Volume 1
Capítulo 7 – Monocromático
A semana começou com o som do despertador, fazendo com que Marcos já se sentisse derrotado antes mesmo de escovar os dentes. Num gesto automático ele virou-se para desligar a maldita música vinda do celular e se deparou com a morte silenciosa, com o olhar fixo para a rua através da janela.
O crânio acinzentado e partido de Reigan voltou-se para Marcos, refletindo a luz da manhã. O humano se sentou à beira da cama e coçou os olhos devido a cena, que fez um trabalho melhor de despertar que o próprio alarme do telefone.
— Ainda acho sinistro acordar com um esqueleto me vigiando. Isso deveria ser crime.
— Acha que é divertido pra mim, ficar a noite toda vendo você dormir, Rosário?
— Bom dia pra você também.
— Quer que eu prepare o café também depois do seu "bom dia"? — Reigan ironiza ao afastar-se da janela.
— Se você fizesse mesmo, eu agradeceria.
— Acabaram os tomates.
— De novo? — Resmungou e se levantou com esforço. — Saindo do trabalho eu compro, mas dá uma maneirada aí, por favor?
— Aqueles seus amigos de ontem... Você confia neles?
— O suficiente.
Após um banho rápido e um café amargo, seguiu sua rotina diária. O céu estava tingido por um cinza poluído, prenúncio de uma possível chuva. O cheiro de asfalto e escapamento se mistura ao barulho de buzinas e passos apressados.
O ônibus chegou abarrotado de pessoas com rostos tão animados quanto em um funeral. O único alívio de Marcos é a música em seus fones, que abafa o barulho do mundo.
Descendo do veículo, ele caminhou por mais um trecho do centro comercial, até parar em frente a uma pequena loja de artigos religiosos onde algo destoava entre crucifixos e imagens de santos. Um anjo de asas longas, uma pena na mão e um caderno na outra. Olhos fechados e um leve sorriso transmitindo um ar de tranquilidade.
— O que foi agora? — Reigan parou ao seu lado.
— Um anjo japonês que anota o nome dos maus em um caderno... É quase poético.
Reigan observou a imagem com uma expressão entre crítica e assombro, como quem reconhece a ironia trágica da fé moldada pelo medo e pela morte enquanto Marcos continua:
— Curioso como o nome de Kira saiu das páginas de um caso criminal não resolvido e virou base para um culto global que prega a bondade.
— Eu já havia visto isso, do mundo dos Shinigamis. É tão estranho, sabendo a verdade…
— E o mais irônico: ninguém sabe quem ele era, ou o que pensava, mas todo mundo tem certeza que ele era a justiça encarnada.
— Você também é assim, Rosário.
— Não, nunca pensei nele dessa forma. Kira, foi sim, um homem de ideais fortes, mas nunca fez algo que o fizesse ser adorado como divindade.
Marcos se espantou ao notar o preço da estatueta: R$ 359,99.
— E ainda dizem que fé não se vende, caralho…
Reigan apenas flutuava ao seu lado, ouvindo as reflexões de Rosário, que pediu para evitar suas brincadeiras em público em caso de câmeras os assistindo.
— O mundo melhorou até em relação ao aquecimento global. Kira teve que mostrar como fazer trabalho sujo. Matar os maus para que os bons possam viver em paz... É tão óbvio. O fim realmente justificou os meios.
Marcos voltou a caminhar e ajustou os fones, como se estivesse em ligação com alguém. Ao passar por alguns sem-teto, pedindo esmola, ele lhes deu alguns trocados após notar um deles usava uma camisa escrita: "Que Kira te ilumine".
— O Kiraismo se espalhou como um vírus. A humanidade aceitou que não precisa de outro justiceiro salvador. Precisa de um carrasco que expurgue o mal do mundo.
— A crença mais eficaz da humanidade. A fé na morte.
— Cheguei no trabalho. Hora de vender minha alma por mais um dia. Tchau. — Fingindo encerrar a chamada.
Ele entrou na loja com um suspiro profundo e arrumando a postura, como um ritual de preparação para o longo dia que o aguardava. Reigan o seguiu como um lembrete constante, de que a vida de Marcos nunca mais será normal.
Atendia os clientes com uma voz educada e quase sabia o que cada um queria vestir — como se lesse instruções para cada pessoa. Recebeu muitos elogios pelo seu profissionalismo e principalmente pela sua aparência, mas por dentro o pensamento era só um: Quero ir pra casa…
— Você devia sorrir mais, sabia? — Comentou uma colega de turno, enquanto organizava alguns cabides ao lado dele. — Metade das clientes vem só pra te ver.
Marcos esboçou algo entre um riso e um suspiro. Seus olhos não saíram da peça que dobrava, meticulosamente.
— É impressão sua. Só faço um bom trabalho.
Ela riu por achar que era charme e perguntou se Marcos tinha namorada.
— Ninguém vai querer namorar comigo se souber o que eu escondo.
— E o que você esconde? — A morena perguntou com curiosidade.
— Um bicho de estimação com tentáculos, asas e que vai me levar à falência de tanto comer tomates.
A garota sorriu por achar ser uma piada e antes que ela pudesse lhe flertar, uma cliente chegou na loja a procura de Marcos. Por outro lado, Reigan encostado na parede do estoque, lançou um olhar de escárnio silencioso.
As horas passam como passos de tartaruga. Marcos finalmente deixou o trabalho, se despedindo de seus colegas com um sorriso no rosto depois de comprar o presente que prometeu para Clara. Reigan que estava calado a seu lado o tempo todo, rompeu o silêncio:
— Ver você interagindo com outros humanos... parece até outro cara… Assustador.
Marcos encarou Reigan, incrédulo pelo ser com asas, tentáculos e pele morta dizer tal coisa.
— Uma coisa é o "eu social". Outra coisa sou eu com você e o caderno — Ajeitou o fone no ouvido. — Não confunda não gostar de gente, com ser incapaz de conviver em sociedade. Às vezes, conversar com estranhos me dá ideias, novas perspectivas.
— Hum. Então você quer aprender com os erros dos outros?
— Histórias ensinam mais que sermões. Um detalhe mal colocado muda tudo — Pegou o celular que estava vidrando no bolso.
Reigan se aproximou de seu ouvido esquerdo e sussurrou como o próprio Diabo, com um sorriso leve em sua boca ossuda:
— Já que detalhes importam... talvez você goste de saber. Eu posso te contar a história do verdadeiro Kira… e o nome de quem o matou.
Marcos interrompeu os passos, atônito, com o celular colado ao ouvido. Seus olhos, arregalados. Ao virar-se, deparou-se com Reigan — o Shinigami zombeteiro ria, irritantemente. Aquilo lhe acendeu a dúvida inquieta:
Isso só pode ser provocação desse Shinigami. E todo aquele papo de regras?
— Cara... é o Marcola. A Clara tá aqui, na festa... Ela bebeu demais, chorou e vomitou bastante e…
— Me manda o endereço. Agora.
Sem nem desligar a chamada, Marcos acionou um aplicativo de corrida no celular e empurrou o presente na mochila. O motorista chegou e eles correram o máximo que puderam.
A cidade passava em câmera lenta, sob o brilho frio da lua. Os semáforos pareciam rir de Marcos e ficavam vermelhos a cada esquina. Marcos olhava por cima do ombro do motorista, vendo o celular dele mostrar um local que parecia do outro lado do mundo.
Reigan observava do alto, como um presságio nascido da noite. Suas asas enormes de morcego se abriam sobre o breu como véus de condenação, silenciosas e densas. Lá de cima, assistia ao fervor noturno com um interesse quase pueril, curioso. Havia algo de cômico, algo trágico.
Na festa, Clara estava desmaiada no sofá da sala. Seus cabelos, emaranhados como fios de angústia, caíam sobre o rosto corado, olhos inchados, como quem chorou até o corpo silenciar por exaustão. Ao redor, a música seguia impassível em meio a tragédia discreta que se desdobrava em meio ao artifício da celebração.
A velha sensação de cuidar de algo frágil recaiu sobre Marcos enquanto agradecia a Marcola. Sem pestanejar, pediu um carro de aplicativo enquanto viu de relance alguns dos convidados rindo da situação de Clara.
Sem querer arrumar confusão, Marcos questionou Marcola sobre a situação, mas ele não sabia o que tinha acontecido, já que Clara não quis falar sobre seus motivos nem com suas próprias amigas.
— Ela disse que estava bem — Contou uma amiga de Clara — mas possivelmente deve ser por causa da situação do pai dela. Então a gente só respeitou o espaço dela.
— Não esquece dos meus tomates — Sussurrou Reigan no ouvido de Marcos.
Marcos revirou os olhos e respirou fundo antes de perguntar à aniversariante se ela poderia lhe dar alguns, com a desculpa que era para fazer uma sopa para Clara quando ela acordasse. A garota trouxe três em uma sacola plástica sem questionar.
Após Marcos agradecer, a aniversariante fez um comentário inesperado:
— Você é um ótimo namorado, Marcos. Ela fala bastante de você.
Marcos apenas sorriu sem graça, mas ao virar e notar as mesmas pessoas ainda rindo, seu sangue ferveu. Por — talvez — sorte, o carro chegou, ele ergueu a garota bêbada em seus braços e a deitou confortavelmente no banco traseiro, com a cabeça dela sobre sua coxa.
Durante o trajeto, Marcos passava os dedos com suavidade pelos cabelos escuros de Clara, como quem tentava acalmar uma dor não falada. Ela, mesmo semi-inconsciente, esboçava um leve sorriso — tênue como a brisa de inverno — e se ajustava enquanto segurava a camisa de Marcos, como se em meio a toda angústia, ainda soubesse quem a amparava.
Clara... se continuar dizendo que sou seu namorado, vai acabar espantando as meninas, garota bobona. Apreciando a rua repleta de sinais verdes e o céu estrelado.
Ao chegarem em sua casa, Marcos a carregou nos braços com o cuidado de quem embala uma criança adormecida. Clara, aninhada contra seu peito, mantinha os braços frouxamente enlaçados ao pescoço dele. Esfregava o rosto de leve, como quem procura um abrigo no escuro, sentindo o cheiro familiar.
Ele a deitou sobre o colchão com delicadeza, retirou seus sapatos e meias, um gesto íntimo e silencioso. Ajeitou o cobertor sobre seu corpo e a observou por um instante, como quem contempla uma bela flor — e então, depositou um beijo em sua testa, para selar ali uma promessa muda de proteção.
Já na sala, Marcos se atirou no sofá, com um suspiro forte.
— A Clara não é de beber assim… acho que aconteceu mais alguma coisa.
— Talvez só quisesse se divertir — tirou um tomate da sacola — Você pensa demais, Rosário.
Marcos encarou Reigan e se ajeitou no sofá lentamente.
— Por falar em pensar... O que você sabe sobre o verdadeiro Kira, Reigan?
O Shinigami abriu um sorriso lento e sombrio. Seu olho escarlate reluziu como uma brasa antiga prestes a incendiar.
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