Volume 1

Capítulo 1 – Kenopsia

O som de passos secos e vagarosos ressoava entre a vastidão de rochas fragmentadas de Mu, o mundo esquecido dos Shinigami, onde o céu era eternamente cinzento, e as nuvens carregadas ameaçavam uma chuva que nunca caía. 

Não havia vida ali, apenas poeira estéril e o tilintar de ossos ressecados que rolavam pelo chão, levados por um vento que soprava de um tempo anterior ao próprio tempo. No horizonte, montanhas dilaceradas se erguiam como os dentes de uma criatura morta, congelada para sempre sob uma luz opaca e invariável.

Entre aquele cenário de morte e solidão, uma criatura de energia mórbida, deslocada da realidade ao redor, contrastava com a apatia cinzenta. Seus olhos esbugalhados brilharam de satisfação ao avistar um dos poucos que ainda conservavam alguma faísca de lucidez naquele mundo imutável.

— Olá, Haku — disse Ryuk, a voz rouca e arranhada soando como o riso de um palhaço de brinquedo quebrado. — Faz tempo que não te vejo 

Haku o encarou de sob a aba de seu velho chapéu, o sobretudo marrom ondulando-se em torno de seu corpo esquelético. Nem mesmo os óculos sujos de aviador em sua testa ou a bandana que prende seu cabelo espetado, conseguiriam ocultar o desprezo que emanava de sua face quase inexpressiva.

— Como você consegue deixar toda essa merda acontecer no mundo humano e ainda rir?

Ryuk deu de ombros, equilibrando algumas maçãs vermelhas e brilhantes entre seus dedos deformados.

— É por isso que você não pode ir ao mundo dos humanos — respondeu, com uma gargalhada debochada.

— Se eu pudesse…

— Esqueça isso. — Ryuk lançou uma maçã para ele com desdém. — Ou quer irritar o Rei novamente com suas perguntas?

Haku apanhou a fruta sem entusiasmo, girando-a entre os dedos como se pesasse a própria essência da humanidade; seu olhar perfurava sua superfície como se pudesse ver a podridão escondida sob a casca lustrosa.

— Por que gosta tanto disso?

Ryuk riu, um som agudo e metálico que não pertencia à garganta de nenhum ser vivo.

— Sabia que maçãs reduzem as chances de ataque cardíaco?

A ironia flutuou no ar estagnado como um veneno leve, misturando-se ao cheiro de pó e decadência que impregnava o mundo dos mortos. Antes que pudesse replicar, o som arrastado de algo pesado se aproximou. Dentre as sombras tortas das rochas surgiu Reigan, o Shinigami de corpo rachado e aparência espectral. 

Com tentáculos no lugar de pernas, deixava para trás um rastro de poeira enquanto flutuava. Uma cabeça cadavérica de crânio rachado ao meio. Seu único olho, escarlate e pulsante, resplandecia como uma estrela moribunda em meio à escuridão.

— Ele quer te ver.

Ryuk soltou um suspiro teatral e ajeitou as maçãs nas costas com um movimento preguiçoso.

— Que saco. Eu acabei de chegar... — resmungou antes de partir.

Reigan permaneceu ao lado de Haku, ambos voltados para o céu imóvel de Mu, onde as nuvens se agrupavam em espirais silenciosas e agourentas.

Haku deixou o olhar vagar até a Terra, onde observou as imagens que se formavam diante dele como reflexos em uma poça de água suja. Viu pessoas boas esmagadas por circunstâncias cruéis,  ao passo que criminosos sorriam, felizes e intocáveis. 

A injustiça era uma doença que corria nas veias da humanidade.

— Por que eles são assim? — perguntou Haku, rompendo o silêncio.

— Não sei... — Reigan não desviou o olhar.

O vento soprou mais forte e levantou a poeira em redemoinhos.

— Será que um dia eles vão mudar?

Reigan ponderou, como se a resposta exigisse mais do que simples palavras.

— Você sabe a resposta…

— Veja isso.

Em um leve movimento de mão, 

Entre as visões distorcidas do Outro Mundo, uma chamou sua atenção. Dentro de uma igreja — a chamada "Igreja de Kira" — um sacerdote cometia crimes hediondos, escudado sob a falsa bandeira da justiça divina; suas mãos destroçaram vidas em nome de uma fé corrompida.

O nojo atravessou sua expressão pálida. Haku apertou a maçã com força até que a pele da fruta cedeu e um fio de suco escorreu pelos dedos ossudos. Haku ergueu a maçã diante dos olhos e contemplou o líquido pegajoso.

— Isso me enoja… — murmurou, mais para si do que para Reigan. — Maldita seja... a maçã podre. No meio de centenas de árvores boas, basta uma fruta apodrecer... Uma pessoa rouba e fica rica; outra vê, sente inveja, tenta fazer o mesmo... e mata alguém por acidente. Outra vê o assassinato e percebe que pode fazer igual... e o faz de propósito.

A maçã escorregou de sua mão, caiu e rolou até parar junto a uma pedra.

— E tudo vira uma bola de neve... — continuou, a voz quase como um sussurro de condenação. — As pessoas não nascem más. O mundo as corrompe.

As nuvens sobre Mu se fechavam ainda mais, espremendo a pouca luz que restava.

— Gostaria de ter visto Kira em ação... — Haku murmurou, os olhos vermelhos e ardentes semicerrados, como brasas sob lentes embaçadas. — Ele parecia ser interessante, pelo que Ryuk me contou… — Suspirou. — A humanidade é podre. E as raízes que fazem ela apodrecer devem ser cortadas.

Reigan não respondeu. Seus olhos continuavam fixos no espetáculo miserável da vida humana. Foi então que Haku puxou, de dentro do seu sobretudo, um caderno negro, as bordas gastas e manchadas pelo tempo. Encarou-o como um rei amaldiçoado encarava sua coroa.

— Nós não podemos interferir no mundo humano, são as Regras — alertou Reigan,  a voz como se uma pedra fosse arranhada em outra.

As palavras ecoaram no ar pesado como um preceito inevitável, uma lei tão antiga como o próprio mundo de Mu.

— Não podemos... — Haku respondeu, cabisbaixo, em tom de desprezo. — Mas um humano, com poder e convicção, pode.

Os deuses esqueléticos se encararam em silêncio.

— Fique com meu caderno — disse Haku,  e entregou seu Death Note para Reigan.

— E para que eu iria querer um outro caderno? ainda mais o seu que deve estar cheio de nomes…

— Tenho dois cadernos e esse nunca foi usado.

O único olho de Reigan se arregalou, um brilho febril percorrendo sua expressão fria.

— Você também quer ver, não é? O mundo dos humanos… Vá. Encontre alguém inteligente. Alguém que saiba usar o caderno do jeito certo.

Reigan hesitou.

— Mesmo que eu queira... não sei pra quem entregar. E o Rei não vai gostar de ver outro caderno caindo "acidentalmente" na Terra tão cedo.

Haku sorriu, com um olhar onde apenas a malícia habitava.

— Cuidarei disso.

Com um gesto sutil, deslizou as imagens da Terra diante deles, até encontrar alguém. Alguém especial. Alguém cuja alma ardia com a intensidade de cem outros homens.

— Entregue a ele. Ele saberá o que fazer…

Reigan encarou o humano escolhido e depois se virou para Haku. Sem dizer mais nada, caminhou até desaparecer  entre as nuvens eternas de Mu. Ao atravessar os limites dos mundos, o cheiro de vida atingiu seus sentidos mortos: fumaça de escapamentos, esgoto a céu aberto, ferro oxidado dos entulhos das cidades humanas, como se a própria Terra já estivesse podre… 

A luz fria da lua iluminou seus ossos enquanto descia, silencioso como um Anjo do Senhor  em direção à Terra.

E, no fundo do que restava de sua alma decadente, Reigan riu,  pois o mundo humano não fazia ideia do que estava prestes a acontecer.

 

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