Volume 1
Capítulo 17 – Retorno
Clara descia os degraus com a mochila da faculdade no ombro e uma mala de rodinhas. Ela carregava não apenas roupas, mas o resquício de uma vida que decidiu deixar para trás.
Ao chegar próximo do final da escada, a porta da frente se abriu e a luz da sala se acendeu. Mãe e filha se encararam enquanto o ar entre elas tornou-se denso e pesado com palavras não ditas.
Clara ajustou a alça da mochila e não exitou em passar pela sua progenitora. O chiado das rodinhas era o único som que permeava entre elas.
Mas, ao tocar a maçaneta, a voz da mãe atravessou a sala como um estilete:
— Você vai morar com aquele psicopata?
Clara congelou. Lentamente, virou a cabeça. Os olhos antes enevoados pela tristeza agora ardiam como brasas. Pela primeira vez, havia neles uma intensidade que a mãe desconhecia — um olhar que não pedia mais permissão.
Num gesto repentino, a mão de Clara ergueu-se como um raio. O impacto seco do tapa reverberou pelas paredes e ecoou no silêncio como o disparo de uma sentença.
A cabeça da mãe virou com violência. A palma marcada em seu rosto ardia como ferro em brasa, enquanto seus olhos se arregalavam em choque ao encarar uma filha que já não reconhecia. A submissão que sempre lhe fora conveniente dera lugar a algo novo, algo ameaçador.
— Nunca mais fale assim do meu Marcos — A voz de Clara saiu firme e lenta, quase como se soletrasse para a mensagem chegar.
Sem hesitar, Clara fechou a porta atrás de si com força e o ar frio da rua, que anunciava o fim da tarde, a acolheu. Ela deixou para trás não apenas a casa, mas a casca da garota que ela costumava ser.
Já na sua nova morada, Marcos a recebia na sala, com um sorriso. Clara sentou ao lado dele como se quisesse um refúgio e o abraçou com força.
— Aconteceu alguma coisa?
Marcos sentiu no peso do abraço que havia mais por trás daquelas palavras. Mas não insistiu. Deixou como estava, porque às vezes o silêncio também é um refúgio.
Após um tempo, Marcos ajudou Clara a levar suas coisas para seu novo quarto.
— A gente dá uma limpa e você pode ficar aqui.
Clara ficou estranhamente tímida.
— O que foi?
— Eu… Achei que a gente ia ficar no mesmo… quarto…
Marcos riu com a doçura da garota.
— Eu achei que você iria querer um espaço pra você estudar e fazer suas coisas. Além disso, meu guarda-roupa é pequeno pra caber suas coisas também.
— Ah, claro, tudo bem.
Marcos notou a decepção nos olhos dela e se aproximou dela e ergueu o rosto dela para si.
— Se você quiser, pode dormir comigo, sempre que quiser.
Clara tentou responder, mas ficou presa em uma gagueira sem fim, até ser interrompida por um beijo que a congelou.
Se ele continuar fazendo isso de surpresa, acho que vou ter um ataque cardíaco…
Ele a ajudou a arrumar as roupas enquanto conversavam sobre como Marcos tinha tantas roupas de banda, pretas e que deveria comprar outras, mais coloridas, para variar no visual. Ele respondeu que gostava de camisas escuras e que Clara ficou linda todas as vezes que as usou.
Nesse instante, Marcos se lembrou de algo que guardou a um tempo. Foi até seu guarda-roupa e entregou para Clara a sacolinha com o presente que comprou.
Uma camisa preta com uma rosa desenhada entre correntes e uma calça jeans escura e com rasgos nos joelhos.
— Que linda!
— Preto combina com você.
— Eu não tenho tantas roupas pretas… mas se você diz isso, eu vou começar a usar.
Clara olhou novamente a sacola e tinha algo mais. Uma gargantilha preta, com um coração preto envolto a uma armação prateada.
— Eu não sabia que você gostava dessas coisas.
Marcos não havia visto e nem sabia que aquilo estava lá. Sem olhar, ele respondeu:
— Eu falei pra você que ficaria linda com essa roupa. Vai lá vestir.
Envergonhada, Clara se retirou e se trocou no banheiro. Não muito depois ela voltou vestida e com a gargantilha. Ele a encarou, dizendo que ela estava linda e notou algo que chamou a sua atenção.
— Obrigado. O tamanho ficou ótimo, acho estranho usar uma coleira no pescoço. Mas se você gosta eu vou usar.
Acho que isso veio junto com o conjunto por engano. Já que eu já paguei e ela gostou, deixa quieto.
— Você tá realmente muito linda.
A garota se admirava no espelho, uma mulher diferente do costumeiro e naquela gargantilha que ela acariciava, se sentia mais confiante que o normal, mesmo que parecesse uma marca de posse. Clara corou, mas logo ficou com uma feição triste.
— Que foi? Por que ficou assim?
— Marcos… sobre ontem…
Eu preciso dizer pra ele que não aconteceu nada e eu ainda sou virgem… mas como eu digo isso?
Ele sentiu que seria um peso horrível para ela dizer qualquer coisa, então interveio.
— Não se preocupe. Aquilo é passado. Vamos focar no agora e… tentar superar. Juntos.
— Não é isso… é que…
— Eu não vou tocar em você até que se sinta bem. Eu sei que a gente tá indo bem rápido, mas eu não vou pedir algo assim.
Ele está preocupado comigo… Ele acha que eu ainda estou sentida sobre aquilo. E eu nem lembro sobre o que sentir…
Clara se aproximou de Marcos e deitou em seu abraço.
— Obrigado — Ela disse enquanto fechava os olhos.
A manhã seguinte trouxe uma estranha paz. Clara acordou antes dele e fez o café. Marcos entrou na cozinha, ainda com os cabelos desgrenhados, encontrou um cenário inesperado: a mesa posta com simplicidade, mas com um cuidado que lhe pareceu inédito em sua rotina.
— Bom dia — disse Clara, servindo-lhe uma xícara.
Marcos arqueou as sobrancelhas, divertido.
— Assim vou ficar mal acostumado. Bom dia.
Clara sorriu de leve.
— Não é nada demais. Só quero que você comece o dia melhor.
O silêncio entre eles foi doce. Marcos, que costumava engolir o café às pressas, saboreou cada gole. Aquilo não era apenas café: era um prenúncio de lar.
O dia passou com Marcos no trabalho e Clara na faculdade. Ele mais animado que o costume, o que fez a sua colega, que sempre o paquerava, o perguntar o que havia ocorrido.
— Nada demais — Ele respondeu.
— Entãooo… que tal a gente sair pra beber, depois do expediente?
— Desculpa, minha namorada tá me esperando em casa.
A garota apenas acenou com a cabeça e se retirou em silêncio. Enquanto na faculdade, Clara prestava atenção na aula, mas estranhamente afastada das amigas. O ambiente parecia gelado e o tempo continuava fechado, como um presságio de algo ruim.
Já ao fim da tarde, com ambos já em casa, a chuva não caiu, mas era ótimo para aliviar a quentura infernal dos dias anteriores. Clara se deitou no tapete da sala, folheando um livro. Marcos se aproximou e deitou ao lado dela.
— O que tá lendo? — perguntou.
— Cinquenta tons de cinza — respondeu, sem tirar os olhos da página.
Ele a encarou com os olhos arregalados.
— Não sabia que você gostava dessas coisas…
— Não é que eu goste… — Clara corou — Só fiquei curiosa…
Marcos começou a rir da garota, o que a fez ficar envergonhada e bater nele, sem maldade. Apenas uma brincadeira antes de enfim deitarem juntos.
No dia posterior, a mesma rotina. Clara preparou o café e cada um foi para seu destino. A rua, mesmo acinzentada, parecia mais colorida. As horas passaram rápidas como se quisessem ajudá-los a se encontrar novamente.
Marcos estranhou que Clara ainda não tinha chegado em casa. Enviou uma mensagem e tomou seu banho para a aguardar na sala, mas nenhuma mensagem foi recebida.
Vagou pela casa em busca de distração, até que seus olhos pousaram sobre a mesinha da sala. Algo ali o atraía. Sob o movel, repousava um caderno negro. Marcos não reconheceu aquilo e pensou que por um acaso deveria ser de Clara, então pegou o objeto para guardar no quarto da garota.
Marcos estremeceu e seus olhos arregalaram enquanto a cabeça recebeu uma enxurrada de informações esquecidas. A boca estava aberta como se quisesse puxar o ar, mas não conseguia.
Cambaleou até o sofá e cumprimentou o Shinigami que o rodeava.
— A quanto tempo, Reigan… — Piscava os olhos ao tentar aliviar a tontura. — Não achei que era assim tão ruim recuperar as memórias.
— Está tudo feito, Rosário. Tudo conforme você planejou.
— Nem tudo. Agora eu estou namorando a Clara… Não esperava que isso fosse acontecer…
De repente, uma notificação no celular. Marcos recebeu uma mensagem pelo número de Clara com uma foto. Nela, a garota estava com o rosto assustado, encostada em uma parede sobre a mira de um revólver. E a chuva começou a cair.
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