Volume 1
Capítulo 28: Libereco
Houve a muito tempo, um conto sobre um corvo de asas dúplices, que voava desolado e desesperado, quando se separou da própria família. Ele fugiu para longe, até onde as estrelas encontram as montanhas.
Ali, ele encontrou sua esperança e se agarrou a ela como as árvores são a terra.
Mas até a mais antiga das árvores pode ter suas raízes arrancadas.
Suas esperanças foram destruídas a meras fagulhas e cacos menores que grãos de areias, quando descobriu uma dura realidade. Que as estrelas estavam mais altas do que ele imaginava.
Assim se sentia o garoto de asas negras. Como um corvo de asas dúplices desolado e desesperado, que perdera as esperanças em alcançar as estrelas.
“Não consigo acreditar que você só é capaz disso!”
Mais uma vez, Arnok levantou uma muralha de chamas contra Maike.No fundo, sabia que não adiantaria de nada, mas a insanidade tomou conta de seu âmago, de sua mente e de seu corpo.
Quando viu a silhueta da ilusão de humano sair do meio das chamas como se aquilo fosse uma simples brisa, ele sentiu o seu sangue borbulhar conforme fervia de raiva.
Não sabia quando perdera o controle das próprias chamas, mas elas o dominaram como um manto longo e o fizeram parecer um arauto da destruição.
E foi exatamente isso que ele fez, destruiu tudo ao seu redor. Uma onda poderosa se espalhou por todas as direções, tendo como epicentro onde Arnok estava. Por mais que já sentisse os efeitos colaterais daquele gasto todo de mana, ele não pararia até ver os mortos voltarem a seus túmulos.
Enquanto isso, Hiotum só olhava de longe toda aquela confusão. Não sabia o que fazer, ou como reagir a tudo aquilo.
Seu discípulo atacava o vento com a ferocidade de um lobo faminto e sedento. Gritava aos prantos contra algo que não existia. Mandava se calarem, quando não existia sequer uma única alma viva suspirando alto o suficiente para que pudesse ser ouvido.
“Tenho que fazer alguma coisa...” se pegou murmurando. “Se continuar desse jeito, ele logo...”
Bem quando disse isso, Arnok enviou uma onda de chamas na sua direção. Hiotum pode ter se defendido facilmente daquilo, mas o que viu não era uma boa coisa.
As chamas no corpo do Arnok, estavam se tornando menos descontroladas e, de alguma forma, elas começaram a tomar formato em volta do rosto dele.
O que parecia o bico de um pássaro começava a surgir, se assemelhando aos piores pesadelos de alguém.
“Eu não tenho mais tempo!”
Desesperado, Hiotum começou a correr na direção do garoto de asas negras. Da palma da sua mão, uma descarga elétrica constante surgiu e ele a colocou no rosto de Arnok.
“Liberar.” Murmurou por instinto.
A descarga passou pelos dedos de Hiotum e atravessaram cada centímetro no corpo de Arnok. Não sentiu dor alguma, mas a estranha sensação de todo o seu corpo travar em um único instante foi horrível.
As chamas maiores ao redor deles se apagaram de um instante para o outro, assim como a consciência do garoto.
A magia de Arnok deixou aquela colina irreconhecível, queimando todas flores e árvores ali perto. O cheiro forte de queimado misturou-se à fumaça e tornou difícil, o simples ato de manter os olhos abertos.
Colocando-o no ombro, Hiotum caminhou para longe da colina e rumou de volta à capital.
Ele se sentia um inútil. Por todo esse tempo, não havia percebido o estado em que a mente de Arnok se encontrava. Aquela situação toda poderia ter levado a algo muito pior, se ele não tivesse agido rápido.
O que está acontecendo com ele? Se pegou pensando. O que diabos ele estava vendo por todo esse tempo?
Enquanto isso. A consciência de Arnok se distanciava cada vez mais, conforme sentia o balanço leve de ser carregado.
Se sentiu sendo rodeado por sombras. Por mais que tudo estivesse escuro, como numa noite sem estrelas, de alguma maneira, ele sabia exatamente aonde estava e para onde ir.
Ao longe, ele viu uma silhueta pequena. Conforme se aproximava dela, os detalhes se tornavam mais nítidos e viu que algo saia de suas costas.
Eram asas, de uma penugem negra como carvão e falhada em algumas partes. Arnok sentiu que já havia visto essas falhas. Ou melhor, às sentido.
O garoto se virou e Arnok viu a si próprio, como em um espelho. Uma duplicata, cujas únicas diferenças eram a expressão mais pura e o rosto sujo de sangue, terra e poeira.
“Não deveríamos estar aqui!” A duplicata disse, soando extremamente monótona e exausta. “Deveríamos estar junto deles!” Apontou para algum lugar em meio aquela escuridão e naquele lugar, uma fonte de luz extremamente alta e forte surgiu.
Por instinto, Arnok se aproximou daquilo. Quanto mais perto ficava, mais a luz se prostava diante dele e ali, bem na sua frente, estava uma fogueira de talvez dois metros e meio de altura.
Não sentiu nenhum calor intenso vindo dela. Na realidade, de alguma maneira ele sentiu um arrepio horrendo lhe atravessar a espinha. Sabia o que era aquela torre de chamas, mas não queria admitir.
Então sua duplicata fez isso por ele.
“Você os queimou aqui… Todos eles!” Continuava soando monótona, mas em seu rosto havia uma raiva que queimava como o fogo daquela fogueira. “Deu liberdade a eles, mas não a si!”
“Como assim?”
“A terra… Ao presente… Ao Libereco!”
Aquelas três palavras soaram de novo, e de novo num eco infindável dentro daquele espaço escuro. Retumbaram na cabeça de Arnok, como uma maldição antiga dita pelos que deram nomes às coisas.
Foi uma situação infernal. Duas palavras perderam força conforme o tempo passou, mas Libereco nunca diminui sua pressão esmagadora sobre Arnok. Na realidade, aparentava aumentar cada vez que se repetia.
Como um tambor ritualístico, ela batia e retumbava cada vez mais rápido e forte. Até que, sem perceber, Arnok começou a murmurar-la.
“Libereco!” Disse uma vez, junto do eco infindável.
“Libereco!” Disse pela nona vez, junto de sua voz interior e sua duplicata.
“Libereco!” Disse uma trigésima vez, já não mais diferenciando a própria voz daquele eco sem fim.
“Libereco!”
Disse por fim, quando finalmente ouviu os sinos da loucura.
“Ele quase se perdeu, Malar…” Alguém disse, soando extremamente preocupada. Aquilo funcionou como um estalo, e Arnok olhou para trás ignorando as chamas de seu passado.
Viu ao longe duas silhuetas, que lhe eram ao mesmo tempo familiares e estranhas.
“Quão perto ele ficou de se entregar?” A segunda silhueta perguntou a primeira. Elas estavam discutindo entre si, ambas de pé.
“Vi uma máscara de corvo aparecer no seu rosto…”
“Então deve tomar cuidado Hiotum. Esse garoto ficou muito perto de perder o controle, e você sabe, tanto quanto eu, o que acontece com os jovens que chegam a esse estado!”
A primeira silhueta não respondeu, um ar de preocupação e hesitação tomou conta dela e toda a resposta que deu a segunda silhueta foi um breve suspiro e um pesar vindo do fundo de sua alma…
“Eu sei…”
“Se você sabe, então cuide desse garoto Hiotum. Porque talvez, ele de fato seja o último asa negra!”
Aquilo foi um choque, tanto para Arnok quanto para a primeira silhueta.
“Como assim?” Perguntou confusa.
“3 outras caravanas de Asas Negras foram aniquiladas, assim como aconteceu com a caravana do Arnok, e eu duvido muito que encontraremos outra…”
O choque repentino se tornou em uma dura realidade, e Arnok caiu de joelhos com uma expressão apática no rosto. Não sabia como reagir àquilo.
“Não pode ser…” A silhueta parecia estar em um estado semelhante ao de Arnok, e ele se lançou a uma cadeira próxima.
“Quando esse garoto descobrir o quão fundo é o buraco em que ele está, você não poderá mais ajudá-lo Hiotum. Lembre-se disso!”
“O garoto é forte Malar!”
“Mas ele não é o Morpheus, Hiotum!” A segunda silhueta gritou. “O rei dos demônios morreu! Supere isso! Pelo amor que você tem a seus chifres!”
“Não dá…” Disse hesitando. “Não consigo não ver Morpheus no Arnok, Malar! E você está vendo as mesmas coisas que eu! Não finja que não!”
“Não vou. O rapaz é realmente tão parecido que chega a assustar!” A silhueta cruzou os braços e pareceu olhar para Arnok de maneira inquisitiva. “Mas ele não é o Morpheus, coloque isso na sua cabeça que você poderá ser um bom mestre, entendeu?”
A primeira silhueta ficou em silêncio. Eles dois ficaram ali por algum tempo, até que a segunda foi embora e a primeira ficou ali mais um pouco.
“Como diabos eu vou ensinar ao último asa negra desse país?” Ele disse derrotado. Finalmente fora embora depois disso, assim como a segunda silhueta.
Arnok olhou para aquele vazio sentindo um buraco sem fundo e com nada dentro surgindo de dentro do seu âmago. Aos poucos, aquilo foi sendo preenchido por diversas coisas.
A primeira delas foi a culpa.
Culpa por pensar que podia ser algo, além de um fracassado que perdera os pais.
A segunda foi raiva.
Raiva por ser um fracassado que perdera os pais, e que não podia fazer nada sobre isso.
A terceira foi Libereco.
Inveja, raiva, Libereco, malícia, ganância, Libereco, ódio, morte, Libereco, tristeza, solidão e Libereco.
Tudo sempre voltava ao Libereco, mas nunca era algo bom ou satisfatório como costumava, ou deveria ser.
Era azedo e com cheiro de amônia.
Irritava ao se ver, ou sentir.
Fazia seus olhos saltarem com o quão horrendo era aquilo e seus dentes trincarem com as sensações frias.
Quando seu âmago ficou cheio de muitas coisas, mas principalmente Libereco, ele só podia dizer uma coisa...
“Libereco!”
Sua consciência voltou naquele instante e ele acordou ensopado no próprio suor e sentindo lágrimas secas no rosto. Ficou sentado na própria cama, fraco e pequeno.
Suas asas pareciam atrofiadas com o quão fechadas elas estavam, e pensou na ironia de Libereco estar passando na sua cabeça naquele instante, enquanto o maior significado de Libereco para ele estava enfaixado e dolorido.
Por que isso é o Libereco, não é?
Cambaleando e mal sentindo o chão, ele saiu do próprio quarto e desceu os diversos lances de escada do dormitório até o primeiro andar.
Saiu pela porta da frente e a primeira coisa que fez foi inspirar bem fundo e olhar para cima. O céu tinha poucas estrelas, mas que brilhavam como se fossem pequenas luas. Era meia noite, e Arnok sentia a brisa fria da noite lhe atravessar as costas como um analgésico inconveniente e irritante.
“Eu sou o último deles…” Falou com raiva para aquela brisa fria. Arnok sentia e pensava muitas coisas naquele momento, mas principalmente uma.
Voltou para o dormitório pensando no significado de muitas coisas que achava que já sabia por todo esse tempo. A primeira e principal delas era “Para que ele lutava”?
Era para se vingar? Não, isso era clichê demais e demoraria muito para acontecer. Não valia a pena.
Era pelo último desejo de seu pai? Alcançar as estrelas? Isso não era algo objetivo de fato, por mais que fosse bonito você dizer que queria ser poderoso o suficiente para tocar uma estrela, se isso é algo possível é uma outra história.
Então, por quê lutar?
Para que andas, se não tem um marco no final desse percurso?
Ele estancou no meio das escadas e olhou para frente sem ver nada em específico.
“Por que continuar lutando?” Murmurou. “Sequer tenho uma razão para ficar mais forte… Então por quê?”
Não percebeu quando voltou a subir as escadas, mas só notou que estava no próprio quarto quando começou a adentrá-lo e fechar a porta atrás de si.
Sentiu seu corpo pesar e ele olhou para a lua através da sua janela brilhando, estranhamente impotente.
Sentia pena da lua, obrigada a brilhar até o fim dos seus dias sem ter uma real razão para aquilo. Sozinha, sem nenhuma outra lua a seu lado.
Sozinha, ela jorrava um brilho prata e gélido sobre Arnok, e sozinho ele se sentiu.
Sendo observado pela imensidão branca e preta acima dele, sentiu-se pequeno, fraco e…
E o quê?
Havia algo além daquilo, e ele não sabia dizer o que! Só podia se remoer e pensar.
“Eu sou o último deles…” Disse mais uma vez.
“E vai querer ser o mais fraco de todos?” Maike surgiu de repente, mas Arnok sequer reagiu a ele. No entanto, também não o ignorou. “Vai decepcionar a todos que vieram antes?”
“Já estão todos mortos!” Mordeu a própria língua, quando disse isso.
“Então deixe uma marca aos que ainda estão vivos, não faça as pessoas se lembrarem de você de como o último asa negra vivo!” Ele foi ao lado do jovem asa negra e apontou para as estrelas. “Façam eles se lembrarem de que você foi o asa negra mais forte de todos!”