Volume 1
Capítulo 9 – Heresia
Marcos permanecia em pé, rígido, mais denso que o ar abafado que tornava a sala escura ainda mais sombria. Seus olhos, firmes, não desgrudavam de Reigan, que flutuava com uma calma macabra.
A íris escarlate do Shinigami brilhava — não apenas com luz, mas com prazer. Um prazer sombrio, antigo, como se saboreasse a chegada de uma nova peça ao tabuleiro invisível.
— Acompanhei de camarote, a história de Light Yagami. O garoto que quis se tornar um deus… e morreu de forma patética implorando por socorro.
— “Light”? Tipo, “luz”? O deus da iluminação, se chamava Luz? Isso é sério? — Marcos arqueou a sobrancelha e soltou um riso bufado. — Isso era pra ser um tipo de piada?
Reigan soltou uma risada embriagada de lembranças e desprezo:
— Light foi, de fato, “brilhante” como seu nome. Um idealista. Achava que podia moldar a justiça à própria imagem. Começou como você: escrevendo nomes de criminosos. Mas logo percebeu que o poder absoluto não purifica... devora. E Light… ele se deixou devorar por completo.
— Então ele se corrompeu pelo caderno?
— Difícil dizer. Ao abrir mão do caderno, perdeu as memórias e agiu como alguém diferente, alguém mais... puro. Trabalhou lado a lado com L na investigação. E, ironicamente, pareceu ter mais integridade ali, sem o fardo do Death Note.
— Dê poder a um homem e... Espera... Se juntou ao L?
— Light usou as regras do caderno, para um plano arriscado. Entregou o Death Note de volta a Ryuk, para ele entregar a um novo portador. Enquanto isso, se infiltrou na investigação e ficou próximo o suficiente de L, para se tornar amigo dele.
Ao escutar Marcos se sentou no sofá, perplexo. Absorvia cada palavra, pegou a carteira de cigarro, mas encarou o corredor que levava ao quarto onde Clara estava dormindo e o colocou em cima da mesinha, junto ao isqueiro.
— Um verdadeiro Judas... Mas espera. O L está vivo. Então... ele foi descoberto?
A gargalhada de Reigan ecoou pelo quarto, seca e grave.
— Pelo contrário, Light matou L. Usou de um truque barato para fazer Rem, uma Shinigami, escrever o nome de L, para proteger Misa Amane.
— Misa? Não era uma modelo que se aposentou cedo e sumiu sem motivo? Ela era uma Kira?
— Ela era amante de Light e atuava como a Segunda Kira.
Ao tentar se aprofundar no plano, que Light utilizou para manipular Rem, por algum motivo o fóssil cinzento se negou a revelar detalhes. O que fez Marcos estranhar, mas ignorou de primeira.
— Tá, então se o L morreu… Não era para Kira ter ganho?
Reigan deixou a pergunta no ar com um pensamento: "Pergunta errada, Rosário". Marcos encarou o chão e coçou a cabeça, percebendo que a história em que ele se encontrava, era muito maior do que imaginava, com até mesmo figuras públicas envolvidas. O suor frio escorria em sua têmpora e o leve tremor de sua mão demonstrava seu nervosismo.
— Além do Kira… — se corrigiu — Além de Light, Misa e o presidente dos Estados Unidos, quantos já tiveram um Death Note?
— Pergunta difícil, Rosário. Mas posso te garantir: foram muitos. Artistas rejeitados pela beleza do mundo, poetas que queriam reescrevê-lo à força, órfãos nômades guiados pelo ódio, camponeses tomados por visões, fanáticos devotos que confundiram fé com juízo. Cada um acreditava ser o escolhido. Cada um escreveu sua sentença com a própria caligrafia. E todos, sem exceção, tiveram o mesmo fim: Uma morte trágica, dolorosa… e cruel.
Reigan pousou a voz no passado, como quem abre um baú de ossos esquecidos: — Na “década de 70”, como vocês dizem, um homem chamado Yamada, sofria por causa de sua aparência, sendo ridicularizado constantemente por seus “amigos”. Um dia, ele encontrou um Death Note em um santuário.
Viu no sangue alheio a primeira chance de respeito. Escreveu os nomes de alguns “cães”, assaltantes que circulavam no seu distrito. Aproveitou ainda, para dar-lhes a ordem de lhe entregarem todo o dinheiro.
Mas, um dia, decidiu emprestar aquele “caderno miraculoso” para sua amiga, e ela matou cada uma das pessoas que caçoavam da aparência de Yamada, por estar secretamente apaixonada por ele. O homem a confrontou, a mulher se declarou e disse que fez tudo aquilo por amor. O que deixou ele sem saber o que fazer.
Mesmo hesitante, Yamada escreveu o nome dessa amiga, e ela morreu, bem na sua frente. Sem amigos, sem família e por achar que o caderno era perigoso demais se caísse em mãos erradas, escreveu seu próprio nome no Death Note e o jogou ao fogo.
Não existe, sequer um único humano, que tenha tido um final feliz, depois de se tornar um portador.
Marcos escutou tudo calado e de cabeça baixa. Seus pensamentos eram um misto de “é isso que vai acontecer comigo?” com “Será que eu realmente não tenho como mudar esse futuro?”
Reigan riu da atitude de quem falou que “não se importava como morreria”. Falar, qualquer um fala, mas ao ver a verdade chegar, a dor é uma só.
— Você quer saber quem matou Kira? — repetiu Reigan, com um leve tom teatral.
— Sim — Cravou os olhos no Shinigami.
— Light Yagami foi morto por Ryuk.
Franzindo o cenho, Marcos demorou alguns segundos para entender a nova informação. A incredulidade do próprio Shinigami escrever o nome do portador de seu caderno percorreu seu pensamento, como uma engrenagem de um enorme maquinário, mas logo recordou:
— Ao chegar a hora da morte do humano, dono atual do caderno, o dono original do Death Note deve escrever o nome desse humano em seu próprio, reavendo assim a posse total do caderno.
Reigan assentiu em um movimento lento com a cabeça. Explicou que ao ser encurralado por Near e os investigadores, num galpão sem saída. Light ficou sem cartas na manga. Ryuk apenas cumpriu as regras do caderno.
A casa se tornara cúmplice de tantas revelações, que já não ousava mais julgar. O relógio não marcava o tempo, mas contava os pecados suspensos no ar. Por um longo e agônico instante, era o único som — seco, pontual, quase cruel.
Na poltrona, a perna de Marcos sacudia em espasmos nervosos, como se tentasse fugir do corpo. Seus olhos estavam fixos em nada, mas um mundo inteiro se movia dentro da sua cabeça, num caos de nomes, decisões e abismos.
— E os ideais dele? Você... viu o que ele queria?
— Light acreditava firmemente que podia ser um deus. Começou matando assassinos, ladrões... mas logo depois policiais, repórteres e civis inocentes. Qualquer um que discordava dele, era deletado. Light não buscava justiça. Buscava controle e veneração. Mas no fim, chorou como o covarde que sempre foi, implorou por mais tempo e por ajuda de pessoas que ele mesmo tratou como lixo. Exemplo disso, a própria Misa Amane.
— Você acabou de dizer que Misa era…
Após gargalhar da ingenuidade humana, Reigan narrou parte da história da segundo Kira. A garota que largou tudo para viver um romance unilateral e abusivo, em troca de migalhas de afeto.
— Misa cortou sua própria vida duas vezes, só para tentar agradar Light. E no fim ela morreu sozinha, ainda esperando encontrar seu amado.
— Light, era esse tipo de pessoa? — murmurou.
— O Light era muito pior que isso — Gargalhou — A irmã dele foi sequestrada, passou anos traumatizada e quase não se recuperou. Sorte que ela tinha sua mãe para lhe apoiar e cuidar dela, mas ela morreu a alguns anos. O pai também, só que na época da investigação contra o Kira. Ele era líder da força tarefa, foi feito de sacrifício pelo filho e o pior, morreu como portador de um Death Note.
— Ou seja, toda a família entrou em ruína.
— Sayu vive como uma dona de casa simples, sem saber nada de seu irmão. Near fez questão de apagar qualquer rastro que levasse ela a desconfiar que Light era um psicopata. Mas tente se pôr no lugar dessa garota, vendo seu pai morto por Kira, depois seu irmão vindo a óbito misteriosamente, sua cunhada sumindo, sem deixar vestígios e por último, sua mãe morrendo de problemas cardíacos.
O Reigan não parece estar mentindo. Pelo contrário, ele tá se divertindo. Mas descobrir que Kira era tão… ah, deixa pra lá. Eu estava certo no final de tudo.
Mas, o mais importante aqui… Reigan parece estar escondendo muitas coisas ainda. Ele parece estar omitindo muitos detalhes. Por que será? Tenho que ter cuidado com esse Zé caveira. Ele continua me instigando…
— E o que pensa sobre as atitudes do Light?
Reigan, com uma voz suave e mais pontuada que o de costume:
— Light conseguiu se tornar uma ideia. Uma ideia tão poderosa que sobreviveu à sua morte. Você... é a prova disso.
— Você não respondeu.
— Eu não estou aqui para julgar os atos de alguém, Rosário. Só para observar. Mas se quer saber... Light tinha ambição demais e paciência de menos. Queria mudar o mundo, mas ele gritava e berrava por qualquer “cutucada” em seu ego infantil. Você é diferente, parece saber bem o que quer.
A voz firme de Marcos fez a casa gelar ao ouvir ele dizer: — Eu quero que o mundo se curve e queime. Quero que o mundo me reconheça como o porta-voz da morte.
Reigan ergueu as sobrancelhas, como quem encontra algo valioso. Marcos virou-se em direção a janela, viu seu reflexo distorcido na escuridão, como um vulto de olhos iluminados cor de sangue.
— Tanta informação pra uma única noite… Mas tem mais uma coisa. Quem é esse "Near" que você falou?
O ceifeiro explicou que Near era o sucessor e detentor desse título de L. Um gênio que deu continuidade à investigação após a morte do seu antecessor.
Então L é um título? Vou matar um pra enfrentar quantos outros? Um alfabeto inteiro? Mas talvez… se eu usar a morte dele pra intimidar os outros…
— E “Near” é o nome real dele? — com a voz carregada de desejo.
— Não, é apenas um codinome. Mas seu nome é — como quem entrega um presente envenenado — Nate River.
A boca de Marcos forma um riso largo e macabro. Aquela peça finalmente ganhava forma no tabuleiro, mas logo retornou a si, para questionar se o tentaculoso poderia contar tal informação sem nenhuma punição.
— As regras dizem, somente, que não posso contar sobre a localização dos cadernos e eu só estou contando uma história. Não é como se você soubesse o rosto dele.
O “Ainda” que Marcos disse a seguir, veio acompanhado do som de chuva, que parecia prenunciar o diabo na terra.
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