Volume 1
Capítulo 16 – Acolhimento
O amanhecer continha nuvens carregadas, como se o céu tivesse herdado as lamúrias da noite. Clara foi a primeira a despertar. Ao se virar, seus olhos brilharam ao notar Marcos ainda dormindo.
As bochechas da garota coraram de instantâneo, como se fosse a realização de um sonho muito distante. Mas logo a tristeza retornou, percebendo os hematomas visíveis no rosto de seu amado.
Levantou-se devagar, com os pés sobre o chão gelado. A lembrança da madrugada ainda rondava seus pensamentos como um vulto. Mas, como sempre, trajou sua máscara e respirou fundo. Era hora de transformar o silêncio em gesto.
Na cozinha, o som do corte de temperos e o aroma do café borbulhando preenchiam o ambiente de uma normalidade artificial. Clara fritava os ovos com delicadeza, como se estivesse tentando reparar uma dor. Preparou a mesa não apenas para o café da manhã, mas para algo maior: a esperança de que Marcos não a odeie.
No quarto, Marcos despertou com o bocejar de um maxilar dolorido. Abriu os olhos devagar, como quem retornava de um campo de batalha. Sentou-se, esfregou os olhos e sentiu as costelas latejarem.
Percebeu que Clara não estava na cama, e mesmo sentindo a dor, correu para a cozinha procurando a garota.
— Bom dia… — disse ela, assustada com a aparição inesperada.
— Ah… bom dia… — Suspirou aliviado.
Ele caminhou devagar até a mesa, e Clara rapidamente puxou uma cadeira para ele.
— Eu… — ela começou, mas a voz falhou. — Eu queria pedir desculpa. Por tudo. Principalmente por ontem. Por ter te feito passar por… por aquela situação.
Marcos a observou em silêncio por um instante.
— Clara… — disse, firme, mas sem dureza. — Não foi culpa sua.
Ela ergueu os olhos, marejados.
— Você só está passando por um período difícil. Sou eu quem tenho que pedir desculpas por não ter sido mais legal com você da última vez.
O peso daquelas palavras quebrou algo dentro dela. Uma lágrima escorreu, mas Clara sorriu. Um sorriso pequeno, tímido, como se não tivesse certeza de que era permitido.
— Fiz ovos temperados que você gosta. Com catchup e pimenta.
— Obrigado... — ele respondeu, quase sem saber o que dizer.
Tomaram café em silêncio, mas dessa vez não era o mesmo silêncio da noite anterior. Havia nele um espaço novo, algo como um pacto silencioso.
Quando terminaram, Marcos pegou o celular. Digitou rápido, sem hesitar.
— Que ta fazendo?
— Vou faltar ao trabalho hoje.
— O quê? — Clara o olhou surpresa.
— Vou dizer que sofri um acidente, que preciso ir ao hospital — Ele sorriu de lado. — O que não deixa de ser verdade.
Clara quis protestar, mas se conteve. Sabia que ele precisava desse tempo tanto quanto ela.
Ele se recostou na cadeira, observando-a. O cabelo dela ainda úmido e mesmo assim havia nela uma beleza serena, quase cruel, por vir acompanhada de tanta dor.
— Clara… Eu estava pensando… você não precisa continuar naquela casa. Não precisa continuar se machucando lá.
Ela o encarou, atônita.
— O que você quer dizer?
— Quero dizer… — ele respirou fundo. — Quero que venha morar comigo.
As palavras pairaram no ar, pesadas e libertadoras ao mesmo tempo. Clara sentiu o coração acelerar. Não soube o que responder de imediato.
— Morar… com você?
— Sim — Marcos sustentou o olhar. — Você não merece aquele inferno. Aqui… pelo menos, você não vai estar sozinha. Eu vou poder cuidar de você e vou garantir que nada de mal aconteça com você.
— Mas…
— É culpa minha o que aconteceu ontem.
Quando Clara iria dizer algo, Marcos a interrompeu.
— Eu também te amo.
Clara o encarou em choque, com as mão sobre a boca e com as bochechas coradas pela felicidade.
— Eu não sabia o que dizer naquele dia. Fiquei assustado com a sua declaração. Eu jurava que você era lesbica.
um silêncio constrangedor.
— E o que te fez pensar que eu era lesbica?
— Seu único amigo homem sou eu, você só anda com garotas e você sempre elogiou garotas bonitas comigo.
Clara com um olhar perplexo respondeu:
— Eu tava querendo saber do que você gostava, cabeção!
— Como eu ia saber?
Ambos riram da situação. Corados e com um sorriso bobo. Marcos então tomou a iniciativa e fez o pedido de forma mais apropriada.
— Aceita namorar comigo?
O silêncio que se seguiu foi carregado de um turbilhão de pensamentos. Ela assentiu, devagar, com lágrimas escorrendo, mas pela primeira vez em muito tempo, eram lágrimas de felicidade.
— Eu… aceito.
Marcos aproximou-se devagar, como quem não tinha certeza se deveria ou não. O tempo parecia suspenso. As mãos de Clara tremiam, mas mesmo assim ela não recuou.
Então, quando os rostos estavam próximos o suficiente,ela fechou os olhos primeiro. O beijo selou a união em uma entrega tímida, quase frágil — como se ambos temessem que um simples toque pudesse despedaçar o outro.
Os lábios se encontraram, hesitantes, e por um instante Clara prendeu a respiração e agarrou a camisa dele, com medo de que tudo fosse apenas um sonho. Marcos, por sua vez, segurou a garota pela cintura e nuca, se deixando levar pelo momento.
O beijo se estendeu entre línguas dançantes e mordidas nos lábios, como se quisessem deixar fluir o que esconderam um do outro a anos. O fôlego acabou e se afastaram, cobertos de um sorriso envergonhado.
Não houve declarações, nem promessas. Apenas o silêncio depois do beijo — um silêncio diferente, íntimo, carregado de algo novo.
— Bom — Tossiu— Depois da aula você busca suas coisas na casa da sua mãe. Qualquer coisa eu te ajudo.
Clara acenou com a cabeça enquanto o sorriso não queria sumir e a impedia de falar. Ela olhou para o relógio e pegou a mochila.
— Eu… eu preciso ir. — disse ela correndo para a porta.
Marcos apenas riu vendo a garota se retirar, e como em um dejavu, encarou a xícara que a garota tocou seus lábios.
Clara chegou atrasada na faculdade, mas sequer estava se importando. Sentou-se no lugar de sempre. Escorou a mochila no chão e abriu o caderno, folheando as páginas enquanto o rosto ainda estava corado.
Apoiou a cabeça na mão esquerda e vagou entre as anotações das aulas e algumas citações de livros. Ela não procurava algo específico, só estava perdida no beijo e na realização do sonho de estar com Marcos.
Até que os olhos pararem em uma frase.
“O silêncio é também uma forma de grito.”
Leu para si, tocando vagarosamente em cada sílaba da frase.
Suspirou com as lembranças dolorosas que agora vão marcar sua alma. Quando o professor saiu da sala, Isa se foi até Clara com passos hesitantes.
— Oi, Clara.
— Hm... — Voltando à realidade. — Oi, Isa, você tá bem?
— Tô... acho que sim. A ressaca ainda tá me matando. — Exitou — Clara, sobre ontem...
— Tá tudo bem. A culpa não foi sua — Interrompeu de forma seca.
Isa parou por um instante, confusa.
— Culpa de quê?
— Você não sabia que os garotos iam... dopar a gente. Sabia?
Isa franziu o rosto. E antes que pudessem notar, Bia chegou, perguntando:
— Clara, por que o Marcos bateu no Ruan?
— Ela disse que os meninos doparam a gente... — respondeu Isa, ainda tentando entender.
— Doparam? Como assim? A gente só endoidou um pouquinho.
— O Talison veio falar comigo hoje cedo. Disse que, quando a gente tava saindo da festa, um cara de preto apareceu com mais três, bateu nele e nos amigos dele. Depois, levou a Clara embora nos braços — Contou Isa.
— O Ruan me disse que eles foram levados pra um prédio abandonado... e que levaram os celulares deles — acrescentou Bia. — E disse também que foi ele quem levou a gente pra casa depois.
— Não foram "eles". Foi o Marcos e um amigo dele. só. Os amigos de vocês doparam a gente e...
Ela parou. Não conseguia dizer em voz alta. Respirou fundo e acrescentou, num tom mais baixo:
— O Marcos não é um doido.
— Mas... se isso é verdade, como ele sabia onde a gente tava? — Perguntou Bia.
— Como ele sabia onde a gente morava? — Insistiu Isa. — Eu lembro de um cara... com uma camisa meio militar.
— Acho que era do táxi, enquanto o Ruan me colocava na cama — comentou Bia.
— Esse era o Daniel. Amigo do Marcos. Foi ele quem levou vocês duas.
Isa hesitou.
— Então o Ruan... mentiu?
— Tá tudo muito estranho — Disse Isa, tentando entender. — Eu conheço o Ruan. Ele cresceu comigo. Somos quase irmãos. Ele nunca faria isso com a gente.
— E outra: o Marcos não parece ser de brigar, e mesmo com um amigo, ele deu conta de cinco garotos? Eu vi o braço do Ruan. Ele é forte.
— Eu tenho certeza que o Ruan não faria nada de mal com a gente. O Marcos tava era com ciúmes.
Então o silêncio caiu. Clara viu a negação nos olhos delas. Não era ignorância, era medo.
Elas não queriam acreditar. Não queriam aceitar que alguém tão próximo pudesse ter se aproveitado delas enquanto estavam desacordadas.
Sem dizer mais nada, Clara pegou suas coisas e saiu da sala apertando a alça da mochila sem olhar para trás.
A garota foi diretamente ao ginecologista, fez alguns exames constrangedores, mas não teve coragem de escutar o resultado. Pegou o resultado dos exames e foi para sua antiga casa.
Sua mãe não estava e Clara não fez questão de acender as luzes. Encarou com frieza um retrato de seus pais, se abraçando e sorrindo. Ela pegou o pequeno quadro da mesa por alguns segundos, sem nenhuma reação. Retirou a foto da moldura, e revelou a parte dobrada, onde ela aparecia, ainda criança e com um lindo sorriso.
Ela olhou por mais alguns segundos, antes de devolver da mesma forma que estava ao seu local de origem.
Em seu quarto, ela jogou a mochila em cima da cama e se deitou cobrindo os olhos com o braço. Seu reflexo é de chorar, mas segurou com força a vontade.
Quando foi que esse inferno começou?
Se sentou à beira da cama e abriu relutantemente o envelope médico. Seus olhos correram rapidamente pelo texto, procurando por uma informação específica, uma frase que encerraria a angústia.
Lá estava: "Hímen íntegro. Ausência de sinais de rompimento."
Um suspiro profundo escapou de seus lábios enquanto ela o cobria. Um sorriso pequeno começou a surgir em seu rosto, enquanto o peso que a oprimia se desfazia, deixando para trás apenas a leveza da certeza.
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios