Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

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Volume 1

Capítulo 27: A despedida

A visão do quarto de Merlin era desesperançosa e passava uma sensação lúgubre no âmago de Lira. Confusa, já não sabia há quanto tempo estava de joelho. 

Podiam ser horas, dias ou minutos. Sua mente estava em um turbilhão confuso de sentimentos de preocupação e medo. 

“Ela já devia estar de pé...” Murmurou preocupada. Tentou se levantar para ver Merlin mais de perto, mas algo a impediu.

“Está de brincadeira comigo?!” Ouviu uma mulher gritar do primeiro andar, já imaginando quem era.

Foi o mais rápido que pôde até a escada, mas não desceu. Ficou poucos degraus próxima ao térreo e prestou atenção à conversa dos dois. 

“...Vocês sempre querem algo em troca! Começaram toda essa guerra e acabaram com a vida de muitos, nos fizeram de escravos e nos vendem como objetos!” 

Vitra gritava cheia de raiva e sua garganta já parecia sofrer em manter aquilo por muito tempo. 

“São gananciosos e transformaram minha vida inteira num inferno, não vou cair nesse papo de não querer nada! Então o que você quer?!”

Aquele discurso cheio de fúria e ingratidão parecia ser contagioso, porque Lira sentia a mesma coisa. No entanto, ao invés de berrar, segurou sua raiva e apertou seus punhos com toda a força que pôde. Sentiu suas unhas cravarem na pele.

“Minha vez de perguntar...” Ouviu Philip dizer. “O que a faz pensar que sou como qualquer humano?”

Aquilo, por alguma razão, foi como um estalo para Lira. Philip não era qualquer homem do exército por aí. Costumava ser o Cavaleiro Rubro, um dos nomes de maior peso no exército. 

Mas a persona “Philip” abandonou seu lado obscuro, para morar numa fazenda. Abandonando seu nome, posição e talvez até prováveis riquezas. Por que alguém faria isso?

“Por que acha que lhe tratei tão bem?!” Cada palavra de Philip queimava nos ouvidos de Lira, lembrando do incidente com o Deviam. “Por que eu salvaria sua vida, mesmo você tendo ameaçado a minha?!” 

“Não era uma pergunta de cada vez?”

“Você fez dezenas de perguntas, me diminuindo como se fosse a escória dos humanos! Quer saber o que eu realmente quero de você?” Philip deu uma pausa. Tempo suficiente para Lira absorver toda aquela discussão. “Quero que beba do meu vinho e que tenhamos uma conversa enquanto bebemos. Não de demônio para humano, mas como iguais!” 

O mesmo estalo de antes aconteceu com Lira, mas dessa vez ele não resultou numa pergunta. 

Faça-o esquecer dos horrores da guerra.

Lira se lembrou do pedido de Merlin, de tantos dias atrás. Philip não era um militar tentando esquecer os horrores da guerra...

O Philip não quer esquecer ou melhorar, ele se sente culpado até hoje, então pensa que merece toda essa “tortura”, entre aspas.

Era alguém que não queria esquecer do que viu, mas sim aprender com aquilo e ser alguém melhor, ou menos pior do que o Cavaleiro Rubro era. 

Hesitante, Lira se levantou das escadas e caminhou até a cozinha. Quando pousou os olhos em Philip sentiu um respeito enorme por ele, e pensou que era sortuda por conseguir se tornar sua discípula. 

“Então você desceu?” Perguntou Philip com um meio sorriso e num tom meio irônico, ele virou o resto de vinho no copo e se levantou para pegar outra garrafa. 

Por um breve momento, Lira e Vitra trocaram olhares, e foi como o mar durante a ressaca se encontrando com a praia. 

A levemente abalada e confusa Vitra, viu em Lira a carranca de puro ódio comum nos homens que ela encontrara nos últimos meses como escrava. Quis confirmar se o que via era real, e de fato era. 

Lira tinha no rosto, o olhar e a expressão de ódio que alguém para a idade dela não deveria ter. 

Bem diferente do pai. Vitra pensou, com certa apreensão estampada no rosto. 

Pouco depois, Philip retornou carregando mais uma garrafa de vinho e uma taça. Colocou ambos na mesa e encheu todos os copos. 

“Lira, venha!” Ele disse a sua discípula e apontou com a cabeça para uma das cadeiras próximas. 

Quando Lira se sentou, um silêncio desconfortável ficou entre os três. Vitra não sabia como continuar com o assunto depois do que Philip disse, e ele...

Bem, ele se preocupou em apenas beber o vinho. Era de uma safra agridoce dessa vez e não era vermelho, mas sim branco. 

“Quantos dias acha que vai ficar por aqui?” Philip perguntou quebrando o silêncio, enquanto degustava o vinho branco. 

“Eu não sei...” Vitra respondeu hesitante. “Tenho que mandar uma carta para minha mestra e avisá-la que estou bem, mas preciso ir rápido... Já estou fora há muito tempo.” Comentou com uma expressão triste no rosto, aparentava ser verdadeira, mas Lira não pareceu se importar. 

Tentou não demonstrar isso, apenas deixou a conversa fluir enquanto escondia do Philip a raiva e os sentimentos negativos que sentia. 

“Lira, e a Merlin?” Philip perguntou de repente. Ele disse enquanto olhava para o próprio copo de maneira distraída, como se não se importasse com o que havia perguntado, mas o nervosismo escondido em sua voz e as mãos tremendo deixaram claros seus reais sentimentos.

“Ainda dormindo...” Lira respondeu com um ímpeto de culpa em seu peito.

A expressão de Philip por um breve momento se deteriorou por inteira. O homem despreocupado que apenas queria beber seu vinho branco, assumiu por breves instantes uma carranca horrenda. 

Ele recuperou a compostura o mais rápido que pôde e se desesperou para mudar de assunto: 

“Você acha que vai precisar de transporte?” Se virou para Vitra, tentando disfarçar a hesitação na própria voz. 

“Tenho que falar com o Trauno, mas acho que vamos precisar sim.”

“Posso te oferecer um dos meus laraltos. Sei do problema que vocês demônios tem com eles, mas não lhe causarão problemas. Acredite!” 

“Não se preocupe com isso! Nós podemos lidar com...”

Vitra foi cortada por um estrondo forte. Trauno veio correndo da entrada, arfando e suando. Tinha algo no meio dos dedos, pequeno como uma folha.

“Uma borboleta apareceu, senhorita!” Ele disse exacerbado.

“Tão cedo?” Vitra se perguntou confusa. Quando se aproximou de Trauno, ele imediatamente entregou para ela o objeto em suas mãos. Um cilindro pequeno e dourado.

Ela o abriu e puxou de dentro um pedaço de papel anormalmente grande para o tamanho daquele cilindro, e começou a ler aquilo. 

Sua expressão mudou conforme passava os olhos pelo conteúdo. 

“Tenho 4 dias para chegar no porto de Vinghue...” Murmurou perplexa. O conteúdo na carta era muito mais do que apenas isso, mas não podia dizer grandes coisas com dois pares de olhos humanos a observando.

“Acho que vai aceitar minha oferta no fim das contas.” Philip comentou irônico, abriu um sorriso forçado no processo. 

Alguns minutos se passaram enquanto os dois demônios acertavam com Philip os detalhes sobre a viagem. Coisas como rotas seguras, tempo para atravessar a fronteira e maneiras seguras de fazer o mesmo. Lira via aquilo tudo como algo inútil. Ela só precisava sair pela porta e voltar para o país dela. Sequer precisaria dos Laraltos de Philip. 

No entanto, lá estavam eles. Reclamando da qualidade duvidosa das estradas do sul e do excesso de soldados e mercenários que existia na travessia lago marco-sul. 

Foi quando aconteceu o toque alto do telefone na sala. 

“Eu atendo!” Lira disse, sem saber exatamente o porquê de fazer isso. Porém, nenhum dos três prestou atenção nela, ou ao toque do telefone. 

Ela foi a passos rápidos até a sala, e atendeu o telefone colocado ao lado do sofá. 

“Quem é?” Disse pegando o telefone, meio desengonçada, sem saber direito como pegar aquela coisa redonda e lisa. 

“Oi, eu precisaria falar com o Philip. É a Lira, não é?” Uma voz grave veio logo em seguida e Lira tremeu receosa. 

Reconheceu aquela voz. Foi a mesma pessoa que deu a Philip aquele olhar, a poucos dias atrás. Era Deviam, com sua mesma voz irritante e fingida de antes.

“O que quer com o Philip?” Ela perguntou sem perceber. Apertou com mais força o telefone, enquanto a raiva lhe crescia no peito.

“Coisa de adultos, menina!” disse irônico. 

“Sou grande o suficiente para isso.” 

“Altura não tem haver com maturidade. Agora, passe o telefone para o Philip. Por favor!” Falou em um tom de educação, que de alguma maneira conseguiu soar arrogante.

“Escute…” Lira estava prestes a discutir com Deviam, mas teve o telefone arrancado de suas mãos. Quando se virou para olhar, viu Philip com uma expressão irritada no rosto, enquanto pedia silêncio para Lira.

“O que quer Deviam?” Ele soou cansado e mais irritado do que antes. 

Lira olhou para a irritação de seu mestre, e não pôde fazer nada além de se identificar. Ela ouviu algumas palavras incompreensíveis vindas do telefone, mas ela conseguiu discernir com perfeição o tom arrogantemente educado de Deviam. 

“Sabe que não me importo com suas estratagemas!” Philip respondeu depois de ouvir a resposta de Deviam. 

“...Caim…” Foi a única palavra audível que Lira discerniu. 

“Tem razão… Qual o relatório que ele enviou?”

A resposta de Deviam levou muito tempo, e Lira discerniu algumas poucas palavras daquilo tudo. Como “Luz Branca”, “falta de homens”, “relação ruim” e “cidades neutras”. Também ouviu diversas vezes a palavra “patriarca”, ela era dita com um nojo evidente e a carranca irritadiça de Philip sempre ficava pior depois de ouvi-la. 

“A coisa não parece muito boa do lado dele, não é?” Soou compreensível quando disse isso. 

Ambos os lados ficaram em silêncio naquele momento, nenhum dos dois sabiam como continuar com aquela conversa. Foi só por conta daquele momento de silêncio mútuo, que Lira conseguiu ouvir o que Deviam disse em seguida: 

“Ela já acordou?”

Por um breve e miserável instante, Philip mostrou seu olhar demoníaco, e por um azar digno de canções sobre desastres e pestes, Lira viu esse olhar. 

As palavras ditas em vermelho na segunda porta nunca fizeram tanto sentido, quanto naquele momento. 

“Ainda não!” Suas palavras eram quentes como uma fornalha e afiadas como lâmina recém feita. “E de quem acha que é a culpa?!”

Uma resposta veio do outro lado, mas Lira se preocupou mais com o choque de ter tido a tranca da porta aberta, do que aquela conversa. 

“Suas desculpas não vão fazer ela acordar!” 

Philip bateu o telefone com força na base ao lado do sofá. O baque repentino foi quase como um estalo na cabeça de Lira, fazendo ela voltar ao presente por um breve momento. 

“Você viu de novo, não viu?” Philip perguntou sem olhar diretamente para Lira e soando preocupado. 

Ela acenou positivo, mas depois de perceber que ele não havia visto fez soltou um sim resguardado para si. 

Philip deu um suspiro cansado para quebrar o silêncio. Não era o tipo de suspiro que se ouvia de alguém que trabalhou o dia inteiro, ou de alguém que queria algo melhor mas inalcançável. 

Era um suspiro sincero demais para ser saudável, e anormalmente silencioso para ser o suficiente.

Eles dois não trocaram olhares ou palavras pela próxima hora. Philip terminou os últimos detalhes sobre a viagem com a Vitra, e não se preocupou em fingir o olhar cansado que tinha.

Também não bebeu mais vinho, o que foi bem mais surpreendente para a papilio. 

Meia hora depois disso. Lá estavam eles, terminando de afivelar as rédeas nos dois Laraltos mais velhos de Philip e arrumando os mantimentos que levariam para a viagem, sendo eles basicamente dois caixotes inteiros de carne seca e frutas. Também dera dois vinhos como um presente e para matar a sede das noites frias. 

Com tudo pronto, estavam todos do lado de fora da casa sem saber exatamente o que dizer. Os agradecimentos já haviam sido dados, mais de uma vez inclusive. E a compensação por aquilo, segundo Philip, foi feita em meio a uma conversa com vinhos e uma boa conversa. 

Um ato altruísta demais para parecer verdadeira.

“Foi muito bom ter conhecido vocês!” Vitra disse enfim. 

“Digo o mesmo!” Disse Philip, enquanto abaixava respeitosamente um chapéu invisível. “Apesar das desavenças que tivemos, espero o melhor para vocês na viagem que está por vir.”

Trauno se aproximou e em uma grande reverência, abaixou sua cabeça para Philip em um ato exageradamente respeitoso.

“Devo muito ao senhor, por ter salvado a vida de minha senhorita em minha ausência!” 

“Aceito um simples obrigado, como compensação!” Disse animado. 

Se levantando abruptamente, Trauno tinha uma expressão surpresa e aturdida no rosto. Ainda assim, ele levantou sua cabeça e abriu um sorriso sincero demais para alguém aparentemente sério como ele. 

“Obrigado!” Disse mostrando todos os dentes e toda a sinceridade do mundo.



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