Volume 1

Capítulo 5 – Semente

A xícara de café esfriava em cima da mesinha enquanto Marcos cobria a boca vendo as notícias da manhã pela TV. Reigan o acompanhava com um tomate mordido na mão, mas não tão surpreso quanto o rapaz, somente intrigado.

— Então esse é o poder do Death Note?

— O caderno pode fazer muitas coisas, só precisa saber como usar. Mas você não acha que exagerou na quantidade, Rosário?

— A primeira tentativa ainda não foi divulgada, então eu tive que fazer de uma forma que fosse obrigatório relatarem ao mundo.

O Shinigami abocanhou um tomate. Sua boca cadavérica triturou a fruta, fazendo seus sucos e sementes escorrerem por suas longas garras. Então, uma língua enorme emergiu para devorar o que restava do endocarpo e lamber os líquidos pegajosos entre os dedos.

— Mas para que a camisa com o “L”?

— Queria testar os limites do caderno. Tem gente que está com camisas compradas e outros só riscaram uma camisa branca. Então, isso significa que não conseguiram comprar a tempo, não tinham dinheiro ou não acharam… — disse Marcos, indo em direção ao isqueiro.

— E o que é que tem?

— As pessoas ficam hipnotizadas com os efeitos do caderno; conscientes pelo lado das suas limitações, mas, por outro, tentam ao máximo cumprir o que está escrito.

— Mas por que justo um “L” na camisa? Não acha cedo demais pra declarar guerra, Rosário?

Marcos acendeu o cigarro e encarou um quadro na parede por alguns segundos — Seus pais abraçados a ele na infância. — Ele desviou o olhar e soltou a fumaça para se explicar ao deus ossudo:

— Se for para testar o Death Note em uma escala grande, preciso fazer tudo de uma vez. Só dei a plateia o que ela queria: um novo vilão, um velho culpado, e um show que o “L” não vai esquecer tão cedo.

Já que as pessoas controladas só podem falar ou fazer aquilo que já sabem, isso me dá uma limitação enorme. Mas, sabendo que posso usar o caderno como uma lista… Com a descrição certa as possibilidades de espetáculos crescem, Marcos refletiu.

— O “L” sempre vem a público ameaçar os portadores do Death Note. Isso vai desmoralizar ele, não é?

— Vai, e muito… São centenas de mortes em um único dia, feitas por um inimigo que, na teoria, ele já conhece — Sentou-se no sofá e se espreguiçou como quem acabava de acordar de um belo sonho. — Só que não foi no Japão. A jurisdição é outra, e a pressão vai ser muito maior.

Marcos tragou fundo. O gosto amargo se espalhou na boca, como sua ideia pelo mundo. Soltou a fumaça como quem libera um presságio.

Agora, eu preciso de outro modo para conseguir nomes e mudar o padrão.

— O que era aquilo que falaram na reportagem? TIPS?

— Ah, é um tipo de censura que esconde os nomes de infratores... Se bem me lembro, isso foi ideia do “L”. Hoje em dia, é quase uma lei global, desde a venda do… Aliás, é verdade que o presidente americano tem um caderno?

— As regras do caderno…

— Tá, tá… — Interrompendo Reigan — Já entendi, você não pode falar…

Reigan soltou uma risada rouca, cravou os dentes em outro tomate como quem saboreia o tédio do mundo. Marcos, por sua vez, caminhou até a janela com passos calculados, permitindo que um leve sorriso se esboçasse em seu rosto ao mirar o outro lado da rua — onde crianças jogavam bola, numa cena rara.

— E o que essa TIPS tem a ver com a Itália? — Reigan questionou.

— O presidente italiano acabou de aceitar assinar esse acordo. A população está fazendo protestos para que ele volte atrás. 

— O que você acha que vai acontecer com ele?

— Não sei, mas acho que vai ter que se retirar do TIPS, por medo de que eu mate ele ou por um atentado da própria população — Apagou o cigarro no cinzeiro — Os políticos vão cobrar uma posição dele, enquanto as famílias das “vítimas” vão implorar por justiça. Se duvidar, vai abdicar do cargo, por não aguentar a pressão.

— Em uma única jogada, você atacou políticos, desmoralizou o “L” e anunciou a volta de Kira?

— Esqueceu o principal: vinguei várias famílias arruinadas por esses 4.444 assassinos. Imagina a satisfação de cada pessoa que perdeu um parente e esperava isso havia cinco ou dez anos. Isso fará a fé se moldar aos poucos.

— Mas por que tantos? Isso deu muito trabalho...

— No Japão, o número quatro é associado à morte — Voltou a se sentar. — Uma assinatura sutil para quem entende, um deleite para muitos e um show de horrores a todos. 

— Você fez uma “obra” grandiosa, Marcos, mas você está preparado para as consequências? Isso poderia ter assustado o “L”... mas não esse…

— Como assim, "não esse"? — Perguntou ao virar-se para Reigan.

De repente, alguém bateu na porta. Uma troca de olhares silenciosos antes do jovem se levantar para atender. O Shinigami pairou como uma sombra, com um vago interesse. Na porta, estava Clara, sua vizinha, vestia um moletom rosa e cabelos soltos. A franja quase cobria seus olhos devido à cabeça baixa.

Após um pequeno cumprimento, caminharam juntos até o quarto do rapaz. Clara coçou o nariz devido ao cheiro de  fumaça que impregnava o ar. Marcos furtivamente encarou Reigan como se pedisse para ele se retirar, mesmo sabendo que a garota não o via, a simples presença da criatura bastava para adensar o ambiente. O Shinigami ignorou o pedido e persistiu em segui-los.

Clara se sentou na beira da cama e, como provocação, Reigan acomodou-se logo atrás dela. Ele parecia um encosto, em completo silêncio e um sorriso maléfico. O Shinigami mirava o desconforto evidente de Marcos com essa cena que beirava um filme de terror.

— Como você tá? — Marcos quebrou o gelo.

— E-eu estou bem. Obrigado por... sabe, aquele dia.

— Sabe que não precisa agradecer. Não fiz nada.

— Preciso sim. Preciso…

— Você ajudou bastante mesmo, Rosário — Indo na direção de Marcos para observar melhor as expressões de ambos — Matou o pai dela e age como se nada tivesse acontecido.

— Como está sua mãe? — O suor escorria pela testa de Marcos, que tentava manter a calma.

— Sei lá... Desde a morte do papai, ela anda... estranha. Parece feliz, com os outros, mas... comigo, não.

— Como assim?

— Faz a comida e sai. Fala o básico... Me evita.

Um pequeno silêncio se instaurou, Marcos torceu o lábio, e perguntou se a mãe de Clara estava pondo a culpa nela sobre o ocorrido.

— Acho que sim. E nem dei o tiro... Só queria assustar ele… eu acho.

— Eu sei disso. Você queria ajudar a sua mãe. Ela é uma idiota por não enxergar isso.

— Queria só que aquele inferno acabasse, mas não queria que ele morresse. Apesar de tudo, ele era meu pai. Um pai alcoólatra que batia na mulher, mas, mesmo assim... — Ela acelerou a cada palavra, querendo jogar todas para fora, mas depois fraquejou novamente — Ele era meu pai.

Marcos suspirou e coçou a cabeça, não só pela situação de Clara, mas também pelo incômodo de ser observado por Reigan, que estava rindo da situação irônica.

— Não entendo o motivo disso — Lágrimas discretas começavam a escorrer. — Fiz aquilo para proteger ela… O pior é que, na delegacia, ela disse que foi só uma "briguinha de casal"... 

Marcos se curvou diante dela, enxugou suas lágrimas com a ponta dos dedos. Acariciou levemente seu rosto e, erguendo-o para si, o rapaz deu carinhosamente um beijo na testa da garota. Clara ficou boquiaberta e corou com a atitude repentina, mas a ação fez ela se acalmar e enxugar suas as lágrimas com um sorriso meigo.

— Anda fazendo o que para desestressar? Faz quase uma semana que não te vejo… — Sentou ao seu lado.

— Nada. Não tô tendo tempo nem de pensar. Faculdade, trabalho e, agora, estou sendo obrigada a fazer acompanhamento psiquiátrico...

— O quê?!

— Ameacei a vida do meu pai com a arma dele, então disseram que posso ter tido algum tipo de transtorno psicológico ou surto psicótico.

Marcos observou que Clara voltava com aquela feição triste. Ele sorriu e a puxou para mais perto para chamar a atenção da garota, que riu timidamente e, juntos decidiram assistir a um filme, como sempre faziam para aproveitar o domingo.

Sentindo-se incomodado com o Shinigami curioso, Marcos aproveitou a distração da menina e apontou para a porta de forma sutil, para que Reigan se retirasse do quarto, mas ele negou, fazendo o rapaz revirar os olhos.

— A regra é clara, Rosario… Tenho que acompanhar o dono atual do caderno — Reigar cinicamente gargalhou.

O tempo passou rápido. Pizzas, refrigerantes, risadas com os sustos alheios e com as escolhas estúpidas que os personagens faziam durante o filme.

A cada oportunidade, Clara apertava o braço do garoto contra si ou apoiava sua cabeça contra ele. Marcos sentiu o cheiro do shampoo e pensou: 

É tão doce, parece cheiro de chiclete. Seus longos cabelos negros e sua pele pálida combinam tanto com sua personalidade delicada. Sem maquiagem, ela já é linda e parece ter sido desenhada, mas nos momentos que ela usa… Chega dar raiva escutar as cantadas. Clara realmente merece alguém que cuide dela, como uma princesa. 

Em nenhum momento eles soltaram a mão do outro até o fim do filme. Marcos foi lavar as louças acumuladas enquanto Clara o ajudava a secar. A conversa fluía com besteiras cotidianas, para tirar todo o peso que ela carregava trancado para o lado de fora daquela casa.

— E o trabalho?

— É domingo, cara... — dramatizou.

— Qual é? — Clara riu e bateu seu ombro no braço dele. — Como está indo?

— Um saco. O atendimento não é pra mim.

— Você fala tão bem... É bonito... Não entendo por que não aproveita isso.

— Se quisesse chamar atenção, faria isso. Mas eu não quero.

— Não pensa em arrumar outro trabalho?

— Claro que penso, mas dá pra pagar as contas, não é tão puxado quanto outros trabalhos que já tive e, além disso, tem ótimos descontos para funcionários.

— Você é tão chato, às vezes... — Disse ao ver Marcos rir.

— Me conhece há muito tempo pra saber que não é só "às vezes".

— Isso é verdade. Mas eu gosto.

Se você não fosse tão impulsivo… Quem eu quero enganar? Esse charme dele me quebra  Preciso de um sinal de fumaça? Que droga, Marcos! Clara clamava por dentro.

— Como está a sua faculdade? — Marcos quebrou o silêncio. 

— Minha faculdade? Comprei uma?

— Sério isso? Se eu começar a te responder assim, você não vai gostar

— Tá bom. Desculpe, Milorde. — Clara o reverenciou.

— Ou seria “ser supremo”? — Reigan se curvou junto.

— Curve-se, ser inferior. — Marcos, num rápido movimento, passou sabão no rosto de Clara.

— MARCOS! — Gritou em tom de brincadeira — Seu chato…

— Tão fácil anotar um nome… é tão natural alguém cair e quebrar o pescoço, Rosário.

— Você é sem graça.

— Você que é sem graça! — Clara segurava o pano para limpar o rosto.

Os risos preenchiam a cozinha que, tantas vezes, era tão escura e solitária. A conversa continuou, mas o sorriso de Clara murchava lentamente, sem ela perceber. 

— Marcos... Se você fosse eu, teria matado meu pai naquela hora?

— Eu não precisaria "ser você"... Se me pedisse, já teria feito isso há muito tempo, por você.

— Isso acabaria com a sua vida!

— "Senhor policial, ele veio para cima de mim e eu revidei... A culpa não é minha se ele caiu de cabeça no chão seis vezes seguidas e tinha um hematoma de chute na garganta" — disse Marcos teatralmente.

— Credo, Marcos! Que horror...

— Clara, nunca fiz nada com ele por respeito a você. Ele nunca te bateu, mas se fizesse... Pode ter certeza que eu iria atrás. Nunca vou deixar algo assim acontecer contigo.

— Eu sei…

Ele é tão protetor comigo. Tão caloroso, mesmo com essa personalidade mais… difícil? Tem um corpo atlético, é inteligente, alto... Ele me deixa tão confusa… Mas eu vim aqui por um motivo, então tenho que perguntar.

O relógio da cozinha marcava o tempo com tic-tacs lentos enquanto Marcos guardava o pano que usou para secar as mãos e fechava as janelas, de costas para Clara.

— Marcos... Você é o Kira?

Reigan abriu lentamente suas garras e um sorriso assombroso, como se soubesse que, naquele momento, uma nova semente fora plantada.



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