Dançando com a Morte Brasileira

Autor(a): Dênis Vanconcelos


Volume 4

Capítulo 99: Ritual das Três Nações

Passando alguns segundos com o rosto enterrado no chão, Nino se ergueu e se sentou, observando Anna se aproximar das meninas.

— O que vocês estão fazendo? — perguntou, se aproximando mais, enquanto as duas riscavam o chão com os dedos.

Olharam para Anna e, rapidamente, desviaram o olhar, voltando a se concentrar nos riscos.

Nina foi a primeira a responder, sua voz suave:

— No laboratório que e...

— O que é isso?

Dessa vez, pararam e olharam para ela, inclinando levemente as cabeças, seus rostos refletindo confusão e uma curiosidade preguiçosa.

— É um lugar... e... nesse lugar, tinha alguns mapas e círculos mágicos, mas eu não sei o que são. Mas... Clarah é muito inteligente, precisamos voltar pra vila... — Anna interrompeu, abaixando-se ao lado delas para rabiscar algo no chão também. — ...talv... O que cê tá fazendo?

— Levando vocês até lá.

— Hã?

A surpresa de Nina foi abruptamente interrompida quando Anna finalizou o último símbolo Primordial no círculo de teletransporte. Nino ainda observava, atônito, quando as três desapareceram repentinamente, deixando-o sozinho.

— Hãm?

Para as três, o ambiente simplesmente mudou..

P-pah...

Nina e Nathaly despencaram desajeitadamente sobre a mesa de casa, quase derrubando tudo. Anna, por outro lado, pousou em pé entre os pratos e copos, com a elegância de quem já sabia o que esperar. A mesa, coberta de sucos e pães, virou palco para o inesperado.

Caroline, sentada e comendo tranquilamente, Thum! Thum! soltou um grito abafado, seu coração disparando.

Anna, atenta ao susto de Caroline, ergueu uma mão com delicadeza, pousando-a suavemente sobre sua cabeça. Quando Caroline levantou o olhar, encontrou os olhos gentis de Anna e, com eles, uma paz reconfortante. O medo deu lugar a um calor seguro e confortável, e ela respirou fundo.

Anna desceu da mesa, sem pressa, ainda mantendo a mão na cabeça da jovem adulta, fazendo um cafuné suave.

Paff-Paff...

Deu dois tapinhas leves antes de se sentar ao lado dela. Pegou um pãozinho doce da mesa e começou a comer com tranquilidade, enquanto Caroline a observava, encantada pela mudança repentina de caos para calmaria.

Clarah, por sua vez, arregalou os olhos ao ver Nina e Nathaly sobre a mesa. Apesar do choque inicial, abriu um sorriso largo, radiante por vê-las de volta. Nina, ao abrir os olhos, viu Clarah e, num ímpeto de alegria e urgência, desapareceu de debaixo de Nathaly, Pahff... que tombou sobre a mesa.

Antes que Nathaly pudesse se levantar, Nina já se encontrava ao lado de Clarah, sacudindo-a pelos ombros com entusiasmo descontrolado.

— PrincesaNosTraiu! CírculosMágicosNasCapitais! Você sabe?! — falou afobadamente.

— QuêÊêÊêÊ? —  Clarah piscava freneticamente, tentando processar as palavras rápidas enquanto era sacudida como uma boneca, violentamente.

— Cír...

PAF!

Clarah segurou firmemente os braços de Nina, estabilizando-a de forma assertiva, mas gentil.

"...Ficou muito mais forte." pensou Nina, enquanto seus olhos deslizavam para a marca no pescoço dela. Ao compreender o que significava, sua expressão endureceu. Lentamente, voltou o olhar para o rosto dela e viu os lábios começarem a se mover.

— Calma. Respira. Vai com calma, moça...

Nina piscou, respirando fundo antes de finalmente perguntar, mais organizada:

— Você sabe algo sobre círculos mágicos de pacto ou ritual?

— Sim.

— Tem um em cada capital real. Você acha que consegue quebrar?

— Quebrar não é tão simples, mas tem que ser feito antes de ser ativado. Depois de ativado, é muito arriscado quebrar.

Ao ouvir isso, Nina virou-se imediatamente, lançando um olhar direto e exigente para Anna.

— Anna!

Anna, no meio de mais uma mordida no pãozinho doce, ergueu os olhos para Nina, com uma expressão de quem não entendia a urgência.

— Hãm...Nhami! Nhami!?  — murmurou entre mastigações.

— Faz aquele teletransporte de novo, mas agora para Alberg.

— Não tem como. Nunca fui pra lá.

— Mas... e se eu fizer?

— Aí você consegue, ué.

Sem mais delongas, Nina agarrou o tecido do vestido de Anna, Sccrrrchh... arrastando-a para fora da casa como se fosse um saco de batatas.

Anna, claro, nem resistiu. Com a mesma serenidade, deixou-se levar, saboreando o que restava de seu pãozinho. O rosto despreocupado lembrava um filhote de gato, dócil e meio distraído.

— Nhami! Nhami!

— Me ensina como fazer! — pediu Nina, inclinando-se sobre ela.

Sentada no chão, de costas para as pernas de Nina, ergueu o rosto e encontrou o dela inclinado, observando-a atentamente. Um leve suspiro escapou enquanto riscava um círculo simples no chão, deixando, de propósito, um símbolo incompleto.

— Tá vendo aquele lado faltando ali?

— Sim.

— Faça sua marca ali.

— Tá!

Nina se abaixou e completou o círculo, com um brilho nos olhos. Assim que o símbolo final foi riscado, o mundo ao redor mudou.

Sliiiishh...

As cinco reapareceram sobre a barreira do Círculo Mágico em Alberg. A proteção as impediu de entrar, e elas escorregaram até cair sentadas na ponte em frente ao portão da cidade. Anna, no entanto, desceu graciosamente, criando um delicado caminho de gelo para si.

Clarah olhou para a barreira com olhos arregalados. A intensidade do brilho, a pressão mágica palpável... Era demais, para um lado negativo.

Por um instante, tudo ficou em silêncio. Clarah respirou fundo, seus dedos tremendo levemente.

— Isso... Isso é maior do que eu esperava.

A voz de Clarah saiu quase em um sussurro, carregada de peso e apreensão. Seus olhos percorriam a imensidão da barreira, cada detalhe brilhando com força.

"Que merda!" pensou, antes de voltar o olhar rapidamente para Nina e Nathaly, que estavam lado a lado. — Vocês se lembram de como eram os círculos? — perguntou, sua voz firme, mas com um quê de urgência.

— Sim! — responderam em uníssono.

— Então desenhem no chão agora. Rápido, por favor.

Sem hesitar, as duas se agacharam na terra seca e áspera, seus dedos traçando os círculos mágicos com cuidado. Os olhos de Clarah acompanharam o movimento delas por um instante, antes de desviar para Anna, que caminhava lentamente em direção à barreira. 

— Não é mais fácil apenas quebrar isso? — Anna disse, sua voz arrastada, carregada de uma preguiça quase irritante.

Antes que Clarah pudesse responder, Anna ergueu a mão casualmente e a pousou contra a barreira.

KA-KRAK!!

O som de vidro rachando preencheu o espaço, reverberando como um trovão. Toda a barreira trincou em questão de segundos, linhas brilhantes se espalhando em um padrão caótico, como uma teia de aranha luminosa.

— PARA, PARA! NÃO QUEBRA! — gritou Clarah, avançando alguns passos com os braços erguidos em alarme, o desespero escancarado em sua expressão. — Não temos como saber o que acontece se quebrar o pacto! — Sua voz tremia, carregada de incredulidade. "Como ela conseguiu rachar isso?!" pensou, sua mente girando com a magnitude de poder que acabou de presenciar.

Anna lançou um breve olhar para ela e piscou, achando a reação de Clarah exagerada. Então, soltou um suspiro mais exagerado ainda e se afastou, os ombros caídos.

— Que saaacoo... — murmurou, arrastando os pés como uma criança contrariada.

Clarah balançou a cabeça para se recompor, respirando fundo. Fechou os olhos por um momento e se concentrou. Caminhou até os círculos que Nina e Nathaly haviam desenhado, posicionando-se no centro.

Suas mãos começaram a se mover de forma fluida, quase dançando, enquanto tentava entrar em sintonia com os símbolos, sentindo as camadas de magia e energia ao seu redor. O ar vibrou com o esforço.

Porém... nada.

Parou abruptamente, os olhos se abrindo devagar.

— Não dá para fazer isso aqui — disse, a frustração permeando cada palavra.

— Por quê? — perguntou Nina, sua expressão marcada pela confusão e ansiedade.

Clarah suspirou, passando a mão pelo cabelo.

— Não dá mais para quebrar os círculos... eu acho. Fazendo um ritual aqui, só iria para Alberg. Se há círculos em todas as capitais humanas, o único lugar de onde posso tentar quebrá-los é no centro exato entre as três capitais: Alberg, Van-Sirieri e Dirpu. O problema... é o que vive lá.

Sua voz caiu para um tom mais baixo, dando um clima sombrio ao dizer: 

— Há uma lenda muito famosa dizendo que naquele lugar vive um Gigante de 70 metros, que possui quatro braços e um único olho. Ele é conhecido por aniquilar qualquer coisa que chegue perto dele. Por isso, muitos evitam passar por esse desfiladeiro onde ele vive; mesmo que demore mais para chegar aos seus destinos, as pessoas preferem não arriscar que essa lenda seja verdadeira.

Havia uma seriedade bem sombria em sua expressão enquanto terminava de falar, mas seus olhos logo se fixaram em Nina, procurando apoio ou ideias.

— Um Gigante com quatro braços? Nhami! Nhami! — murmurou Anna, enquanto mordia um pedaço de pão que, de alguma forma, havia magicamente reaparecido em suas mãos.

"Oxi, tirou isso da onde?" pensou Nina, incrédula.

— Aaaaaaaaaaaah... Acho que é o monstro que matei indo até Van-Sirieri.

Clarah congelou, os olhos se arregalando.

— O quê? Como?! — perguntou, o choque evidente em seu tom.

Todas as meninas se viraram para Anna, que deu de ombros com uma naturalidade quase insultante.


[ Cinco dias atrás:

O vasto horizonte da planície desértica parecia infinito diante de Anna. O chão seco e rachado estava quase sem vida, pontuado apenas por árvores com troncos tortuosos, de um tom alaranjado envelhecido, cujas folhas caíam em cores marrons desbotadas. A paisagem árida e silenciosa não fazia qualquer sombra de conforto, mas Anna caminhava com o vestido inibindo o calor.

À frente, uma enorme ravina cortava o terreno, suas paredes altas se estendendo por quilômetros. A profundidade do desfiladeiro parecia ameaçar engolir tudo ao seu redor, mas o que realmente chamava a atenção eram os arcos de pedra que adornavam o topo, cobertos por plantas secas que desciam pelas paredes da ravina como cortinas desfeitas pelo tempo. A altura das paredes era impressionante, mais de 60 metros de pura verticalidade.

Sem entender a presença do gigante escondido no desfiladeiro à sua frente, Anna caminhava despreocupada, admirando a grandiosidade da paisagem. O ser era imenso, e ela não compreendia, pois nunca havia visto um gigante com aquela anatomia.

Ali embaixo, no abismo do desfiladeiro, o Gigante permanecia encolhido nas sombras, um monstro colossal, distorcido pela maldição que o escravizava. O corpo, marcado pela dor e pelo sofrimento de duas longas décadas, se curvava sob o peso de uma existência sem fim.

Ao ouvir os passos, o som se infiltrou em sua consciência com um comando imposto, e seu corpo se levantou automaticamente, uma marionete, movendo-se sem vontade própria, forçado a cumprir a Ordem que uma certa Deusa lhe impôs.

Há 20 anos, foi amaldiçoado por uma Ordem da própria Deusa da Morte... Foi proibido de piscar seu único olho e era forçado a matar qualquer ser que ousasse atravessar aquele lugar.

Cada movimento seu, cada respiração, estava condicionado por essa maldição. Pensar, mesmo que por um segundo, sobre a possibilidade de fugir, era um pensamento proibido. E a punição por sequer cogitar tal ideia era ainda mais cruel.

Toda vez que uma fagulha de esperança surgia em sua mente, uma pequenina fagulha de desejo de se libertar, sentia sua alma sendo corroída, consumida por dentro, literalmente era triturado por uma força invisível.

Sua alma nunca morria. Mesmo se fosse dilacerada e destruída por completo, seria refeita, obrigando-o a continuar a sofrer, eternamente, em um ciclo infinito de dor. A única maneira de encontrar a morte seria se outro ser, alguém que não fosse ele, o matasse. Mas essa morte, essa liberdade, parecia tão distante quanto a própria escuridão.

Proibido do suicídio, o Gigante se via preso, em uma prisão mental e física sem fim. Cada pensamento, cada suspiro, cada momento de angústia só o arrastava mais fundo em sua própria tortura.

Pensava mais e mais, ficando assim por duas décadas, sem poder dormir, sem poder piscar seu grande olho, agora irritado e completamente vermelho de tanto tempo aberto. Durante todo esse período, não teve descanso, nem um único momento de paz. Seu olho, inflamado pela falta de sono, ardia incessantemente, um lembrete constante de sua maldição.

Ao sentir seu corpo novamente se erguendo sozinho, o Gigante levantou-se. Seus movimentos eram automáticos, desprovidos de vontade própria. Não via nada à frente até que ouviu o som de um único passo e percebeu a marca leve de uma sapatilha na poeira. Seu enorme olho centralizou-se onde Anna estava. Então, ela se mostrou, encarando-o diretamente.

O medo o consumiu. Instintivamente, recuou, seus membros imensos tremendo de puro terror. Sentiu o mesmo temor avassalador que o dominava ao encarar a Deusa da Morte, mas dessa vez, vinha daquela jovem mulher de aparência serena

SSSHHKKR-R-R-R-RUNCHH!!

O impacto foi brutal.

Antes que o Gigante pudesse reagir, sua carne explodiu em um espetáculo grotesco de destruição. Dezenas de Luas Novas cortaram sua figura colossal em pedaços imensos, retalhando ossos e músculos com uma violência implacável.

PA-P-PAH! 

Sua forma desabou pelas paredes da ravina, provocando uma sangrenta e empoeirada onda de destruição.

CR-R-RAASHH!!

Os pedaços de carne caíram com estrondos surdos, enquanto pedras gigantescas que sustentavam o corpo rolavam montanha abaixo. O barulho ensurdecedor ecoava como um terremoto, esmagando árvores e causando caos.

Algumas rochas colossais colidiram com carroças abandonadas, de comerciantes que haviam cruzado aquelas trilhas à noite. No escuro, não perceberam a presença do Gigante e acabaram encontrando um destino fatal.

Anna continuou caminhando, indiferente ao massacre. Seus olhos fixaram-se nos cortes precisos realizados nas bordas da ravina. Com um giro quase displicente de sua foice de água, deixou claro o tédio que sentia com a tarefa.

A lâmina brilhou suavemente por um instante, a água ondulando em torno dela, capturando a luz fraca do sol como se zombasse do Gigante morto. Não havia satisfação em seus olhos, nenhuma emoção. Para ela, aquele gigante era apenas mais um obstáculo insignificante, nada comparado ao tamanho dos Colossos que já viu na sua infância solitária.

— Harrff...

Com um suspiro de aborrecimento, virou-se e continuou seu caminho em direção a Van-Sirieri, como se nada tivesse acontecido. ]



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