Volume 1
Capítulo 10 – Cefaleia
O brilho da manhã pairou sobre os olhos de Clara, fazendo dela visão distorcer como uma TV velha. Sua cabeça parecia estar sendo acariciada por uma enorme britadeira. Descalça e com a camiseta colada ao corpo ainda suado, sentiu o com cheiro de bebida barata e perfume vencido em seu cabelo desgrenhado.
A morena conseguiu se sentar, depois de muito esforço. Confusa, apertava os olhos para tentar reconhecer o ambiente. Mas a vergonha e o arrependimento recaíram sobre um “merda” sussurrado, por já imaginar o que havia acontecido.
Enquanto isso, na sala, a fumaça do cigarro de Marcos preenchia o ar, mesmo que de frente para a janela. Sua mente vagava em uma lembrança feliz: O nome “Nate River”. Só que o pequeno sorriso se esvaiu ao escutar os passos hesitantes de Clara em sua direção. Rapidamente, arremessou o cigarro fora e tentou espantar o odor.
— Bom dia, cachaceira — com sua simpatia sarcástica.
— Por favor, não grita... — se arrastou para o sofá. — Já tava fumando cedo?
— Bom dia, cachaceira — Repetiu mais baixo — Quer café? Tá quentinho.
Com os cotovelos sobre seus joelhos, esfregava os olhos e perguntou para Marcos como ela chegou ali. Ele contou alguns vagos detalhes e sentou a seu lado enquanto tomava seu café.
— Sempre me esqueço, o quanto de gente você conhece — coçou a cabeça. — Marcola estava lá? nem vi.
Marcos inclinou a cabeça, para tentar averiguar o rosto da garota cabisbaixa e questionou: — Você sabe que sua mãe vai me matar por você dormir aqui, né?
— É... — revirou os olhos — Minha mãe...
Ela se afastou, indo até a cafeteira. Tomou um gole e fez uma careta pelo amargor. Isso fez Marcos rir enquanto ela reclamava da falta de açucar.
— É café pra acabar com a ressaca. Amargo como a vida.
Ela ficou em silêncio, apoiada na bancada e de costas para ele, deixou a xícara de canto, com o olhar perdido no nada. A tensão entre eles era como uma corda esticada, prestes a arrebentar.
— O que aconteceu? Você não é de beber assim.
— Minha cabeça está explodindo... — murmurou.
— Imagino. O que foi ontem? Campeonato de autodestruição?
Clara passou a mão entre os cabelos, com um único pensamento: Quero sumir. Marcos ficou inquieto com o silêncio da garota e questionou:
— Tinha gente rindo de você. Tua amiga tava mais preocupada com o carpete do que contigo. Tive que te buscar feito uma boneca largada num canto. Só tô preocupado… me fala, o que aconteceu?
— Não aconteceu nada. Eu bebi. Só isso.
Ela suspirou com a mão no rosto, a franja despencou como uma cortina de desânimo.
— "Só isso"? Você estava inconsciente. Já te vi tendo crises antes, mas desse jeito ai…
— E daí? Até parece que isso nunca aconteceu com você.
— Eu, sou eu. Você nunca foi disso — tocou o ombro de Clara.
— Talvez eu só quisesse tentar — retirou a mão dele. — Não sou um projeto de recuperação, Marcos.
— Ontem você disse que eu sempre estava com você, agora tá me afastando?
Essas pequenas palavras fizeram um pequeno furo na casca dura e grossa em que a garota se envolveu. Clara se calou por um instante com o olhar perdido, respirou fundo, mas tentou se manter firme.
— Eu só quis esquecer por uma noite, Marcos.
— Esquecer o quê?
— Tudo, Marcos. Tudo!
— Foi… a sua mãe? — Com o tom mais grave que o habitual.
A pergunta fez lágrimas escorrerem sem aviso prévio enquanto as palavras se prenderam na garganta, como cola quente. Clara acenou com a cabeça e deixou o rio correr sobre sua face, sem mais conseguir esconder sua dor.
— Ela... me chamou de monstro… Disse que não consegue mais olhar na minha cara… por eu ter matado meu pai…
Devagar, os dedos dele se fecharam num punho e as veias de seu pescoço saltaram. Clara percebeu a temperatura mudar, como presenciasse uma tempestade se vindo no horizonte.
— Marcos... — a voz saiu baixa ao segurar o punho dele — Não.
O rapaz não respondeu, só encarou a porta. Os músculos do maxilar de Marcos pulsam sob a pele.
— Sua mãe merece escutar umas coisas — rosnou, com a voz seca como pedra.
Clara apertou o braço dele com suas mãos pequenas, para tentar ancorar ele ali e impedir o colapso de algo muito maior.
— Não faz nada. — de cabeça baixa e quase como um sussurro. — Já estou com problemas demais.
— Quer que eu continue assistindo ela te tratar como se fosse lixo? Eu vi e ouvi quase tudo que aconteceu na tua casa. A maior culpada é a sua própria mãe, que não puxou o gatilho antes, com a arma na cabeça dele.
— Você tá falando da minha mãe e do meu pai, Marcos — soluçou — Por favor… Para…
— Seu pai literalmente deveria manter sua casa segura, mas ao invés disso, ele era a causa do medo de vocês. — Bufou — Caralho, sua mãe nunca falou nada. Nunca denunciou ele e ainda quer descontar em você? O que essa mulher tem na cabeça?
— Não transforma isso em uma briga sua. Por favor…
Marcos se afastou um passo, mas o punho continuava fechado, os ombros tensos como se contivessem um grito preso.
— Isso não é sobre mim, Clara. Escuta bem. Eu não vou deixar ninguém te machucar.
— Eu tô pedindo… Por favor... Não me dá mais uma coisa pra carregar…
O maxilar se contraiu mais uma vez, mas respirou fundo e seu punho abriu aos poucos. Os dedos, antes firmes como garras, agora pareciam soltar uma arma.
— Você não faz ideia do quanto eu odeio quem te faz chorar — ele murmurou enquanto à abraçava.
Clara fechou os olhos, como se aquelas palavras doessem mais do que um tapa.
— Perdi meu estágio, meus amigos acham que… sou uma vítima de um documentário, minha mãe quer que eu desapareça. Você sabe o que é ser o erro estampado no rosto de quem você tentou salvar?
— Olha pra mim, Clara.
Ela o encarou no fundo dos olhos e com uma brisa que entrou pela janela, seus longos cabelos negros esvoaçaram.
— Eu tô aqui, tá ouvindo? Eu estou aqui, por você. A gente vai dar um jeito nisso.
Apesar das palavras bonitas, Clara fez um sinal de negação com a cabeça e o confrontou.
— Jeito como, Marcos? Minha vida está de cabeça pra baixo.
— Não sei, mas a gente vai dar um jeito.
— Se quer tanto dar jeito em alguma coisa — soluçou — me fala aquilo que eu espero há cinco anos. Há cinco anos eu digo que te amo e você não me manda um sinal sequer — apoiou a cabeça no peito de Marcos, segurando sua camisa. — Diz que me ama... Diz pra mim que não vai sumir. Que não vai mentir. Que vai me amar, cacete! Desde que eu completei dezoito, eu espero por isso.
Ele congelou com a boca seca, mas ela continuou:
— Desde o dia que te conheci, Marcos, eu penso em você todo dia... — batendo levemente no peito do rapaz — Você é sempre meu porto seguro, quem eu confio, quem eu penso... Quem eu quero comigo... Então, por favor... diz que sente o mesmo... Por favor?
— Clara, olha…
— Você sente alguma coisa?
O que eu falo?
— Você, tá escondendo alguma coisa de mim?
O que eu posso dizer?
— Diz... alguma coisa…
Eu… não posso…
Ela espera. Por 3... 5... 10... segundos longos e cruéis. Então, ela entendeu que não haveria resposta. Abaixou a cabeça e saiu correndo, sem olhar para trás. As lágrimas escorreram como cicatrizes líquidas, que afogaram os gritos que ela teve que engolir, calada e batendo a porta atrás de si com força.
Sem qualquer reação, Marcos ficou ali, estático, com o coração apertado e a mente perdida.
— Manhã agitada, Rosário — Reigan atravessou a parede como um espectro intangível.
— Agora não, Reigan — se virou para a xícara que ela tocou os lábios.
— Isso vai afastar ela de você, não é?
Marcos inspirou fundo.
— Uma vez, um cara disse uma frase que ficou comigo: "Escolhas difíceis requerem determinação forte".
Reigan não respondeu. O Shinigami só o observou em silêncio e se perguntou: Existe algum sentido em afastar quem você diz que quer proteger? Enquanto Marcos jogou fora o café frio que estava na xícara, com uma feição triste e se sentindo derrotado.
Após o início conturbado, o dia passou como de costume no trabalho. Vários clientes e pensamentos inquietantes. Marcos vestia uma simpatia falsa e encarava o relógio com ansiedade.
Meio-dia, enquanto seus colegas se espalharam pela praça de alimentação ou fumavam perto da entrada do shopping, ele se escondeu no lugar de sempre: o depósito abafado da loja.
Caixas de roupas empilhadas, plástico bolha rasgado e etiquetas amareladas faziam do ambiente um relicário de pó e silêncio. Em um ponto específico onde camera alguma o alcançava, sentou ao chão entre duas prateleiras metálicas, com as costas apoiadas na parede.
O sinal de Wi-Fi mal alcançava ali, mas era o suficiente para que seu celular carregasse uma imagem em baixa resolução — E com ela, mais perguntas do que respostas.
No visor, uma ficha escolar traduzida precariamente do japonês para o português.
Yagami, Light
Turma: 3-A / 2003
Data de nascimento: 28 de fevereiro de 1986
Interesses: estudos, leitura, debates.
Marcos apertava os olhos para tentar extrair algum traço oculto no rosto do jovem.
— Ele era o Kira? — Perguntou a Reigan, que flutua acima de uma pilha de caixas. — Ele parece com qualquer outro japonês... Ele é tão... simples e... Cara, isso é frustrante demais…
— Você pensava que ele seria como? — com um sorriso enviesado.
— Sei lá. Mais diferente. Mais... grande... sei lá. Talvez mais alto e mais ameaçador.
O Shinigami gargalhou ao se aproximar, com movimentos sutis de seus tentáculos.
— Light era um estrategista e um ótimo estudante. Bom em esportes, como tênis. Mas, no final, era só um homem comum com um caderno. Como você.
— Passei quase meia hora usando o tradutor de japonês e um VPN para procurar por uma foto... e é isso. Só isso... — bufou. — Melhor eu voltar ao trabalho.
Antes de se levantar, hesitou e desbloqueou o celular novamente, abriu o aplicativo de mensagens, mas Clara não enviou nada. Naquele mesmo instante, uma notificação chegou: “Olha isso”, foi o que Lucas o enviou juntamente a um link de um vídeo.
Nele, um homem encapuzado e de máscara — que só deixava seus olhos a amostra — se pronunciava em um púlpito da polícia de seattle, a legenda traduzia seu discurso:
“O indivíduo conhecido como Kira, que todos vocês conhecem, já foi creditado por incontáveis mortes. Nós sabemos como ele mata suas vítimas e também como ele as escolhe. Antes de suas mortes, todas as vítimas tiveram suas identidades divulgadas para a mídia.”
— Quem é esse, Reigan?
Respondeu com um simples sinal de negação erguendo os braços enquanto o sujeito misterioso continuava:
“Ele é uma pessoa, como você e eu. Além de um covarde. Uma criança com um poder que não entende. Por acreditar erroneamente que, ao usá-lo, vai limpar o mundo da maldade. Está errado! Kira, se você está assistindo… Saiba, que eu vou te achar. A não ser, que você queira me matar agora.”
— Mas que tipo de provocação é essa?
Reigan riu, como se fosse um carro morrendo.
“Bom, nesse caso, Kira… Eu encontrarei você. Cara a cara.”
— Bom… isso foi… interessante.
Guardou o celular no bolso e se apoiou em uma caixa para se levantar.
— Você não vai fazer nada, Rosário?
— Pra que? — uma leve pausa com olhar indiferente para Reigar. — Ele tava com o rosto coberto e só estava querendo me intimidar. Se ele é uma das inúmeras letras do alfabeto que eu vou ter que enfrentar, não vale a pena bater cabeça com isso agora.
Pela reação desse magrelo cabeçudo, aquele cara não é o Near…
Marcos tirou o Death Note da mochila e entregou a Reigan.
— Você já sabe o que fazer. Eu abdico da posse do caderno.
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