“Teve uma luta na fronteira?” Philip gritou surpreso. “Houve ordem de extermínio?” Ele pareceu muito preocupado.
“DROGA!” Socou a bancada na sua frente, com força. Deu longos suspiros e voltou à ligação. “Qual era o tamanho do esquadrão? ... Trinta homens? Então não conseguiram fazer um grande estrago. ... Como assim o Lua Azul estava lá? Qual era a missão?... Matar Asas Negras?!... Missão concluída sem problemas, não é?” Philip pareceu triste e comentou longe do telefone. “Parece que os Asas Negras foram extintos, então.” Houve um momento de silêncio. Não parecia que estava aguardando a resposta da outra pessoa, mas apenas um simples silêncio.
“Você não costuma me ligar sem motivo, principalmente logo após uma reunião. O que quer, Caim?” Phili pausou novamente, aguardando uma resposta, e continuou logo depois.
“Eu não vou voltar Caim, você sabe disso... Estão faltando homens? Acha realmente que minha presença fará tanta diferença nos campos de batalha?... Você quer que eu seja professor na academia?” Ele deu uma risada alta de desdém e abriu um sorriso grande e carismático, mas logo ele sumiu e foi substituído por um olhar de pura raiva.
“O quer dizer com isso?! ‘Você não vai matar inocentes!” Farei pior que isso, Caim! Estarei ensinando eles a matar, vou fazer o que eu fazia antes, só que agora por tabela! Eu não teria controle algum no que esses garotos iriam fazer nos campos de batalha, Caim! Eu não vou voltar para o exército, não importa o que me diga ou o que me ofereça!... E daí que paga bem?! Eu não quero dinheiro! Quero paz! Quero esquecer das merdas que eu fiz!” Quando Philip se acalmou, viu Lira perto da porta assustada com ele. “Tenho de desligar, tenho uma visita inesperada ... Eu não vou pensar na proposta, Caim.”
Ele andou até a base, desligou e guardou o telefone. Ficou ali parado sem fazer e dizer nada. O silêncio dominou aquele cômodo.
Lira ficou ali, num desconforto imenso. Não sabia o que fazer, ou o que dizer, mas percebeu que tinha que dizer ou fazer alguma coisa.
“Eu ... ”
“O que quer? ” Philip retrucou rápido. Lira ficou desconcertada.
“Duas coisas apenas. ” Disse por fim tirando uma confiança que não sabia de onde vinha. “Primeiro te agradecer, você me salvou e não tenho como te recompensar por isso. ”
Um sorriso agradável apareceu no rosto de Philip, ele conseguiu melhorar, e muito, aquela carranca que ele tinha.
“E qual a segunda? ”
Depois de um breve momento de hesitação ela disse:
“Quero que você me treine. ”
O sorriso no rosto de Philip desapareceu desapareceu.
“Para quê? ” A irritação já estava ficando clara na voz.
Lira pensou nessa resposta por um bom tempo. Não conseguia dizer o real motivo, o de querer vingar sua família.
“Quero ser capaz de matar demônios, evitar o que aconteceu comigo se repita.” Foi a resposta final de Lira.
A irritação no rosto de Philip era clara e digna de prêmio.
“Se ouviu minha conversa no telefone, já sabe minha resposta. ”
“Mas... ”
“Nada de ‘mas’, não quero a vida de mais inocentes na minha mão. Mesmo que seja por tabela. ” Virou-se de costas.
Agora era a vez de Lira ficar irritada.
“Mesmo que você não me treine, eu vou caça-los. E se eu morrer, vai carregar a minha morte nas suas mãos! ” Ela berrou.
Philip se virou para Lira e começou a andar em sua direção, seus olhos carregavam uma raiva e um arrependimento que ela nunca viu em sua vida.
“Sabe por que eu abandonei o exército, menina? ”
Ela negou com a cabeça. Ele afastou-se dela e se sentou na cadeira que estava antes.
“Sente-se.” Apontou na direção de uma outra cadeira e Lira se sentou ali.
“Eu fui um general de um batalhão da cavalaria de Altum, um dos cargos mais altos antes de a mana se tornar uma exigência. Fiquei conhecido como Cavaleiro Rubro. ”
“Por quê? ”
“Quando eu lutava no campo de batalha, junto dos meus homens, eu sempre voltava encharcado de sangue. Minha armadura e uniforme, antes branco e preto, ficavam vermelhos. Eu era impiedoso. Até o dia da minha trigésima luta na fronteira. ”
“Era uma luta para conseguir mais escravos, tentávamos capturar uma cidade neutra próxima à fronteira dos demônios, mas a situação saiu do controle e uma ordem de extermínio foi lançada. ”
Para Lira, aquela palavra não era boa coisa, “extermínio”.
“Matar civis não humanos agora era regra. Ninguém que não fosse humano não poderia sair daquela cidade vivo. Se tivesse chifres, escamas, penas, cauda, tinha que morrer. Eu fiquei despreocupado no começo. Ignorava os gritos de terror, clamando por ajuda e piedade. Mas eu cheguei a um limite, Lira. Fui obrigado a matar crianças. ”
O clima ficou tenso, o silêncio era quase como um pedido de ajuda para que aquilo parasse.
“Não tenho aprendizes desde o meu primeiro ano como general, e não vai ser agora que abandonei o exército que eu terei um. Assunto encerrado.” Ele parecia querer fugir daquele assunto. Se levantou e começou a ir na direção da porta, Lira foi no seu encalço.
“Demônios de sangue azul mataram minha família. ” Lira disse sem nem perceber e continuou. “Minhas irmãs, meus pais, minha casa. Tudo foi tomado por aqueles malditos! Tenho raiva deles, não quero que isso aconteça de novo. Quero ficar forte para me proteger, e proteger aqueles próximos de mim. Então por favor, me deixe ser sua aprendiz! ” Ela abaixou a cabeça e pediu aos e berros e aos prantos por aquilo.
Philip olhou diretamente para os olhos de Lira e sentiu raiva.
“Isso não é desejo de proteger alguém, é desejo de vingança. Já vi esse mesmo olhar em cadetes que queriam meu auxílio nos treinos, você não vai ficar feliz em matar demônios, acredite.”
Philip saiu do escritório e Lira foi atrás. Ela tentava encontrar um argumento para usar a seu favor e vasculhou bem fundo na memória, até que se lembrou de uma das histórias de sua mãe.
Ela parou e falou em alto e bom som.
“Houve um homem que tinha medo de entrar no mar.” Philip parou de repente e se virou na direção de Lira, ouvindo-a. “Certa vez quase foi comido vivo por um peixe numa tempestade em alto mar, e por isso sequer tinha coragem de encostar em água salgada.”
“Do que diabos está falando?” Philip tentou cortar a fala de Lira, mas ela não parou.
“Ele passou tanto tempo com esse medo que mesmo depois de ter se casado, o homem ainda não entrava no mar. Mesmo depois de ter um filho, o homem ainda não entrava no mar. Mesmo depois que a seca e a podridão assolaram aquelas terras, impedindo a família de ter suas refeições, o homem ainda não entrava no mar.”
Lira deu uma breve pausa para fins dramáticos, assim como sua mãe fizera há um bom tempo atrás.
“Até que um dia, seu filho se cansou dessa situação. Pegou escondido o barco do pai e foi ao mar. Naquele mesmo dia houve uma grande tempestade de ventos que fez o menino velejar sem controle algum e coincidentemente encontrar mesmo peixe que o pai encontrara há muitos anos. Ali ele decidiu e gritando aos céus, ‘vou matar você, pelo que fez ao meu pai.’ Depois de uma longa batalha, o garoto matou o peixe.”
A história parecia ter acabado e Philip absorvia tudo o que havia escutado e finalmente disse.
“É uma boa história para crianças dormirem, mas o que isso tem a ver com o assunto?”
Lira ficou com um pouco de raiva do comentário, mas disse sem perder a confiança.
“Já ouviu o ditado ‘filho de peixe, peixinho é’? Isso não é verdade. Os filhos não são iguais aos pais, por isso eles não cometerão os mesmos erros que eles ou terão os mesmos medos.” Ela deu uma pausa para dar um longo respiro. “Eu não cometerei os mesmos erros que aqueles cadetes. Se acha que tenho desejo de vingança, então me ajude a converter esse desejo em algo melhor.” Lira olhou esperançosa para Philip.
Ele ouviu aquilo tudo e ficou com uma cara bastante estupefata, até que deu uma risada bastante alta.
“Lira, quantos anos você tem?” Ela estufou o peito.
“Tenho 10 anos.”
“Tinha que ser filha de uma historiadora para falar tão inteligente dessa forma.” Com um sorriso leve no rosto, ele se virou para Lira. “Acho que não tenho muita escolha. Está bem, vou treinar você.”
Um sorriso gigantesco apareceu no rosto da pequena filha de historiadora.
“Obriga...”
“Porém, tem uma condição.” Philip cortou Lira e, por um momento, o sorriso saiu de seu rosto e foi substituído por uma expressão de dúvida. “Você, pequena, não buscará vingança, em vez disso, buscará justiça. Se algum dia for obrigada a matar um inocente, e vai precisar matar, você não matará esta pessoa. Não importa se será demônio ou humano. Estamos entendidos?” Com um olhar determinado, ele olhou para Lira enquanto aguardava uma resposta
“Sim, estamos.” Lira respondeu. O sorriso voltou ao rosto dos dois.