Volume 1
Capítulo 20: Meu lobo é minha sombra
Por mais que fossem três horas da manhã, muitos demônios continuavam nas ruas. Olhavam para o horizonte, ainda pasmos com a luz vermelha da noite passada.
Os boatos eram como brasa em palha seca, o problema era que agora o celeiro inteiro estava em chamas e o incêndio já não podia mais ser contido.
“Acho que é coisa dos humanos...”
“Será que não são testes de alguma magia...”
“Alguém da escamas de sangue deve ter acordado...”
Estes eram somente alguns exemplos.
Porém, enquanto os vizinhos fofocavam e teorizavam sobre o ocorrido nos telhados de suas casas, havia um grupo de homens que corriam cautelosos e o mais silenciosos que conseguiam.
“Quanto até chegarmos no epicentro?” Caim perguntou para seus subordinados.
“Uma hora se continuarmos nesse ritmo, senhor!” Isaac gritou.
“Daqui uma hora o sol vai começar a raiar, não podemos perder nossa cobertura.” Caim falou para seus homens sem perder por um segundo sequer a concentração na corrida. “Se não chegarmos nos Luz Branca em no máximo 40 minutos, vocês todos farão 100 flexões!”
“Sim senhor!” Foi a resposta em uníssono de todos eles. O ritmo do grupo aumentou consideravelmente e cada vez mais eles chegavam perto do epicentro e da academia.
Duas horas depois, dentro da academia.
Arnok abriu seus olhos lentamente. Se sentia cansado, por mais que tivesse dormido. Cheio de enxaqueca ele se levantou da cama. Ficou olhando ao redor do próprio quarto, como se estivesse esperando por alguém.
Ou a alucinação de alguém.
Foi quando ele viu, em cima da sua mesa, um papel com algo escrito. A letra era rebuscada, apesar de apresentar sinais claros de que a pessoa que escreveu estava com pressa.
“Arnok, estarei ocupado com muitas coisas hoje com relação ao ocorrido de ontem...” Dizia na carta. “Estará por conta própria, então se quiser sair para a parte média, ou explorar mais a academia. A escolha é sua.” No final de tudo havia uma assinatura do Hiotum.
Arnok colocou a carta de volta na mesa enquanto sentia a enxaqueca ir embora lentamente. Ele pensava consigo mesmo qual das duas opções eram melhores.
Descer até a cidade, ou continuar na academia? Ele mal tinha noção de como andar em qualquer uma das duas.
Não tinha conhecimento algum sobre a cidade, e o único caminho que ele conhecia da academia era até a biblioteca...
“Espera, a biblioteca!” Ele exclamou sozinho no quarto. Se arrumou tão rápido quanto pôde e saiu do quarto para o corredor amplo do seu andar.
Não havia ninguém no corredor e todas as portas estavam fechadas. Ou todo mundo já havia saído, ou ninguém acordou.
Ele começou a descer as escadas, se esbarrando com um aluno ou outro, os olhares do dia passado ainda estavam ali. Mas Arnok tinha coisas piores e menos reais para se preocupar.
As ruas estavam com pouco movimento de alunos. Mas as carroças eram diversas, indo e vindo da parte média e baixa da capital. Carregavam produtos diversos, para abastecer os estoques da academia.
Mas haviam algumas coisas fora do padrão. Como as carroças cheias de cadeiras de madeira e os... fogos de artifício?
O que diabos eles estão planejando? Arnok pensou.
Ele foi seguindo as carroças, até chegar perto do prédio da universidade. Entrou pela mesma porta do dia anterior, quando foi introduzido aos Anciões. Enquanto caminhava por aqueles corredores, ele pôde ouvir as vozes dos mesmos ficando mais e mais altas conforme se aproximava da porta.
Era difícil entender o que diziam, mas em meio a toda aquela algazarra, Arnok conseguiu perceber que Hiotum estava lá dentro. Sua vontade era de ficar ali e ouvir o que discutiam.
Mas não queria arriscar uma expulsão ou coisa do gênero, sem sequer ter começado a estudar.
Voltou a andar na direção da última porta do corredor e assim que a abriu, mais uma vez sentiu a pressão vindo da porta gigante no fim do corredor. Evitou olhar para ela o máximo que pôde, e seguiu para o corredor da biblioteca.
A porta da biblioteca estava aberta dessa vez e dava para ver alguém indo e voltando correndo diversas vezes.
Quando passou por ela, quase foi atropelado pelo sujeito que estava correndo.
“Cuidado Arnok!” Kaijum o repreendeu e voltou a correr.
“Desculpe.” Ele falou rindo. Não entendia a situação em que Kaijum estava, mas vê-lo correr de um lado para o outro cheio de coisas era relativamente engraçado.
Arnok voltou a caminhar até as estantes do lugar. Não importava quantas vezes visse, aquela quantia enorme de livros e estantes sempre lhe impressionava. Ele encontrou bem rapidamente o livro do dia anterior, a existência do título “casas nobres de gaia” nas costas do documento foi a coisa que mais facilitou a busca.
Aquele livro era muito útil. Explicava cada família nobre da capital e sua influência sobre Gaia. Para Arnok, alguém que nunca se envolveu neste tipo de coisa, isso era um novo mundo com vários significados.
“A principal coisa que você deve ter em mente é...” O livro dizia. “Seus sobrenomes representam algo muito mais complexo. Apenas os filhos da linhagem direta do patriarca carregam o sobrenome, e apenas esses costumam receber a principal técnica da família.”
As técnicas, como o livro contava, eram formas de se controlar a mana. Cada uma tinha um estilo e uma “personalidade própria”. Toda família nobre tinha uma e ela é o que diferenciava alguém da “nobreza baixa” da “nobreza alta”.
Essas expressões e informações não pareciam confundir Arnok. Ele absorvia aquilo com uma facilidade invejável, ao ponto de decorar alguns parágrafos.
“Os Lua de Sangue são conhecidos pela beleza e seriedade. Além das técnicas envolvendo controle do sangue, a maioria dos filhos da linhagem direta são seres Vampíricos de sangue puro. Os tornando caçadores natos.” Arnok começou a murmurar sem perceber, estava tão focado no livro que ignorou completamente o todo o resto ao seu redor.
“Os Sombra da Lua são excêntricos no mínimo. Aprimoraram suas técnicas para o controle das sombras...” Aquilo o surpreendeu por algum motivo.
Arnok sabia que a mana era capaz de infinitas coisas, mas controlar as sombras? Ele pensava confuso.
“Se tornaram aos poucos exércitos de um homem só, com suas técnicas cada vez mais consistentes e poderosas. Seu extremo oposto, no entanto, não perdia em nada para eles...”
O livro contou a história de um demônio dos tempos do primeiro rei. Seu nome era Lumo. Como não havia muitas casas nobres naquela época, ele não tinha um sobrenome para assumir.
O sujeito ficou conhecido pela técnica mais poderosa que já passou pelos demônios. “Trilha de Luz.”
“A Trilha de Luz consistia em manipular a própria luz...” Arnok continuou murmurando, cada vez mais impressionado. “Transformá-la em qualquer coisa, para depois liberar em uma velocidade maior que nossa própria visão.”
O livro continuou contando sobre outras grandes casas nobres. Passou pelos Escamas de Sangue, contando sua linhagem de drakodemono e sua técnica relacionada aos antigos dragões.
Contou sobre os Karbono e sua técnica de controlar o carbono no próprio corpo. E também detalhou sobre os Coração de Mana.
“Seguindo completamente fora do padrão, existem os Coração de Mana. Seu primeiro patriarca poderia ser considerado um pacifista que queria o fim da guerra com o menor número de vidas perdidas do seu próprio povo. Criou uma das técnicas mais complexas entre os demônios... Escravidão da alma.”
“Nunca gostei desse nome.” Alguém disse pelas costas de Arnok. Ele se virou assustado e viu o sujeito que havia falado. “Acho muito pejorativo para o que ela é de verdade.”
Era Kaesar. O homalupo que Arnok havia esbarrado no dia anterior. Ele puxou uma cadeira e se sentou de frente para o asa negra.
“Leitura interessante que decidiu fazer...” Ele colocou o livro que lia no dia anterior sobre a mesa e uma expressão despreocupada e amigável estava estampada no seu rosto. “Esse cara tem umas opiniões bem fortes sobre algumas famílias, mas é certeiro em quase todas.”
Arnok ficou desnorteado por algum tempo. Não sabia como reagir.
Kaesar surgira do nada, o cumprimentara e sentara na sua frente. Sem mais nem menos. Parecia tratá-lo como igual, uma coisa que nenhum outro estudante fez. Exceto por Mourrice.
“Por que decidiu ler ele?” Kaesar perguntou. Ele abriu um meio sorriso amigável, enquanto aguardava pela resposta de Arnok.
“Eu queria saber sobre as famílias nobres.” Ele olhou para o livro com uma série de pensamentos fluindo em sua cabeça, rápidos como uma palavra azeda. Havia notado agora o quão ignorante era sobre as coisas.
“Entendo... Asas negras são nômades no fim das contas. Acho legal você querer aprender sobre como as coisas acontecem.”
Se eu não souber, sei que terei problemas. Pensou alto e por muito pouco não falou. Arnok também sabia da sua situação como um asa negra. Um estrangeiro que o tempo todo era visto como alguém sem cultura e indisciplinado.
Eu não sou isso.
“Está lendo a mesma coisa de ontem?” Arnok perguntou mudando de assunto.
“Sim...” Kaesar colocou a mão no livro, perdendo um pouco da expressão amigável e ela aos poucos foi substituída pela preocupação e melancolia. “Tem muita coisa que eu preciso estudar sobre essas criaturas.”
“Tem a ver com a Escravidão da alma?” Arnok perguntou curioso.
“Dá pra dizer que sim.”
“O que é essa técnica no fim das contas?”
“Nas palavras do primeiro patriarca... A ligação mais forte da mana é com a alma, então controlando a alma nós controlamos a mana.” Ele recitou as palavras que vinham nos parágrafos seguintes do livro na mão de Arnok.
“Como assim?”
“Basicamente... Ori! Vem cá!”
Ele gritou para o vazio. Arnok estranhou o comportamento dele, mas logo em seguida, algo nas costas de Kaesar começou a brilhar e como se sua sombra ganhasse vida, um grande lobo negro como piche surgiu.
Robusto como um touro, ficou sentado ao lado do próprio dono, como se protegesse um templo.
Ele parecia meio etéreo, com um corpo que ia e vinha de algo sólido para gasoso no mesmo instante. Era calmo e pleno, como se fosse desenhado numa folha de papel e retratado no mundo físico de forma perfeita.
“Este é Ori, meu espirito invocado.” Kaesar acariciou Ori e o lobo pareceu adorar. Era estranho o quão natural e não-natural ele podia parecer ao mesmo tempo.
“Espirito invocado?” A curiosidade fez Arnok ir mais rápido que a resposta de Kaesar e ele buscou no livro o que o homalupo na sua frente estava falando.
A Escravidão da Alma podia trazer os mortos de volta a vida.
“Trazer os mortos de volta a vida?” Arnok perguntou incrédulo.
“Eu disse que o autor tinha opiniões fortes.” Kaesar falou rindo enquanto acariciava Ori. “Não trazemos os mortos, trazemos a alma e a transformamos no nosso melhor companheiro e aliado.”
O sorriso que ele exibia para seu lobo parecia algo muito mais complexo. Parecia estar orgulhoso, mas também tinha um toque de tristeza e decepção.
“Encontramos uma criatura inteligente que combine conosco e após sua morte, fazemos da sua alma nossa companheira.”
Arnok olhava para eles dois com uma certa inveja. Era evidente a amizade que Kaesar e Ori tinham, mas parecia que havia uma história muito maior por trás deles.
“Então...” Arnok tentava entender a Escravidão da Alma enquanto via os dois se divertirem. “Você é um invocador?”
Uma das coisas que Arnok havia lido na carroça do Hiotum, era sobre as classes de mago de batalha. Invocadores era uma delas e a que menos tinha usuários de técnicas semelhantes.
“Exatamente.” Foi a resposta do Kaesar. “Todos na Coração de Mana são invocadores, então eu não poderia ser exceção.” Parecia haver algo maior por trás daquelas palavras.
“E por que do livro?” Arnok apontou com a cabeça para o manuscrito que Kaesar carregava com ele.
“Só o Ori não é o bastante...” Foi a resposta dele, a expressão no seu rosto voltou ao estado de antes, ainda mais melancólico agora. O lobo sentiu a tristeza no dono e pediu por mais carinho tentando distrai-lo e anima-lo.
Arnok ficou preocupado com o sujeito na sua frente. Por mais que tivesse conhecido ele no dia anterior. Algo em Kaesar o simpatizou. Talvez fosse o carisma, ou o lobo gigante que mais parece um cachorro.
“Kaesar...”
“Que bom que encontrei vocês dois!” Kaijum surgira de repente entre as estantes e cortara o que Arnok ia dizer. “Preciso de um pequeno favor.”
“Diga.” Kaesar comentou olhando para o bibliotecário. Ele não parecia se importar com o lobo estar ali.
“Eu preciso pegar algo na cidade baixa, mas estou muito ocupado aqui. É com urgência, vocês poderiam me ajudar nisso?” Ele parecia desesperado.
“Eu não vejo problema...” Kaesar já se levantava para ir, quando se virou para Arnok com o mesmo sorriso de antes. “Você vem?”
Arnok acenou positivo e se levantou, indo logo atrás de Kaesar.