Volume 1

Capítulo 3 – Reflexo

Na delegacia, sentado numa cadeira desconfortável, Marcos manteve as mãos sobre os joelhos a maior parte do tempo. De vez em quando, coçava os olhos ardidos devido à claridade e ao cansaço; afinal, sequer tivera tempo de descansar ao chegar do trabalho.

À sua frente, um policial conduzia o depoimento em tom neutro, mais para preencher o protocolo do que por suspeitar de algo, já que Marcos não estava próximo ao revólver ou à vítima. Além do mais, era um conhecido de longa data da família, e Clara mencionou que ele só entrou para tentar ajudar.

— Pelo que o médico de plantão relatou — o policial ajustou os óculos e continuou: — a morte foi causada por um derrame. 

Como um estalo, a notícia fez os olhos de Marcos se abrirem e seus punhos serrarem.

Assim como eu escrevi… então o Death Note… é real?

— A ausência de ferimentos, a confirmação da família e dos vizinhos de que era alcoólatra apenas endossam o laudo. — O policial fechou a pasta com um estalo suave. — Obrigado pela colaboração. Está liberado.

Marcos respirou fundo e se levantou. Ao sair, passou pela sala onde Clara estava, arrasada e respondendo perguntas dolorosas. Ele fechou os olhos e foi embora, com as mãos nos bolsos.

A cidade, enfim, parecia adormecer lá fora, com seus ruídos abafados e o vento frio cortando a pele. As luzes dos postes lançavam sombras compridas no asfalto enquanto algumas poucas pessoas, ainda aglomeradas à distância, aguardavam qualquer notícia sobre o ocorrido como como urubus famintos pela morte.

Finalmente de volta à sua casa vazia, Marcos tomou um banho gelado. Deitou-se e encarou o teto rachado que mal conseguia ver na penumbra. Seus olhos se fecharam, mas nem a escuridão nem o silêncio lhe trouxeram paz.

A imagem de Clara, desesperada, sacudindo o corpo do pai, estava vívida em sua cabeça. O cheiro pesado de álcool, o filete de sangue escorrendo do nariz da mãe em prantos, os estampidos secos dos disparos... Tudo gravado como uma ferida recém-aberta e longe de cicatrizar.

Eu não fiz nada de errado, então por que não consigo dormir? Esse é o peso de tirar uma vida? Acho que não tem mais volta.

A manhã chegou e, antes mesmo do despertador tocar, ele levantou e se arrumou para o trabalho. Marcos saiu pelas ruas, indo em direção à parada de ônibus. Lá, pessoas aleatórias fofocavam sobre o acontecido da noite anterior, supondo que a luz de Kira teria alcançado aquela casa que tanto sofria e que, se o homem morreu, era porque merecia.

Marcos pegou o celular. Mensagens de grupos, áudios e vídeos curtos mostrando a movimentação policial. Algumas fotos mostravam nitidamente Marcos saindo da casa vizinha, cobrindo o rosto com a mão enquanto o chamavam de “herói” e “corajoso”. 

Em meio a amontoados de comentários, um lhe chamou atenção: “Isso não foi Kira.”

Kira não agia assim. Não tem como desconfiarem de mim com essa morte. O mundo é grande demais e coisas assim acontecem todos os dias… Espera… O histórico... Vou ter que pensar em algo. Vai ser ainda mais estranho se eu apagar agora.

O trabalho foi horrível: clientes chatos, broncas sem sentido, horas extras mal pagas e a constante sensação de estar sendo observado. Mas um pensamento sempre voltava: 

Eu preciso testar esse caderno de novo pra ter certeza que não foi coincidência… mas como? Tenho que ver os resultados logo, porém não pode ser alguém próximo.

Chegando em sua casa, deixou as luzes apagadas e se jogou na cama, refletindo mais uma vez, sobre tudo. O silêncio era como o abraço de um velho amigo.

— "Herói..." — Suspirou.

Acendeu a luz fraca de um abajur amarelo que apenas realçava as manchas de umidade nas paredes. Pegou o caderno mais uma vez e abriu nas primeiras páginas. As regras estavam lá, simples e frias.

Ele apoiou os cotovelos nos joelhos e segurou a cabeça entre as mãos.

— O que eu faço...?

Sob o manto noturno, Marcos sentiu o ar mudar. Sentiu que estava sendo observado. Seus pelos se arrepiaram e o sorriso sumiu. O silêncio, que o tranquilizava, tornou-se agoniante em um segundo.

Virou-se lentamente para o canto mais escuro do quarto. A boca do jovem se abriu e o pânico o dominou. Ali, flutuando no meio da sala, estava uma criatura irreal, alta, esquelética e corcunda. 

As protuberâncias em sua costas que se assemelhavam a falanges de dedos. Tentáculos negros flutuavam onde deveriam estar suas pernas. Com um único olho vermelho e brilhante em seu rosto, que parecia penetrar a alma de Marcos.

Por instinto, tentou pensar numa rota de fuga, mas uma memória veio à sua mente: artigos antigos, histórias e teorias sobre seres sobrenaturais invisíveis ligados ao poder da morte de Kira. 

— Não gritou? Que estranho… — disse aquele ser o encarando.

Sua voz era grave, branda e compassada, mas carregava um eco assombroso que lembrava uma casa abandonada. Cada palavra parecia uma ameaça velada.

— O que é você? — perguntou quase sem se mover.

— Meu nome é Reigan. E eu sou um Shinigami. Um deus da morte.

Lentamente, Marcos arrumou a postura. Respirou fundo, admirando o ser à sua frente.

— O que foi, garoto? Não acredita no que vê?

Marcos fungou e deu um sorriso de canto, mas a voz continuava trêmula.

— Eu achei um caderno que mata pessoas. Acreditar ou não, já não faz diferença.

O Shinigami ficou surpreso com a resposta daquele mero humano, mas não deixou de notar sua mão trêmula.

— Então… o que te traz aqui, Reigan? Veio pegar o caderno de volta ou levar minha alma?

A risada anasalada de Reigan, cobrindo a boca com a mão, assemelhava-se à de um velho rico, esnobando Marcos, que engoliu seco e sentiu um suor frio escorrendo por sua têmpora.

— Parece que estou vendo uma figurinha repetida. Eu não vou fazer nada com você. Assim que o Death Note tocou o mundo humano, ele passou a pertencer a este plano, e quem o guarda se tornou o novo dono. Em outras palavras: agora ele é seu.

Marcos franziu o cenho em silêncio. virou-se para o caderno, embasbacado e perdido em meio à chuva de informações. 

— Não vai falar nada? — Reigan quebrou o silêncio.

— Vai… acontecer alguma coisa comigo por usar esse caderno?

— As regras dizem que, após a morte, nenhum humano que tocou no Death Note poderá ir para o céu ou para o inferno.

— Mas e em vida?

Reigan coçou a cabeça, puxando na memória cada informação.

— Hmm. As regras dizem mais sobre mim. Terei que acompanhar o caderno aonde quer que ele vá e serei obrigado a escrever seu nome nele, quando sua hora chegar — por fim, sussurrou. — Além disso, você vai descobrir o peso de carregar o legado de Kira.

O medo de Marcos se desfez em um sorriso, deixando Reigan intrigado.

— Você não se importa em perder o descanso eterno?

Marcos ergueu o olhar, firme.

— Para mim, o que importa é a vida. — Ele fez uma breve pausa, como se vasculhasse lembranças antigas. — A vida humana é curta e cruel. Doenças, guerras, fome... Não sei como é com vocês, Shinigami, mas aqui, qualquer escolha errada pode ser o fim. 

— Toda vida é frágil. Não é por você ser um humano que ela tem que ser mais fácil.

— Mas deveria ser… 

— Se não existissem enfermidades, acidentes e assassinatos, imagine o mundo como estaria hoje, Marcos. A humanidade é um câncer que já destrói o próprio planeta. Não seja hipócrita.

— Estou recebendo lição de moral da própria morte. Que legal. — Ele gela no mesmo instante — Espera. Como você sabe meu nome?

Reigan se aproximou encarando Marcos.

— Meu olho pode ver nitidamente seu nome e quanto tempo de vida te resta, pairando em cima da sua cabeça. E você pode ter isso também. Marcos Serafim do Rosário.

— Como?

O deus ri, se afastando tranquilamente.

— Em troca de metade do seu tempo de vida restante. Imagine poder saber o nome de cada pessoa no mundo, apenas vendo o rosto dela.

Marcos ponderou por um instante em silêncio, mas logo retornou à realidade.

— Isso não vale a pena em nada. Trocar metade da minha vida por um olho vermelho?

— Você poderia fazer muitas coisas: controlar pessoas para conseguir dinheiro, ter qualquer mulher que quisesse. As possibilidades seriam quase infinitas.

— Então, por que vocês, "deuses da Morte", não fazem isso? Vocês têm esses olhos incríveis e o caderno. Por que não fazem algo pela humanidade, como parar guerras ou salvar as pessoas quando pedem por ajuda? Isso não é uma coisa que um deus tem que fazer? — rosnou nervoso.

Reigan ergueu o rosto e cruzou os braços.

— Assim como o caderno, nós temos regras a serem seguidas. Não podemos matar para salvar humanos, ou nós morremos. Não podemos interferir nas escolhas de vocês. Isso se chama livre-arbítrio.

Marcos abaixou a cabeça, franzindo o nariz em desgosto.

— Quando Kira estava vivo, ele acabou com guerras, matou criminosos e trouxe ordem. O mundo teve uma paz. Mas, quando ele sumiu, a podridão voltou. Mortes, abusos, corrupção…

Reigan fixou nele um olhar atento. A raiva começou a se desfazer nos olhos de Marcos.

— Kira realmente foi incrível, a seu modo…

— Kira... — repetiu Marcos, com uma expressão serena. — Quando eu tinha nove anos, Kira matou um homem que… — hesitou respirando fundo — por um celular... Ele matou meus pais e fugiu. 

— E você quer fazer o mesmo que ele?

— Kira foi a justiça e a esperança que precisávamos. Ele foi caçado como um monstro por aqueles que não entendiam e temiam seu poder. Não sou como ele. Eu não tenho toda essa sede por justiça.

— Você fala que Kira foi isso e aquilo, mas no final ele foi morto como um qualquer.

Marcos abaixou a cabeça e abaixou o tom.

— É… Eu já suspeitava que ele era um humano e que foi morto por L — encarou Reigan com garra — Mas ele não morreu em vão. Kira mostrou qual a solução para o mundo melhorar. Só é preciso força de vontade e esse caderno.

Reigan permaneceu em silêncio. As ossadas em sua costa se moviam em excitação.

— Kira foi bom demais para este mundo. Mas eu... — Marcos olhou para o caderno em suas mãos. — Eu serei diferente. Farei voltarem a temer pelo nome de Kira. Chega de ataques cardíacos. Desta vez, não haverá misericórdia. Farei como na idade média, com cabeças sendo decepadas em praça pública como aviso.

— Como você pretende fazer isso? — Reigan questionou.

— Como você disse: O Death Note me dá poder para dobrar a vontade humana. Eu vou usar isso a meu favor.

Reigan se calou escutando com atenção, observando o sorriso de Marcos crescer.

— A dúvida é o verdadeiro terror humano e a incerteza consome mais que a própria morte.  "Será que ele está atrás de mim?", "Será que estou seguro?”, “Será que ele sabe sobre mim?” Eu irei alimentar essas perguntas dia após dia. Até que o medo seja tão grande, que se torne lei. Vou domesticar cada ser desprezível dessa maldita terra.

— Domesticar? — Reigan riu. — Ousado.

— E você vai me ajudar.

— Eu?

— Sim... Você quer ver, não é? Você também parece interessado em tudo o que Kira fez. E não pense que não notei você me instigando a fazer o acordo dos olhos.

— Eu estava apenas comentando as regras do caderno. Além disso, você está sendo muito ganancioso. O Kira era um gênio e mesmo assim teve um final trágico, assim como todos os portadores do caderno. Você acha que vai conseguir se comparar a ele?

—  Posso não ser tão inteligente quanto ele… mas posso muito bem usar o legado dele a meu favor.

Escutando essas palavras, o olho de Reigan brilhou em excitação enquanto pendia a cabeça.

— Esse é o único Death Note no mundo humano? — perguntou Marcos.

— Não sei. O que sei é a regra que diz: só podem existir seis Death Notes no mundo humano. Se um sétimo aparecer, ele não funcionará. Exceto os que estiverem em posse dos Shinigami.

Marcos franziu o cenho encarando Reigan.

— Quantas regras o Death Note possui?

— Nem os Shinigami sabem ao certo.

Marcos refletiu um momento em silêncio. Pegou em uma gaveta um caderno velho e uma caneta.

— Me conta quais você sabe.

Reigan, com a expressão entretida, começou a recitar cada uma. E assim, nas sombras, um novo testamento começou a ser escrito.

 

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