Volume 1
Capítulo 19: Uma explosão nos esgotos
O lugar não era bem iluminado ou cuidado. O cheiro de mofo misturado com a madeira podre deixava um odor fétido e incômodo. As manchas pretas espalhadas pelo piso e teto tornavam tudo ainda mais inquietante.
“Sete pesos do rei...” O vendedor de escravos murmurou, desacreditado. Estava sentado numa cadeira de madeira, enquanto apoiava os pés em uma mesa mofada que rangia com o menor movimento. “Não acha que é um pouco demais apenas para 3 escravos?”
“Eu realmente me interessei pela papilio, então estou disposto a pagar por ela.” Um homem encapuzado respondeu. Não era possível ver seu rosto, mas a qualidade de suas roupas implicava que ele era, no mínimo, detentor de algumas terras.
“Certo, vou levá-lo até os três.” Com tudo rangendo ao seu redor, o vendedor de escravos levantou-se e o homem encapuzado o seguiu logo atrás. Eles foram até uma parede que possuía um pequeno candelabro preso a ela.
“Isso é uma piada?” O sujeito de capuz estava irritado.
O vendedor se aproximou do candelabro e o puxou. Logo depois, o barulho de engrenagens girando e de algo sendo arrastado soou por todo o recinto.
Uma passagem se abriu e revelou uma longa escada que levava para o subsolo.
“Eu não brinco em serviço.” Disse enquanto descia a escadaria. O encapuzado seguiu logo atrás.
“Sei que vou estar parecendo disco riscado...” Comentou irônico. “Mas sete pesos do rei? A última vez que recebi isso foi para uma frota inteira de escravos. Ganhar isso por três é uma coisa impressionante.”
“Já disse que estou muito interessado na Papilio.” O outro falou apressado. Parecia estar desconfortável.
“Escuta, desculpe a pergunta, mas estou curioso sobre algo.” Ele parou abruptamente e se virou na direção do encapuzado. “O senhor trabalha com o quê?"
“Sou fazendeiro.” O outro respondeu secamente.
“Fazendeiros não ganham sete pesos do rei.”
“Eu vendo Laraltos.”
“O único vendedor de Laraltos da região é o senhor Cavaleiro Rubro, e você não é ele.”
Os dois se encaram por um longo tempo, o vendedor demonstrava toda a desconfiança que seu trabalho já lhe proporcionou e era difícil dizer o que o encapuzado sentia, já que não dava para ver seu rosto.
“Não sou da região.” Foi a resposta do comprador depois de algum tempo.
“Sério?” O vendedor disse enfim e voltou a descer as escadas. “Me desculpe então... Mas por que veio até aqui para comprar escravos?”
“Como já disse... Estou muito interessado na Papilio.”
Os dois continuaram descendo em um clima de desconfiança mútua.
O encapuzado começava a se cansar, quando um cheiro fétido, forte e muito pior que o de antes chegou até seu nariz.
Eles desceram por um bom tempo, até que chegaram a um corredor moribundo e ligeiramente estreito, com dezenas de celas, cada uma guardando uma coisa diferente.
Umas prendiam animais selvagens incomuns, como lobos musgo e macacos asa de carne. Outras tinham humanos em um estado moribundo e decrépito. E também haviam demônios, obviamente.
Até os humanos que estavam com uma aparência horrível, mal podiam se comparar com a dos demônios. Estavam nus e com diversas feridas expostas no chão sujo, acorrentados nas paredes dos pés à cabeça.
Os únicos que não estavam desse jeito eram os três que o encapuzado estava prestes a comprar.
“Muito bem...” O vendedor disse se virando para o outro e estendendo-lhe a palma da mão. “Agora só resta o pagamento.” Complementou com um sorriso obviamente forçado.
“Certo, só um instante.” O encapuzado se virou e começou a revirar os próprios bolsos em busca do dinheiro, quando o capuz escapa um pouco da sua cabeça.
Um chifre arredondado como o de um carneiro apareceu. Os chifres de um fauno.
Sabia. O vendedor pensou e sua mão começou a soltar uma fumaça negra que tomava forma de algo, mas não houve tempo de ver o que era.
O fauno encapuzado que havia sido mais rápido, agarrou o pescoço do vendedor e o levantou do chão. A magia se dispersou no instante seguinte.
“Desculpe por isso, queria ter feito de forma pacífica. Mas como eu disse, eu estou muito interessado na Papilio.” Colocou um pouco mais de força e um estalo alto veio no instante seguinte.
Os braços do vendedor penderam no ar e ele foi jogado em uma cela vazia pelo fauno.
Ele então caminhou devagar até a frente da cela onde estava a Papilio e por mais que o espaço não facilitasse, fez a melhor reverência que podia.
“Me perdoe a demora senhorita Vitra.” Falou como se pedisse clemência.
Enquanto isso, no centro da cidade.
Lira desceu da carroça num sobressalto, junto com Philip.
“Falta muito?” Lira perguntou impaciente.
“Logo ali na esquina.” Philip comentou enquanto apontava para o lugar onde eles iam.
Enquanto Lira olhava ao redor, percebeu que aquela rua era uma visão diferente de todo o resto da cidade.
Estava vazia e parecia que nenhuma alma passava ali fazia algumas horas no mínimo. A única coisa que diminuía a sensação de vazio e abandono, era a carroça do Philip.
Até as lojas pareciam vazias, não tinham atendentes ou compradores. Olheiros ou vendedores ambulantes. Todo aquele clima festivo e estranhamente comercial de antes, não existia naquela rua.
Lira já começava a ficar com medo daquela situação.
“Chegamos.”
Philip parou em frente à loja que ele havia apontado antes. Era uma construção pequena de madeira, com uma vitrine bem suja. Os produtos ali, no entanto, pareciam possuir uma qualidade tão impressionante que divergia com tudo aquilo.
No topo da vitrine havia uma placa de latão com os dizeres: “Bijuterias e outras coisas”.
Os dois entraram na loja e foram seguidos do alto som de um sino batendo.
Não havia muito espaço na loja, mas nem por isso havia menos produtos. Em todos os cantos havia diversos tipos de bijuterias. Jóias, anéis, colares, brincos, pingentes... Candelabros?
Havia de tudo e mais um pouco que representasse riquezas e superioridade.
“MALEKE!” Philip gritou de repente.
“PERA!” Foi a resposta que recebeu, vinda dos fundos da loja.
Deu para ouvir o som dos passos apressados se aproximando e de portas rangendo, foi então que, saindo dos fundos da loja, o Maleke apareceu.
Era um senhorzinho baixo e carcomido. A falta de pelos na cabeça era tanta que lhe faltava até sobrancelhas, deixando ele o tempo todo com uma expressão de surpresa ou susto.
“Em que posso...” Ele ia dizendo quando chegou, mas se cortou e olhou para Philip com um sorriso amigável. “Philip!”
“Bom te ver Maleke.” Philip comentou com um meio sorriso e com um aceno de cabeça.
“Digo o mesmo. Veio me vender alguma coisa?”
“Hoje eu não vim vender... Vim comprar.” Falou enquanto mexia em um dos colares.
“Coisa rara.” Maleke se virou para e abriu um sorriso amigável. “Veio comprar um presente para a mocinha atrás de você?”
“Pode se dizer que sim... Preciso ver seu estoque secundário.” O tom de amizade mudou para algo firme como uma rocha. Impassível de tudo, Philip olhou para Maleke e aguardou sua resposta.
Ele parecia... Surpreso? Era difícil dizer pela falta de sobrancelhas, mas algo nele mudou quando Philip disse aquilo.
“Ela é sua...”
“Sim.” Philip o cortou antes que dissesse algo mais.
“Já volto.” Maleke falou enquanto se virava de volta para os fundos da loja.
Depois que Lira e Philip ficaram a sós, ela decidiu fazer as perguntas que estava guardando.
“Quem é o sujeito?”
“Um velho amigo.” Foi a resposta de Philip, e Lira odiava isso. Essas respostas que não eram respostas, davam brechas para ainda mais perguntas.
Que ele é seu amigo eu já sei.
“O que ele quis dizer com...”
“Aqui está.” O sujeito sem sobrancelhas voltou carregando uma caixa de madeira enorme e que fazia um barulho constante de metal contra metal. “Que tipo de arma Philip?”
Quando ele colocou a caixa no balcão, deu para ver seu conteúdo. Dezenas de armas de fogo, indo do revólver comum, para as escopetas serradas.
“Você não vendia bijuterias?” Lira perguntou olhando para a caixa, com medo.
“Bijuterias e outras coisas, querida. E então Philip, que tipo?”
“Algo simples, mas que ela possa usar por muito tempo.” Philip comentou, enquanto olhava as armas presentes na caixa. Quando uma o interessava, ele pegava e mirava na parede com ela.
Se fosse um revólver, puxava o tambor para o lado via o tamanho e a quantidade de balas. Se era uma garrucha, via o tamanho do cano e a qualidade do cabo. Se era uma escopeta serrada, girava ela nos próprios dedos e fingia recarregá-la o mais rápido que conseguia. Tudo isso para ver a qualidade das armas.
Até que seus olhos caíram sobre umas das armas. Quando a puxou, já sentiu uma grande diferença no peso dela.
“Como pode ser tão leve?”
“É alumínio.” Maleke respondeu de braços cruzados e com um sorriso orgulhoso.
“Como ela vai aguentar os disparos então?”
“Apenas as partes mais irrelevantes são de alumínio e as partes que podem ser substituídas por materiais mais leves, foram substituídas.”
“Você confeccionou essa?” Philip perguntou impressionado.
"Sim, foi um trabalho difícil.”
A arma era um revólver de cilindro personalizado, com capacidade para 8 balas. Era todo numa cor cinza meio opaca e com entalhes circulares no cabo e perto da boca do cano, mas o mais estranho era a falta do cão.
Philip não perguntou sobre, ficou apenas testando-a. Percebeu que o cão estava junto do gatilho para facilitar na velocidade de disparo e que apesar da maior parte da arma ser de alumínio, ela de fato parecia mais resistente do que aparentava.
“É realmente um trabalho incrível.”
“Obrigado.”
“Lira...” Philip entregou a arma para sua discípula com o cano virado na direção oposta. “Veja se gosta.”
Quando Lira pegou a arma, se surpreendeu com a leveza. Apesar de ser muito grande nas suas mãos, o cabo parecia ser do tamanho perfeito e a aparência da arma lhe agradava bastante.
“Eu gostei.” Falou enquanto fingia disparar na parede.
“Quanto é, Maleke?”
“Sete pesos de herói.”
“Sete pesos?!” Philip gritou indignado.
“Você viu a qualidade da arma.”
“A melhor arma que eu já usei custava um peso de herói.”
“Esta foi feita à mão, e o alumínio ficou muito caro de uns tempo para cá. Sabe que minhas armas são tão boas quanto minhas jóias." Falou enquanto mostrava alguns anéis que tinha nos dedos.
Com um suspiro, Philip pegou a grande moeda de peso do rei que tinha no bolso e colocou no balcão.
“Obrigado.” Maleke estava prestes a pegar a moeda, mas Philip segurou suas mãos.
“Você ainda me deve pelo osso de Laralto do mês passado.” Ele puxou de volta a moeda e deu risada da expressão irritada que Maleke fez. “Se isso te agrada, ainda vou comprar uma coisa.”
“Pelo menos isso.” Maleke desabafou.
Philip o puxou para perto e os dois se falaram por algum tempo, até que Maleke pegou algo embaixo da mesa e entregou. O peso do rei voltou a ser colocado na mesa para pagar por aquele conteúdo.
“Agora está quitado comigo, Maleke.” Philip se virou e começou a sair da loja com a caixa em mãos e Lira seguiu logo atrás brincando com o revólver.
Foi do lado de fora que eles dois viram a confusão toda.
Guardas e soldados corriam de um lado para o outro dando ordens para os colegas e berrando outras coisas.
“Os escravos estão nos esgotos!” Um deles gritou.
Philip e Lira se olharam confusos.