Volume 1
Capítulo 2 – Epifania
A noite tingia, lentamente, o céu de tons alaranjados, enquanto as folhas das poucas árvores em volta se agitavam, trazendo consigo o sussurro das águas barrentas do rio.
Um homem observava a margem tranquila, à distância; o relógio arranhado era um lembrete de que o tempo nem sempre era generoso. Vestia uma camisa preta simples, amarrotada depois de horas de trabalho, calças jeans novas e tênis surrados.
O cigarro queimava devagar entre os dedos, enquanto se apoiava na pequena mureta, tão antiga quanto a época do descobrimento. O vento soprava trazendo um frescor discreto que ajudava a aliviar o calor úmido da cidade e se misturava ao aroma de fritura preso no ar que exala das pequenas barracas de comida próximas.
Após a última tragada, ao lançar para longe a bituca do cigarro que se esvaiu acompanhando o último brilho do sol, ele observou o rastro de fumaça com o olhar cansado de um trabalhador, até o fim do trajeto, na areia fina.
Então, notou algo curioso, escuro, solitário, repousando perto da linha d'água. Sob a luz fraca dos postes públicos, parecia um pedaço de lixo abandonado pela correnteza — e, ainda assim, chamou sua atenção.
Franziu o cenho e olhou ao redor. A praça estava quase deserta, com exceção de alguns poucos casais dispersos e funcionários de quiosques limpando suas bancas. Nem os passarinhos que vivem rodeando seus ninhos estão por perto cantarolando.
Ninguém parecia ter visto.
Movido por um impulso silencioso, desceu pela pequena escada que o levou à areia fina, onde o cheiro de urina e lixo era forte. Afundou os tênis a cada passo entre embalagens de pipoca e bombons jogados por ali.
Abaixou-se, curioso diante do objeto retangular que destoava de tudo ali. Como buraco negro, puxando e engolindo sua atenção. Era um caderno preto, de capa grossa — parecia feita de couro — com letras em baixo relevo ainda visíveis, mesmo que estivesse coberta de areia molhada que ele limpou passando os dedos. O material era estranho, frio, como se estivesse encharcado por algo além de água.
— Death Note... — murmurou.
Examinou os arredores mais uma vez. A praça, o rio, o céu... tudo em silêncio. Abraçou o caderno contra o peito e subiu de volta a escada para o cercado.
Ele pegou um ônibus e partiu. Quando, finalmente, chegou em casa — uma residência pequena e simples — forçou a fechadura emperrada da porta até ouvir o estalo de costume. A escuridão do interior o acolheu como uma velha amiga de guerra. Antes mesmo de sequer pensar em acender as luzes, escutou gritos abafados e batidas secas na parede fina.
Uma discussão violenta, como tantas outras.
— Tá bêbado de novo. — pensou, exausto de corpo e alma. — Que saco...
Sem dar importância, chutou os sapatos para o lado e largou as chaves sobre a pequena mesa da sala. Abriu a janela para ventilar e iluminar a sala com as luzes da rua. Tirou o caderno molhado da mochila e o observou em suas mãos.
Uma presença incômoda e misteriosa o atraía.
Se sentou no chão; as letras na capa parecem vibrar sob a fraca luz que entrava pela janela. Com cuidado, abriu a primeira página.
Ali, estava escrito, com caligrafia firme:
Regras:
O humano cujo nome for escrito neste caderno morrerá.
Arqueou uma sobrancelha, coçou o queixo e fechou o caderno devagar. A casa estava silenciosa de um jeito esquisito, como se prendesse a respiração enquanto encarava a capa outra vez passando os dedos pelas letras brancas.
— Não pode ser… — pensou, deixando a dúvida pesar em sua mente. — Ou será que pode?
Colocou o objeto sobre a perna, pegou o celular do bolso e o desbloqueou com movimentos rápidos, quase automáticos. Começou a pesquisar, com os dedos hesitantes.
As manchetes ainda estavam frescas:
O poder de Kira: Um item?
Governo americano compra poder de Kira: objeto leiloado causa polêmica global.
Deus japonês da justiça: a lenda de Kira.
Debate: Divino ou tecnológico? O mistério do poder de Kira.
Teoria: O Poder de Kira é um caderno divino?
Vídeos curtos se revezavam entre imagens antigas do Japão e especulações conspiratórias atuais.
Largou o celular no chão, com a tela ainda acesa. Voltou a olhar para o caderno sobre seu colo, com uma expressão incrédula e perturbada.
Um barulho seco de vidro se espatifando, o assustou. Veio do outro lado da parede. Ele arregalou os olhos e respirou fundo.
— Esse velho maldito... Parece que esquece que tem uma filha... — Passou a mão no rosto de raiva. — Eu juro que, um dia, eu...
Respirou fundo outra vez e tentou se acalmar.
Abriu o caderno pela segunda vez e releu as regras de uso, mastigando cada palavra:
Se a causa da morte não for especificada dentro dos 40 segundos, a pessoa morrerá devido a uma parada cardíaca.
O barulho da discussão do outro lado da parede atrapalhou sua concentração.
— Ele é policial... — raciocinou. — Talvez fazer a mulher usar a arma dele... — ponderou. — Não. A Clara vai ficar triste... Talvez seja melhor algo relacionado ao álcool... ou ao estresse.
Pegou o celular e digitou: "causas comuns de morte em adultos alcoolizados e sob estresse."
A resposta apareceu quase instantaneamente.
— Derrame... — murmurou, com um sorriso frio que nem ele percebeu.
Se levantou, caminhou até a mochila e pegou uma caneta qualquer. O caderno, ainda úmido, era incômodo para escrever, mas não impossível. Com a mão firme, escreveu:
Reginaldo Garcia Pimentel, às 19h48; após muito estresse, sua pressão subiu demais junto com sua frequência cardíaca, causando um AVC mortal.
Olhou para o relógio em seu pulso: eram 19h38. Dez minutos. Tempo suficiente para... testar.
Deixou a caneta de lado e respirou fundo. Observou o relógio, os segundos a se passarem… Quase no mesmo instante, o som de um tiro cortou o ar e o fez congelar.
— Caralho! — o coração disparou, o corpo congelado pelo choque.
Sem pensar duas vezes, se ergueu num rompante com a adrenalina inundava cada nervo. Sua mente, focada apenas na urgência, o fez esquecer a porta aberta. Correndo a toda a velocidade, quase caiu indo em direção a casa ao lado.
A porta da vizinha estava fechada. Seus olhos varreram o ambiente procurando uma forma de entrar, mas o que encontrou foram vizinhos curiosos saindo de suas moradas, se amontoando como moscas em torno de um possível cadáver.
Esses merdas... Não ajudam, mas querem ver sangue” pensou, com um ódio frio subindo pela espinha.
Arrombou a porta da casa vizinha com um chute próximo a maçaneta, que o fez sentir uma fisgada forte no calcanhar. A dor era agoniante, mas não o impediu de prosseguir se apoiando.
Todos estavam na sala, porém o cenário era de horror: a mãe da Clara, caída ao chão, cheia de hematomas, chorando e sangrando enquanto implora para sua filha abaixar a arma. O velho Naldo, ainda de pé e fedendo a álcool, tremia de medo.
Mais afastada, Clara, trêmula e confusa, com sua camisa larga branca. A garota estava chorando enquanto segurava o revólver do pai.
— Marcos...? — chamou, olhando para ele com olhos arregalados e as pupilas dilatadas.
Ele não responde de imediato, tentando mediar a situação.
— Clara, me dá essa arma… — Marcos pediu em voz baixa, tentando soar calmo, após um instante
— Não, Marcos! — gritou e voltou a mirar no pai. — Tô cansada desse inferno! Minha mãe não tem que sofrer mais!
— É, minha filha... nós só tivemos uma … — O velho com as mãos erguidas, tentando se justificar com uma voz trêmula, foi interrompido por um novo disparo.
Desta vez, a bala atingiu o chão a centímetros de seus pés. A mãe da garota ficou quieta com rosto aflito esperando que tudo se resolvesse.
— Cala a boca ou vai piorar tudo — Marcos rosnou, o olhar duro como aço.
Ele recuou, suando frio, e tropeçou. Enquanto isso, Marcos tentava pensar rápido, mas o pensamento era só um: “Lógico que o caderno não vai funcionar. Eu fui um idiota por achar que fui ‘escolhido’ por algo maior…”
— Clara, você não pode fazer isso. Se acalma — Tentou se aproximar
Clara percebeu a movimentação de Marcos e girou a arma em sua direção e gritou para ele se afastar.
— Se afasta! Eu vou fazer isso…! Mamãe não merece ser tratada assim! — Voltou a apontar o revólver para Reginaldo.
Marcos hesitou.
O suor escorria, gelado, pelas suas mãos; a boca estava seca e os olhos não paravam em um único ponto. Tentava pensar num jeito de se aproximar e roubar a arma de Clara sem que ela notasse sua intenção.
— Tudo isso por causa de ciúmes, pai? Ciúmes? Já chega disso…! —entre soluços, lágrimas e a mão trêmula no gatilho.
Com o olhar perdido, Reginaldo apenas abaixou a cabeça olhando para sua esposa ao chão, como se estivesse nela as respostas. Mas a única coisa que viu na mulher foram hematomas que ele mesmo fez. Puxou o ar com com a boca, desviando o rosto e fechou os olhos, com uma expressão triste.
Então, algo estranho aconteceu.
O velho policial arqueou o pescoço de uma maneira bizarra enquanto seus membros se torciam, como se algo invisível o tornasse. Seus olhos reviraram, um filete de sangue escorreu de seu nariz e ele caiu sentado, com as costas na parede, e assim veio o silêncio.
— Pai...? — Clara perguntou,a voz embargada.
Ela se aproximou, ainda com a arma ainda em mãos, e chutou seu pé de leve.
— Pai...
Silêncio...
— Papai! — Clara largou a arma e sacudiu o corpo inerte de Reginaldo.
A mãe de Clara se aproximou, trêmula, os olhos assustados e se derretendo em lágrimas. Mas Reginaldo estava inerte. Nenhum espasmo ou sinal de respiração.
Marcos caiu de joelhos, os olhos fixos na cena se voltaram ao relógio, e lá estava: 19h48. Seus olhos arregalaram em incredulidade. O som do choro de mãe e filha era agoniante.
Mesmo com a dúvida que dominava sua mente, um único pensamento se destacava:
O caderno funciona? Isso foi culpa minha?
O som das sirenes da ambulância e das viaturas ecoava ao longe. Em poucos minutos, a casa foi tomada por policiais. Alguns foram direto até Clara e sua mãe, tentando acalmá-las, e outros foram até o corpo de Reginaldo, caído no chão.
Marcos, ainda em choque e parado no mesmo local, ergueu as mãos devagar, deixando claro que não tinha nada a esconder. Não demorou até que o abordassem. Não foi algemado. Não foi tratado como suspeito. Apenas como uma testemunha que precisava explicar o que viu. Nem mesmo as luzes das câmeras tirando fotos o incomodaram durante o trajeto à viatura.
Seus pensamentos estavam em outro lugar. E, nas profundezas da sua alma, Marcos sorriu de satisfação, e seus olhos reluziam com o brilho de alguém que havia acabado de triunfar sobre as próprias regras da vida e da morte.
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