Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

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Volume 1

Capítulo 26: O olhar de uma criança

“Você podia ter feito qualquer coisa!” 

Arnok murmurou, ainda nos corredores da enfermaria. Estava quase saindo daquele lugar doentio e estava acompanhado de muitas coisas. Um sentimento irracional de raiva, com um gosto horrível na boca, por conta dos remédios, e uma asa suturada e enfaixada.

“Poderia ter sido útil! Poderia ter... Poderia ter...” Parou abruptamente, de frente para a porta de saída. “Merda!”

Escancarou as portas, e sentiu a brisa quente passar por suas asas. A sensação foi boa, mas seria necessário mais do que isso para melhorar seu humor. 

As ruas estavam praticamente vazias, com poucos alunos dando as caras naquele momento. Havia um silêncio não natural naquele momento. Não existia uma ausência absoluta de sons, mas tornava aquele ambiente vazio em algo estranho e desconfortável. Por consequência, Arnok apertou o passo. 

Sentia que estava sendo observado por algo além da ilusão do humano que ele...  que suas mãos mataram. Era um olhar frio e passava uma sensação de ameaça constante. 

Aquilo chegou a um ápice, e o primeiro instinto de Arnok foi se virar abruptamente na direção daquilo. E ele viu...

Nada.

Não havia nada. Sequer um aluno, uma alma penada, ou algo que pudesse observá-lo. Apenas continuou a andar, tentando ignorar ao máximo aquelas sensações. 

“Acha que está enlouquecendo?” Maike perguntou, surgindo do nada. Ele soou preocupado quando disse isso, mas com uma leve sugestão de ironia na voz. 

“Cala a boca.” 

“Estou preocupado com meu demônio favorito.” O gracejo sarcástico na voz de Maike era algo irritante de ouvir, como uma criança chorando por um doce.

“E eu quero que você suma!” Arnok gritou, já sentia seus nervos à flor da pele e se virou para Maike prestes a gritar muitas outras coisas. Mas a alucinação de humano não estava mais ali. 

Quem estava no lugar de Maike, era Kaesar. 

“Desculpe por... Seja lá o que eu fiz.” Ele comentou com as mãos para o alto e com um sorriso hesitante. 

Arnok desfez a postura de irritado e assumiu uma de arrependimento e confusão.

“Sinto muito. Eu... Achei que fosse outra pessoa.” Evitou olhar nos olhos de Kaesar quando disse isso. Soava cansado e tentava esconder sua postura irritada, mas ainda transparecia muito. 

“Não. Tá tudo bem.” Kaesar disse em um tom de simpatia e amizade.

Os dois caminharam lado a lado, em um silêncio fúnebre. Ambos pareciam tentar quebrá-lo de alguma maneira, mas não sabiam como.

Arnok não conseguia olhar para Kaesar, ele se sentia culpado pelas coisas que aconteceram no dia anterior e não sabia como se desculpar. Via a expressão de preocupação que recebia dele e não se sentia merecedor dela. 

“Você falou com o Vincent?” Kaesar quebrou o silêncio. 

“Vincent?” 

“O homalupo que ajudou a gente ontem.”

“Ah... certo. Não falei com ele, e você?” 

“Sim. Ele informou a família do ocorrido.” Kaesar ponderou, enquanto cruzava os braços e bufava de leve. “Eles vão tentar encontrar aqueles dois.”

O silêncio desconfortável voltou, e parecia pior do que antes agora que o assunto acabara de fato. 

Depois de um bom tempo, Arnok chegou no seu dormitório com Kaesar ainda ao seu lado. Por alguma razão, o homalupo não saiu de perto do amigo. Subiram os diversos lances de escadas até o último andar e eles ficaram parados em frente a porta do quarto. 

Aquele silêncio já começava a se tornar ridículo e vergonhoso. Ambos evitavam olhar nos olhos do outro. Alguém tinha de acabar com aquela situação logo.

“Tenho que me arrumar.” Arnok disse, e foi tudo o que ele conseguiu dizer. Foi até a porta do próprio quarto e começou a destrancá-la. 

“Arnok, tá tudo bem?” Kaesar perguntou enfim, e Arnok estancou e ficou parado por alguns instantes. 

“Sim, estou.” Mentiu com o sorriso mais forçado que conseguiu pôr no rosto. Kaesar percebeu aquilo, mas o que ele podia fazer? 

Se Arnok não estava disposto a falar, como Kaesar poderia ajudá-lo?

“Certo... Depois eu falo com você, caso o Vincent descubra algo.”

"Tá bom..."

Kaesar se afastou e Arnok entrou, ambos com um peso enorme de culpa na consciência. 

O baque da porta pareceu um abismo intransponível. Largo demais para pular e fundo demais para ver o começo. Um sentimento de medo e amargura se apossou de Arnok e aquela mistura só deixou sua cabeça mais confusa e hesitante. 

“Você podia ter capturado aqueles dois...” Ele encostou na porta e escorregando, sentou-se no chão. Sentia-se quebrado por dentro, mais que o normal. 

O quarto pareceu escurecer, como se ele estivesse no fundo do poço. Os móveis ficaram tingidos de preto, e então as paredes também, até que finalmente o teto. Um amargo cinza apoderou-se de seu interior. 

Um grasnar surgiu de repente, aquilo foi como um estalo e a escuridão foi embora em um instante. Quando tudo voltou ao normal, Arnok viu algo parado na janela e observando ele...

“Um corvo.” Murmurou sem perceber. 

O corvo observou Arnok por mais algum tempo, até que grasnou mais uma vez e voou para longe. O garoto levantou num sobressalto e foi correndo para a janela vendo o pássaro partir para bem distante dali, em algum lugar que Arnok jamais alcançaria. 

Porque nós somos asas negras, somos livres, mesmo diante da morte.” Disse em tom fúnebre. “Libereco.

“Não entendo essa mania de vocês asas negras. ‘Libereco’.” Maike disse com desdém, surgindo de repente. Como sempre. “O que diabos isso significa?”

“Você não lia minha mente? Procure as respostas você mesmo.” Comentou com indiferença. Ele caminhou até o armário e pegou o outro par de roupas que tinha e se trocou, sentindo nas asas diversas pontadas de dor. 

Ele vestiu-se com roupas confortáveis. Não eram largas, mas também não colavam no corpo. Ambas as peças, camiseta e calças, eram feitas para treinos da academia. Algo como um uniforme de campo, e apesar de não ter os bordados convencionais, era facilmente reconhecível como um uniforme. 

Arnok caminhou até a porta e quando a abriu, viu Maike parado de braços cruzados e olhando para o asa negra na sua frente com um desdém escancarado no olhar.

“Aonde vai?” Perguntou.

“Leia minha mente e você descobre.” Arnok retrucou no tom mais grosseiro que pôde, se sentiu envergonhado por estar brigando com uma ilusão na frente da porta do seu quarto. Qualquer um poderia vê-lo naquele momento. “Agora sai da minha frente.” 

“Por que eu precisaria? Sou uma ilusão como você mesmo pensou!”

Arnok abriu uma carranca cheia de ódio e tentou empurrar Maike com o ombro, mas ele atravessou o ar e foi direto para o chão. 

“Merda...” Murmurou.

Quando voltou a olhar na direção de Maike, o humano já não estava mais lá. Se levantou e sentiu que havia ralado o joelho na queda, aquilo só a carranca no rosto de Arnok ainda mais visível e profunda.

Começou a descer as escadas, com uma certa dificuldade. Ele ignorou os olhares que recebeu dos alunos, como sempre. Talvez algum dia pudesse se acostumar com aquilo.

“Agora, para a entrada da cidade...” Pensou alto enquanto olhava para a caminhada que estava prestes a fazer, com o joelho ralado e o corpo dolorido. 

De alguma maneira, a caminhada fora surpreendentemente mais fácil do que ele imaginou. Atravessou a divisa entre a academia e as casas das famílias nobres, quase o tempo todo sozinho na rua. 

Foi encontrar pessoas pelo caminho somente na parte média da capital. O comércio naquele lugar era mais vivo que em muitas cidades que Arnok já visitou. O clima agradável e “familiar”, de certa maneira, acalmou e muito a raiva que ele tinha. 

Mas tudo foi por água abaixo quando ele voltou àquele beco do dia anterior. 

Ainda havia alguns pedaços de telha no chão e o som delas quebrando retumbou no fundo da mente de Arnok, como um antigo pesadelo, ou um trauma jamais esquecido. 

O sentimento de culpa e raiva, fez Arnok continuar andando ignorando tudo ao seu redor e só olhando para o chão. 

Foram vinte minutos de caminhada, Arnok estava parado no portão que havia chegado à capital no começo de tudo isso. A mesma paisagem que havia visto naquele dia, estava se repetindo hoje. 

Vários soldados, de diversas raças, corriam num treino matinal de resistência. Alguns grupos recitavam juntos algumas canções de encorajamento, outros, no entanto, eram encorajados pelos gritos de ameaça de seus capitães.

Uma tediosa hora se passou, e Arnok apenas ficou encostado na muralha enquanto esperava por seu mestre. Mais alguns minutos se passaram, quando finalmente viu a silhueta de um fauno de cabelos grisalhos e de manto longo.

Hiotum cumprimentou Arnok da onde estava e foi se aproximando devagar. Ele tinha uma expressão preocupada no rosto, aparentemente a reunião com Os Anciões não foi tão bem. 

“Vamos indo então?” Ele comentou apontando para o portão. Sua voz soava cansada, assim como seu olhar.

Os dois saíram da capital pelo portão sul, e caminharam por algum tempo na estrada principal. Eles não conversaram entre si, mas isso não foi um problema. 

Foi até de certa forma nostálgico, era como os dias de viagem na estrada no começo disso tudo. Um clima apaziguador, que acalmou as marés de ansiedade, raiva e culpa que Arnok estava sentindo. 

Quando Hiotum parou de repente e saiu da estrada principal, Arnok não se preocupou em perguntar o motivo. Sentia uma confiança enorme no seu mestre, e não queria discutir com ele sobre algo inútil. 

O terreno foi se tornando mais irregular e difícil de se caminhar, como se escalasse um morro. Alguns minutos depois, Arnok percebeu que era exatamente isso que eles estavam fazendo. 

Estavam no topo de um morro com uma vista limpa para as muralhas da capital. Tinham umas poucas árvores ali perto, e até a brisa que passava parecia ser mais calma. 

Hiotum começou a tirar o próprio manto e o jogou sem grandes floreios. Olhou para Arnok de uma forma inquisitiva e pensativa. 

“O que foi?” Arnok perguntou preocupado com o que estava por vir.

“Me golpeie.” Hiotum disse depois de um momento de silêncio.

Arnok ficou aturdido por alguns instantes, mas antes que pudesse perguntar qualquer coisa, uma luz azul se formou na ponta dos dedos de Hiotum e ela se materializou na forma de um raio. 

O movimento foi rápido, e Arnok só teve tempo de se agachar por instinto.

Um grande estrondo surgiu de trás dele no instante seguinte, acompanhado do baque alto e pesado de algo caindo no chão. Quando parou para olhar, uma das árvores ali perto estava carbonizada e partida no meio.

“Me acerte e esse treino termina.” Hiotum gritou enquanto formava outro raio na sua própria mão.

“Isso é loucura!” Ele gritou confuso e indignado, mas já era tarde demais de novo. Hiotum lançou outro raio na direção do seu discípulo e Arnok cometeu o erro de seguir seus instintos.

Ele abriu asas para voar, mas não somente falhou miseravelmente, como fez com que a dor lancinante e aguda voltasse de uma única vez. Além de que. Arnok também foi acertado pelo raio. 

O jovem asa negra pensava que a pior dor que já sentiu, ou poderia sentir na vida foi sua asa sendo deslocada. Se achava um idiota por ter pensado aquilo. 

A sensação de ser eletrocutado era horrível, principalmente por sentir que aquele choque chegava até seus ossos. 

Gostaria de dizer que foi um choque leve, por ter durado por pouco tempo. Mas se descrevesse dessa forma, mesmo depois da dor que Arnok sentiu, seria uma grande contradição. 

Ainda assim, Arnok se levantou. Sentiu muita dificuldade para fazer isso, porém agora sabia o que tinha de fazer.

Ele ia acertar Hiotum, assim como pedira. 

Quando se recompôs, seu primeiro movimento foi acender seus braços em chamas puras. Assim como...

“Como no dia que você me matou.” Maike apareceu, vindo de lugar nenhum, entre Arnok e Hiotum. Ele tinha seu sorriso desdenhoso de sempre. 

“Cala a boca.” Arnok disse sem perceber. Avançou contra Maike por impulso e estava prestes a lhe dar um soco, quando o humano deu um passo para o lado.

Aos poucos, Arnok viu algo surgindo no seu campo de visão e antes que tivesse tempo de reagir ou assimilar quando levou um golpe, fora jogado para longe com uma força gigantesca.

“Preste atenção, Arnok!” Hiotum gritou em advertência.

O fauno estava em posição de alerta, enquanto esperava seu discípulo ficar em pé de novo. No entanto, Arnok não prestava atenção em Hiotum.

Só conseguia ouvir as longas e irônicas risadas de Maike, elas não eram nada humanas e muito menos demoníacas. 

O humano nada disse, apenas ficou rindo enquanto descaradamente olhava para Arnok com um tom de arrogância e insignificância. O rosto do asa negra se fechou mais uma vez numa carranca de ódio. 

“Para com isso!” Arnok esperneou, já não se importava com o seu mestre olhando para ele de maneira confusa e amedrontada. “Cala a boca!” Gritou mais forte.

“Isso é hilário!” Maike admitiu. “Como pode o demônio que me matou ser tão fraco!”

Movido pela fúria, Arnok mais uma vez correu para atacar a ilusão de humano à sua frente, mas tudo que recebeu em troca disso foi um sorriso irônico dele e outro soco do seu mestre. 

“Eu estou aqui Arnok! Quem diabos está atacando?” Hiotum disse ainda mais confuso que antes. 

Arnok ficou tentado a falar a verdade, mas a mera tentativa fez Maike dar ainda mais risadas. 

“Além de fraco e inútil, é um fujão incapaz de fazer as coisas sozinho.” E então outra onda de risadas cínicas e cheias de arrogância.

A raiva fez as chamas aumentarem, encobrindo seus braços por inteiro. Até seu olhar pareceu uma forja por conta da ira. 

“CHEGA!”

Uma onda de chamas enorme foi liberada por um balanço do seu braço direito e no instante seguinte, Arnok começou a suar e arfar de cansaço. Hiotum ficou ainda mais confuso, vendo que seu discípulo atacou do lado completamente oposto ao de onde estava.

O que diabos está havendo com ele? Se perguntou. 

“Arnok, é o suficiente! Não sei o que está havendo com você, mas pare antes que se sobrecarregue.” Hiotum se aproximou com o tom mais preocupado que podia fazer na própria voz. 

No entanto, fora completamente ignorado. 

Outra onda de chamas veio em seguida, indo dessa vez contra Hiotum. No entanto, sem grandes dificuldades, ele evitou as chamas com uma simples barreira de mana. 

“Acha que um plano desses funcionaria comigo?” Hiotum perguntou achando graça daquilo, até que viu o olhar de Arnok. Muito pior do que havia visto algumas noites atrás, na tragédia do bar. 

O desespero de um homem sendo caçado pelo diabo. O medo de alguém prestes a morrer. A raiva de um amante traído. A tristeza de uma viúva vendo a morte dos próprios filhos, e por último, a solidão pura de uma noite sem estrelas e sem lua. 

Assim estava o olhar de Arnok, mas isso ficava dezenas de vezes pior quando você percebia o fato de todos esses pensamentos e sentimentos virem apenas de uma criança.

 



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