Volume 1
Capítulo 21: Foi na igreja que a borboleta pousou
O som de passos na água ecoava por todo o esgoto. O cheiro fétido de algo morto era insuportável para todos eles e tocar nas paredes, para se orientar naquela escuridão profunda, era uma missão de revirar o estômago.
“Falta muito?” Vitra parou por um instante para descansar, inspirando todo o fedor daquele lugar em um longo respiro. O fauno que a resgatou fez o mesmo.
“Não, logo estaremos fora da cidade.”
“Você não acha que demorou demais, Trauno?”
“Foi difícil encontrar a senhorita, caro também.”
Foi então que de trás deles, a luz fraca de uma tocha apareceu. Logo em seguida, o som de diversos passos pesados e as sombras de diversos soldados apareceram.
“Encontrem-nos!” Um deles gritou.
“Merda!” Trauno sussurrou e voltou a correr com Vitra no seu encalço. Mas tiveram que parar quase que no instante seguinte.
Alguém saiu de uma das encruzilhadas do esgoto. Era uma mulher armada com uma lâmina negra, escondendo o rosto com uma máscara simples.
Ela nada disse. Apenas ficou em posição de combate, com a espada pronta, deixando o antebraço na frente do rosto. Um brilho vermelho começou a surgir de seu braço e os desenhos formados lembravam as presas de um tigre. Os olhos ficaram avermelhados e uma pressão começou a sair dela.
“Aprimoradora!” Trauno sussurrou em voz alta, pensava em diversas maneiras de sair dali, mas Vitra foi mais rápida.
Sua mão brilhou em vermelho e no instante seguinte, ela jogou uma bola de chamas nas águas do esgoto. O lugar ficou inundado por um cheiro horrível e com todo o vapor da água, não se conseguia ver um palmo na frente do nariz.
O cheiro e acidez da fumaça fez os olhos da aprimoradora lacrimejarem. Quando finalmente deu para ver algo, o grupo de demônios já não estava mais na frente dela.
“Merda!” Ela gritou.
Enquanto isso, poucos metros acima. Philip dirigia sua carruagem com uma expressão serena, por mais que estivesse uma confusão ao redor com guardas correndo para todos os lados.
Enquanto isso, sentada ao seu lado. Lira prestava atenção a cada detalhe da sua nova arma. Não conseguia se cansar de olhar para ela, e soltar murmúrios elogiando a beleza simples, mas impressionante do revólver.
Ela só tirou os olhos da arma quando Philip parou a carroça e desceu. Eles haviam parado em frente a uma igreja de torres bem altas, com diversos vitrais na cor azul.
Era bonita, isso era óbvio. Mas o tamanho era um pouco amedrontador e intimidador.
“Vamos Lira!” Philip falou quase na frente do lugar.
Sua mente voltou a lucidez, e ela foi correndo em sua direção. Lira esquecera de guardar a arma na carroça e se sentiu culpada quando escondeu ela nas costas, embaixo da camisa.
Lá dentro era tão bonito quanto o lado de fora, a diferença era que não era tão ameaçador.
“Philip...” Lira falou enquanto olhava para os candelabros de ouro no teto. “Por que viemos aqui?”
“Vim rezar.” Philip comentou. Ele se sentou em uma das dezenas de cadeiras para púlpito do lugar, Lira também se sentou ao seu lado.
“Acredita nessas coisas?” Lira perguntou um tanto cética.
“Acreditar é uma palavra forte...” Ele se ajoelhou e já começou a cruzar as mãos. “Mas eu paro de pensar tanto nela quando rezo para que melhore.” Ele fechou os olhos e começou a respirar com calma e em um ritmo suave.
“Para a Merlin?” Lira também se ajoelhou, estava curiosa para saber como era “rezar sem acreditar”.
“Sim.” Philip murmurou. “Se bem que agora, acho que vou rezar por mais alguém.” Ele parou o que fazia por um instante e bagunçou o cabelo de Lira num gesto carinhoso, mas pouco delicado. Riu depois de ter feito isso.
Arrumando seu cabelo com uma cara um pouco irritada, Lira finalmente cruzou as mãos e fechou os olhos.
Não sabia como começar, só que teria de se acalmar e respirar fundo várias vezes. Sua mente divagou, até se tornar vazia, como se estivesse dormindo.
Sem pensar direito, a coisa pela qual ela queria rezar finalmente apareceu e com um sorriso no rosto, disse em pensamento.
“Que a Merlin melhore e o Philip fique bem.”
Sua mente divagou com aquela frase, ela fluiu como água em um rio e de repente Lira ficou de frente para as portas.
Algo nelas a atraia, com uma grande força. Mas essa mesma tentação a empurrava para longe também. Era um sentimento estranho, que não conseguia entender.
“Sabe por que as pessoas acreditam em mitos, filha?”
Uma voz veio da porta, era Laura com sua voz clara como a luz do sol e calma como um dia de primavera.
“Não...” Lira respondeu sem perceber. Aquele quarto escuro e infinito onde ficavam as portas, em um piscar de olhos, se tornou uma paisagem clara e limpa de um campo de lírios brancos.
Lira estava a poucos metros de Laura, mas ela não conseguia ver o rosto de sua mãe, apenas as suas costas. Só de vê-la ali em pé e viva, seu coração já se apertou.
“Gostamos de dar sentido às coisas que não entendemos. Mas Lira, se lembre...” Quando Laura se virou para sua filha, o coração de Lira apertou ainda mais. “Eu não conto mitos, conto fatos.”
De repente, todo o chão tremeu. Quer dizer, não foi somente o chão.
Tudo pareceu tremer. O céu azul e limpo, os lírios brancos como neve, o vento lento e calmo. Até que Lira abriu os olhos.
A primeira coisa que viu foi a poeira para todos os lados, tampando toda a sua visão do que havia acontecido.
“Philip!”
Sua primeira reação foi chamar pelo seu mestre, mas ninguém respondeu. Ela olhava para todos os lados procurando por ele. Mas a poeira impedia-a de ver sequer uma palma na frente do rosto.
“Philip!”
Quando a fumaça finalmente começou a se dispersar, Lira viu o pior cenário possível.
Um rosto conhecido segurava Philip pela garganta enquanto encostava nele com o indicador. Era Vitra, completamente suja de poeira e com um rosto cheio de ódio.
“Para trás aprimoradora!” Ela gritou.
Lira, sem pensar duas vezes, estava prestes a avançar contra Vitra, puxando o revólver vazio das costas. Mas foi segurada pelo ombro no mesmo instante por uma mulher mascarada, armada com uma espada negra.
“Fique aqui!” A mulher ordenou por debaixo da máscara.
Ela caminhou com uma desenvoltura invejável e quase perfeita. Mas hesitou quando viu Vitra começando a faiscar o dedo indicador.
“Para trás!”
Naquela altura, a poeira do lugar já havia se dissipado e Lira viu o que acontecera enquanto rezava.
Um buraco enorme estava no meio da igreja e um cheiro fétido saia de lá. Vitra possivelmente saiu do chão e agarrou a primeira pessoa que viu pela frente. Por puro azar, essa pessoa foi Philip.
Dentro do buraco, alguns soldados começaram a sair como formigas, e as portas da igreja foram escancaradas por ainda mais deles.
Todos tinham armas de fogo apontadas contra Vitra, mas nenhum parecia que iria disparar.
"Ordens, senhora?" um deles disse.
“Não atirem! Ela está com o Cavaleiro Rubro!” A mulher mascarada gritou.
Lira já começava a se desesperar, não conseguia entender como o homem que havia treinado ela e lhe dado tamanho pesadelo podia ser feito de refém. Mas quando ela olhou para Philip e viu que ele parecia impassível, como se nada estivesse acontecendo, sentiu que havia algo de errado.
Enquanto isso, Philip ouvia a respiração pesada e desregulada da escrava de poucas horas atrás. Não sentia medo dela, mas muito menos queria atacá-la. Já imaginava os motivos dela ter feito isso.
“Vai se arrepender.” Philip sussurrou o mais baixo que podia, para que somente Vitra pudesse ouvir.
“Ameaças vazias não me dão medo.” Ela disse enquanto suava, olhava para cada soldado ali presente e para cada mínimo movimento, ameaçava o pescoço de Philip com outra faísca.
“Não é uma ameaça.” Disse o mais calmo e desapegado que pode, ele olhou de relance para um dos vitrais da igreja e para a janela logo abaixo dele. “Tem um atirador no prédio próximo daqui, tem você na mira e vai esperar você abrir a menor abertura para disparar.”
Sem pensar, Vitra olhou pela janela para ver bem ao longe, um sujeito meio agachado com vestes pretas e segurando algo semelhante a um arco. Ela dividiu a proteção que Philip dava a ela entre os soldados da igreja e o atirador.
“Por que me avisou?”
“Porque quero te ajudar.” Foi a resposta de Philip. Tão simples e rápido como parece ter sido.
Vitra hesitou por um breve momento. Olhou para todos os lados, procurando por qualquer saída possível, mas Trauno não estava com ela e não poderia vencer todos aqueles humanos no estado que estava.
Odiava receber ajuda de um humano, mas não tinha escolha.
“Certo...” Falou entre dentes. “Qual o plano?”
“Quando eu der o sinal, finja que desmaiou.”
“Qual o sinal?”
“Esse.”
O braço de Philip foi tão rápido e com tanta força que Vitra mal pode vê-lo ou senti-lo. Ele deu uma cotovelada diretamente no estômago dela, que a fez envergar. Logo em sequência, com um soco lateral na têmpora e Vitra desmaiou naquele instante.
Antes que caísse no chão, Philip agarrou suas pernas e a segurou por cima dos ombros. Ele caminhou na direção dos soldados, despreocupado e indiferente, todos olhavam impressionados com o que havia acabado de acontecer.
“Quem é o superior de vocês?” Philip gritou irritado.
A mulher mascarada de antes, deu um passo em frente e ficou de joelhos e de cabeça baixa em frente de Philip.
“Eu sou a capitã de brigada dessa cidade, senhor Cavaleiro Rubro.”
“Então me diga... O que diabos aconteceu para um demônio quase atacar minha discípula."
O olhar do Philip passava uma sensação ameaçadora na mulher mascarada. E em meio aquela pressão toda, ela percebeu o que o Cavaleiro Rubro disse.
“Sua discípula?"
“Sim...” Philip chamou Lira com um aceno de mão e ela veio correndo para trás dele. Olhou para Vitra com raiva e percebeu que seus olhos fizeram um leve movimento. “E ela poderia ter sido feita de refém ao invés de mim.”
Um choque se abateu sobre a capitã dos soldados e ela se realizou de algo, do sujeito que estava à frente dela e da menina atrás dele. Percebeu o erro que cometeram ao tratar aquilo como uma simples fuga de escravos perigosos, ao invés de uma caçada por criminosos.
Ela abaixou ainda mais a cabeça e bateu contra o chão.
“Eu sinto muito senhor... Foi uma falha imperdoável, pagarei caro por isso.” A voz dela falhou uma vez e ela sentiu suas mãos e pernas tremerem de medo.
“A culpa não é sua...” O tom de antes ainda estava na voz de Philip e a seriedade dele surpreendeu Lira. Ele caminhou para longe da capitã, com um último pedido. “Só me diga quem era o vendedor dessa escrava que eu vou me resolver com ele.”
As mãos da capitã tremeram ainda mais.
“Ele foi assassinado senhor...” Hesitou quando disse isso.
Philip parou abruptamente, deu um longo suspiro e pareceu pensar em dezenas de coisas ao mesmo tempo. Levou a mão até a cabeça e massageou as têmporas, parecendo irritado com aquela situação.
“Certo... Então vamos resolver da seguinte maneira. Vou ficar com o escravo e o criminoso como forma de compensação.” Ele voltou a caminhar para a saída da igreja.
“Mas senhor, temos de condená-los pelo que fizeram.” A capitã se levantou rápido e olhou para o ex-comandante na sua frente, confusa e com medo.
“Eles criaram problemas para mim e para a minha discípula. O mais justo seria que a minha pessoa aplicasse a punição.” Ele se virou para a capitã e usou um pouco do olhar que mais marcou Lira a dias atrás. “Não acha... Capitã?”
Acrescentou com desdém, ao mesmo tempo que sua voz exalava um ódio profundo. A mulher mascarada engoliu em seco e suas tentativas de falar algo falharam, resultando em simples gaguejos e murmúrios.
“Acho que isso é um sim.” Philip se virou e voltou a caminhar para fora, com Lira logo no seu encalço. A menina não conseguia parar de olhar para a papilio.
Sentia uma raiva constante dela. Aquele demônio ameaçou seu mestre e ela não pode fazer nada além de olhar. Estava curiosa com o que Philip faria.
Quando os dois saíram da igreja, todos os soldados olharam para Philip, curiosos e confusos. Alguns tentavam contestar o fato daquele homem estar levando a escrava para longe. Mas foram rapidamente silenciados pela sua capitã, com um tapa na nuca.
“Obedeçam a ele!” Ela dizia sempre.
Philip caminhou até o prisioneiro que matou o vendedor de escravos. Trauno estava acorrentado e segurado por dois homens tão altos e fortes quanto ele. Mas não se importou com eles, olhou apenas para Vitra no ombro de Philip.
“Deixem-no comigo agora.” Philip disse enquanto esperou pelas correntes serem entregues a ele.
Os dois homens se olharam e estavam prestes a chamar Philip de idiota, quando viram a escrava nos seus ombros e a capitã olhando para eles com um sinal claro de aviso e advertência.
Quando as correntes foram entregues, Philip puxou o fauno para perto dele e sussurrou no seu ouvido.
“Estou tentando ajudar, não faça nada.”
Trauno ouviu isso e ficou desconfiado no mesmo instante e hesitando, ele relaxou a mente e as mãos. Planejava usar uma magia como distração e tentar fugir com Vitra, mas foi descoberto rapidamente por aquele humano.
Caminhando até sua carroça, Philip colocou seus novos visitantes na parte traseira. Prendeu os pés e pernas de Vitra com as mesmas correntes de Trauno e já se preparava para ir, quando foi contestado pela capitã.
“Senhor Rubro, se me permite o apelido...”
“Não permito.” Philip cortou a capitã, enquanto ajudava Lira a subir na carroça. A expressão da mulher foi para o terror puro.
“Não é seguro viajar com criminosos.” A voz dela tremia e hesitava, mal conseguia olhar para o rosto de Philip. “Posso colocar alguns soldados para...”
“Acha que não sou capaz de me cuidar?” Ele terminou de subir na carroça enquanto mantinha o mesmo tom de advertência de antes.
“Não senhor, não foi isso o que eu quis dizer!” Ela tentou se corrigir e quis adicionar uma explicação, mas Philip já se afastava com a carroça. Ignorando-a completamente.
Tudo que ela fez foi suspirar e mandar seus soldados voltarem a seus postos, sem perguntar sobre o ocorrido.