Volume 1

Capítulo 6 – Omissão

A pergunta de Clara cortou a calmaria como uma lâmina sobre papel. Uma única gota caindo da torneira, parecia demorar uma eternidade para tocar o fundo da pia, e ao chegar finalmente em seu destino, o som pareceu ecoar através da casa inteira. 

Quatro segundos se passaram, mas para ela, pareciam horas. A ansiedade fazia escorrer um suor frio lentamente na lateral de seu rosto enquanto Marcos, se virou com uma expressão simples e gentil, sem erguer a voz perguntou:

— Eu tenho a cara de um psicopata?

Reigan respondeu com um “sim” debochado e um riso breve. Marcos o enfrentou por um breve instante, como quem mandava calar a boca sem precisar emitir qualquer som.

— Eu não sei… Aconteceu um suicídio em massa na Itália… Isso em poucos dias desde a morte do papai, só você tava lá e…

Clara, que estava sentada, agarrou seus próprios ombros e se recostou sobre a mesa enquanto explicava:

— Tem gente dizendo que foi coisa de um novo Kira e outros que foi o presidente Americano.

— Se fosse o presidente, não acho que usaria dessa forma. Isso causaria intriga entre os países. É muito mais fácil matar pessoas por baixo dos panos ou manipular elas por trás das câmeras.

— Então você acha que foi o Kira?

— Talvez um novo. Kira só matava por parada cardíaca, uma pessoa por vez e longe das câmeras.

— Você sempre foi um fã do Kira, não é? — Disse ela com um leve sorriso.

Marcos sentou ao lado da garota. Ele mirou seu olhar para o teto, como se fosse o próprio céu estrelado, para ignorar a existência da assombração curiosa que os rodeava insistentemente.

— Você sabe meus motivos… — Voltou seu olhar para a foto de família.

— Eu sei... — Murmurou — Mas se você tivesse o poder de Kira, faria o mesmo que ele?

— Talvez... Tem muita gente ruim no mundo… Já pensou?

Marcos sorriu de imediato e, num ímpeto teatral, ergueu-se com firmeza. Apoiou o pé na cadeira, estufou o peito como um herói de quadrinhos prestes a declarar guerra ao mundo.

— Uma roupa preta, parecida com a do Papa no Kiramóvel... O povo grita e chora: Saúdem o novo Kira! — Como se falasse com uma plateia. — Implorem por misericórdia, mortais!

— Idiota. — Riu com a brincadeira — Se tivesse o poder de Kira... contaria pra mim?

— Claro. Seria eu e você contra o mundo, tipo Bonnie e Clyde.

— Eles não morreram a tiros...?

— Isso foi eles. Nós seríamos venerados como Deuses — Ergueu os braços. — Curvem-se, humanos!

Clara gargalhou tanto que precisou enxugar as lágrimas, enquanto Reigan revirava seu único olho com um enfado quase cômico. Já Marcos, ao ouvir a doce risada da garota, sentiu o coração se aquecer, como se um raio de sol rompesse por entre as nuvens do seu inverno particular.

Marcos vive com uma cara de tédio, mas ele é tão bobo às vezes, com um olhar meigo e um leve sorriso.

— Amanhã vou pra uma festa de aniversário de uma amiga da faculdade. Quer ir? — Clara perguntou.

— Sabe que não sou muito social... E vou ter que trabalhar até tarde de novo.

— Hora extra?

— Sempre, né... Pelo lado bom, tenho um bom dinheiro guardado, o ruim é que não tenho tempo pra gastar meu próprio dinheiro.

— Se quiser, eu gasto por você.

Fazendo um biquinho, Clara agarrou-se ao braço de Marcos, que respondeu com uma bufada impaciente. Em contraponto silencioso, Reigan apenas balançou levemente a cabeça com a mão ao rosto como quem lamenta pela comédia dos mortais.

— Lá vem você... — O Rapaz riu e virou o rosto para o outro lado.

— Só quero uma blusinha... Só uma…

Marcos suspirou alto e mirou em silêncio o olhar de cachorrinho da garota. Resistiu por um instante, mas logo cedeu, derrotado por aquele brilho nos olhos que desarma qualquer resistência sua.

— Vou trazer uma que vai ficar linda em você. Ia comprar pro seu aniversário, mas já que tá pedindo agora...

— Compra essa agora, e outra no meu aniversário. Eu finjo surpresa, prometo — Clara brincava com a camisa dele fazendo charme.

— Vou pensar nisso.

— Você é o melhor, por isso te amo tanto. Muito, muito, muito mesmo… — Suspirou.

— Ama nada... — Afastou o rosto e encarou a silhueta de Clara. — Você continua usando o mesmo número ou engordou?

As bochechas de Clara coraram de súbito, e ela respondeu com um soco tímido no ombro de Marcos, sem dizer uma palavra. Ele gargalhou diante da reação envergonhada, enquanto massageava o local atingido, como se fosse uma grande ferida de guerra.

Clara encarou o relógio na parede e o sorriso se esvaiu em um suspiro. Estava tarde e ela precisaria voltar para sua própria casa. Marcos a acompanhou até a porta para um abraço carinhoso de boa noite.

Entre agradecimentos pelo dia e por distraí-la dos assuntos que à conturbavam, Clara com as bochechas coradas, beijou a lateral do rosto de Marcos e saiu correndo. Ele a acompanhou com os olhos até que ela entrasse na casa ao lado, lhe dando um último tchauzinho à distância.

— Por que mentiu pra ela, Rosário?

— Não pretendo envolvê-la nisso.

— Por que?

— Ela é um doce, esforçada e já está com problemas demais. Além disso, você mesmo falou mais cedo, não posso chegar nela e dizer: "Eu sou o Kira e fui eu que matei seu pai". Eu não sou tão psicótico assim pra não levar os sentimentos dela em consideração… 

Por isso, distrair da pergunta foi a melhor escolha… Mentir pra ela não é opção. Clara vai esquecer disso, por serem só coincidências vagas e sem ligação.

— Rosário, você passou o dia inteiro com a garota, que você mesmo deixou triste… consideração é a última coisa que você teve. Mas então, vai fazer tudo sozinho?

— Eu não estou sozinho. Tenho você e a fé de Kira do meu lado. Além disso, quem é o idiota que chega em uma garota e diz: "olha eu tenho um caderno que mata pessoas e um Deus da morte como pet, quer ver?" 

— Pet?

— Isso seria burrice, mesmo pra mim, que conheço ela há anos. Mas com esses empecilhos… a conversa se torna mais delicada. É melhor assim… Vou lutar para que ela fique bem e vou continuar minha trajetória como Kira.

— Pet, Rosário?

— De tudo o que eu falei, isso foi a única coisa que você prestou atenção? — puxou o celular do bolso — Vamos... A gente vai sair também.

Reigan flutuava lentamente com a luz da lua que acompanhava os passos do humano — e da morte que o seguia. Não como amigo, mas como sombra silenciosa e eterna sentinela à espreita.

 

———————༺🖤༻———————

 

Ao chegar em casa, Clara estava com suas bochechas ainda coradas. Mas uma pergunta retornava à sua mente: Marcos é o Kira? A forma como ele desviou, a brincadeira... era tão “Marcos”. Ela apagou a ideia da cabeça, Marcos era o bobo demais e a fazia rir. O amigo que a protegia,  um assassino? A ideia era absurda.

Mas então, a imagem da mãe veio à tona. A frieza, o silêncio. Era como se, desde aquele dia terrível, um muro invisível tivesse sido erguido entre elas. Clara apertou os lábios. Ela só queria que o inferno acabasse. 

Ela só queria que as coisas voltassem ao normal. Que a mãe a abraçasse de novo, que comessem juntas, que a casa tivesse o calor de antes. Mas a cada passo em direção à mãe, parecia andar sobre um carpete de vidro prestes a rachar.

— Cheguei, mãe!

A mulher estava sentada no sofá, assistindo TV e rindo de um filme. Ela somente deu um leve aceno para a filha sem virar o rosto.

—  Eu estava na casa do Marcos vendo filme.

— Que bom.

Clara engoliu seco, mas tentou mais uma vez, querendo saber como foi o dia da mãe, que respondeu de forma fria novamente, fazendo o sorriso de Clara se esvair por completo. Devastada se direcionou para seu quarto, mas ao passar pela cozinha, notou algumas louças sujas.

— Não me esperou para jantar? Nós sempre comemos juntas...

— Você já é bem grandinha, não acha? Já pode comer sozinha. 

— Deixa pra lá. Boa noite…

— Tá, tá. Tchau — Fazendo um gesto com a mão como se estivesse espantando um bicho.

— Por que a senhora está assim comigo? — Se pondo na frente da televisão.

Levantou-se num rompante, o rosto em chamas, as veias do pescoço à flor da pele:

— VOCÊ É A PORRA DE UM MONSTRO!

Os olhos de Clara encharcaram e tremiam de incredulidade. A boca semiaberta com um tumulto de palavras presas, engasgadas em sua garganta, sem conseguir vencer o nó no coração que parece querer parar.

— Eu não consigo acreditar... Te criamos com tanto amor… e você se torna… uma assassina? Do próprio pai? Quem é o próximo, hein? Eu? — Se proximou com raiva e lágrimas em seus olhos — Espero que Kira tenha piedade da sua alma... porque eu já não tenho mais força nem pra olhar pra sua cara.

Clara recuou em silêncio, como quem fugia de um mundo que já não a reconhecia. Suas lágrimas ficaram pelo caminho, junto aos soluços dilacerantes de sua mãe e a moldura que a mulher arremessou contra a parede, como se quisesse apagar, de uma vez por todas, o passado que agora a machucava. 

Trancada entre as paredes que já não lhe ofereciam conforto, Clara afundou o rosto no travesseiro que abafava o som do choro sofrido. Com dedos trêmulos, ela deslizou pela tela do celular até encontrar o contato de Marcos.

Ao visualizar a foto de perfil dele, Clara desabou novamente. A chuva da alma voltou com mais força, como se ao ver a foto dele, finalmente a permitisse desmoronar.

Mas desligou a tela e ficou novamente no escuro. Sozinha.

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