Dançando com a Morte Brasileira

Autor(a): Dênis Vasconcelos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 69: Vovó?

O sol já dominava o quarto, sua luz filtrada pelo tecido claro.

A falta da vidraça na sacada deixava que o vento balançasse com graciosidade as cortinas brancas.

Em meio ao início de um novo dia, os gêmeos continuavam deitados, testas quase se tocando, como em todas as noites de suas vidas.

Prim! Prim! Prim!

Prim! Prim! Prim!

O momento de se levantarem chegou, anunciado pelos toques agudos dos celulares, despertando sobre cada criado-mudo. O som irritante atingiu os ouvidos dos dois como agulhas.

Meio sonolentos, olhos semicerrados e expressões com uma pitada de raiva, os dois sentaram-se na cama após apertarem "parar".

Ficaram se encarando por alguns segundos, até que Nino foi o primeiro a falar:

— Barulho chato.

Fuuu... — Nina bufou pelo nariz, concordando com um leve aceno de cabeça.

A cortina continuava sua dança ao vento, projetando uma pequena sombra transparente, que atraiu o olhar de Nino, fazendo-o voltar-se para a sacada, onde se lembrou do que aconteceu no dia anterior.

— Harrff... Será que alguém vai vir até aqui? — perguntou, desanimado com a ideia de receber outro humano.

— Ela disse que antes de voltarmos da escola já estaria consertado. Mas... — Nina ponderou, levantando-se da cama — acho que vai ser ela mesma que vai colocar outro vidro.

— Hãm? — Nino virou-se para ela, curioso.

— Sei lá... seria mais fácil do que explicar como quebrou o vidro no apartamento de um aluno.

— ...Faz sentido.

Nina caminhou até a porta.

Nino a observava, até que ela se virou para ele, enquanto ele finalmente se levantava, espreguiçando-se.

— Começa às 8h, são 07:33. Vou tomar um banho... — avisou, saindo do quarto. Mas na saída, voltou-se para ele novamente: — Cê vai tomar também ou posso demorar?

— Pode demorar.

— Ok.

Nina saiu andando pelo corredor, até o banheiro, Tlac. — onde fechou a porta — e Nino passou em frente, esticando os braços para cima, se alongando cheio de preguiça mais uma vez.

Dentro do banheiro, Nina tirou o confortável macaquinho.

Sem perder tempo, entrou no box, pronta para ficar minutos inerte. Assim que ligou o chuveiro, Shhhuuaa... o som reconfortante da água quente preencheu o ambiente.

Ficou imóvel, apenas aproveitando o calor e o vapor da água queimando, deixando o cansaço e a tensão da noite anterior escorrerem pelo ralo.


Nino chegou à sala e sua atenção foi automaticamente para a televisão.

"Passa jornal de manhã?" Com um sorriso um tanto macabro, andou até o controle, o segurou e ligou a televisão... Mas seu sorriso logo se dissipou. Nem mesmo pensou em mudar de canal — sempre deixava no que sua vó assistia novela e, agora, mesmo sem ela, esse costume se mantinha.

Não era um jornal que passava naquele momento, mas sim um programa de culinária.

— ...Saco.

Nino resmungou, Pf... largando o controle no sofá.

Virou-se de costas para a televisão ligada de fundo e seguiu para a cozinha.

Abriu a geladeira dupla e seus olhos brilharam com o espetáculo: prateleiras lotadas de comida, frutas frescas, bebidas organizadas.

Uma fartura que contrastava com o que costumavam ter.

— Tem carne?

Não havia se ligado ainda, mas só tinha aberto as portas de cima; o congelador ficava embaixo.

— Hum?

O menino viu o detalhe que lembrava uma alça e, instintivamente, puxou a porta inferior — o congelador.

Lá dentro, uma explosão de cores: embalagens de carne, frangos temperados, sorvetes com tampas coloridas...

Procurou por algo em específico... e encontrou.

Ergueu uma embalagem de linguiça, curiosidade estampada no rosto. Nunca havia visto uma embalagem com linguiça, e muito menos se lembrava de ter comido uma parecida como aquela.

Virou o pacote para vê-la melhor e o que encontrou foi o nome:

— Linguiça toscana...? Harf... Deve ser boa.

Colocou a carne sobre a bancada, fechou o congelador e abriu novamente as portas para pegar laranjas fresquinhas e preparar um suco para ele e sua irmã... mas, enquanto fazia isso, a apresentadora do programa, com uma voz animada, anunciava a receita do dia:

— "Olá, meus amigos telespectadores, tudo bem com vocês? Hoje está uma manhã maravilhosa na grande São Paulo. Espero que o dia de cada um seja tão lindo quanto esse céu azulado..."

Nino continuava analisando as coisas na geladeira, vendo se tinha mais algo para fazer além da linguiça, completamente alheio ao que se passava na televisão.

Na tela, uma senhora sorridente caminhava até a bancada com os ingredientes do dia.

— "Hoje, no 'Cozinhando com a vovó'..."

O garoto virou o rosto imediatamente para a direita, afastando-se um pouco para trás para que a porta da geladeira não bloqueasse sua visão.

A palavra "vovó" mexia com ele de uma maneira intensa e desconfortável — um sentimento forte de saudade, inexplicável.

— "...nós vamos preparar um bolinho, ou um belo petisco, delicioso, de linguiça toscana com queijo."

— Toscana com queijo? — Nino olhou para a embalagem de linguiça sobre a bancada e, em um estalo, voltou-se para a geladeira, encontrando um pacote de mussarela. Pegou-o rapidamente. — Isso deve servir.

Pla...

Fechou as portas de maneira desleixada, se posicionando na frente dos dois ingredientes preparados. Sua atenção quase absoluta no que escutava e via na imagem que a televisão lhe reproduzia.

A vovó, com seus cabelos brancos e sorriso acolhedor, continuava a explicação enquanto a câmera mostrava uma visão de cima, focando na bancada de aço inox:

— "Meus amigos, para a nossa receita de hoje, eu vou utilizar aqui sete gomos de linguiça toscana, que eu vou retirar aqui, ó..."

Quando a vovó começou a retirar a pele da linguiça, Nino olhou rapidamente para a sua embalagem congelada, Frush! — que foi estraçalhada por cortes precisos e silenciosos da criatura que abriu o olho sobre a sua Marca, que ficou visível naquele momento.

Seus olhos se mantinham focados — aquilo não era uma brincadeira, ou uma mera receita.

Nino se sentia acompanhado da vovó naquele momento, e levava as coisas a sério demais.

Assim que sua ordem súbita — sua vontade, que o ser dentro de si sentiu como um comando sem a necessidade de vocalizar — foi concluída, o olho desapareceu do seu pescoço, deixando apenas a Marca Primordial vibrando, com o carinho que Nino queria aproveitar naquele momento com "Marta".

A embalagem foi destruída, mas as linguiças continuavam congeladas demais para que conseguisse remover a pele.

Brunmfh...

Uma explosão de chamas escuras controlada sobre elas foi realizada — o descongelamento foi perfeito; o gelo, a água, apenas evaporaram, deixando as linguiças em temperatura ambiente.

Nino nem mesmo pensava — agia por instinto. Completamente no automático, vendo a velhinha na televisão, como se fosse Marta lhe ensinando algo. E, da mesma forma que a vovó manuseava as linguiças, Nino ia replicando — embora com mais precisão e eficiência.

— "...essa pele."

Ficou alguns bons segundos retirando a pele de todas, e Nino, tendo acabado muito antes dela, aguardava, com seus olhos presos na televisão, sem nem mesmo piscar uma única vez.

Então, a vovó prosseguiu:

— "Retirei toda a carne da linguiça, ó, e como podem ver, a linguiça deixa alguns pedaços grosseiros, ó, e para modelar o bolinho não é muito fácil. Mas se quiser fazer assim, não tem problema. Mas se tiver um processador ou liquidificador, você vai bater um pouco essa carne para deixar ela mais cremosa e com os pedacinhos menores."

A velhinha puxou o processador de uma estante até a bancada, e Nino começou a procurar feito um louco pelos armários, atrás do mesmo item. Entretanto, não encontrou.

Vrurururur...

Mas quando o som da carne sendo processada ressoou, olhou para a televisão e, no mesmo instante, o olho substituiu sua Marca novamente.

Frrurursh...

Deixando a carne inteiramente retalhada, com a consistência desejada, exatamente como a receita exigia.

Nino continuava assistindo ao programa. Já o olho, no seu pescoço, se entediou antes de voltar para a alma do menino. Um ser capaz de dizimar reinos, nações, raças, civilizações inteiras... sendo usado para preparar uma receita. Sendo servo dos Herdeiros ou não, sentia-se humilhado.

A vovó terminou de processar a carne e, ao transferir a massa para uma tigela, continuou com a receita:

— "Olha só como muda a textura, gente, ó. Ela fica mais fina, mais cremosa, e vira uma massa mesmo. E como a linguiça já é completamente temperada, eu vou adicionar apenas cebolinha picada..."

Plush!

Nino puxou as portas da geladeira com tanta força que quase as arrancou das dobradiças, olhos varrendo cada canto, cada cor das coisas variadas presentes ali. Encontrou uma área com folhas verdes: alface, rúcula, manjericão, muitas ervas e verduras — mas entre elas, encontrou as cebolinhas ainda frescas do fornecimento naquela geladeira.

Frrurush...

O olho retornou, vindo com sua ira... mas ainda apenas sendo usado para tarefas domésticas.

Triturou as cebolinhas como no exemplo da tigela já preparada anteriormente pela vovó — e foi embora, com o mesmo olhar tedioso de participar daquele momento "humano".

Após derramar a cebolinha sobre a massa, assim como a vovó, o jovem pegou uma colher na gaveta e começou a misturar a carne, sincronizado com o gesto que via do outro lado da televisão.

— "Agora, vamos misturar... Olha só a textura que fica, gente! Essa será a massa do nosso bolinho, e só isso! Não é fácil? Haha..."

Nino mexia a massa com uma concentração assustadora, como se cada movimento fosse crucial.

Seguia cada passo da vovó, sem piscar, como um devoto em um ritual sagrado.

Então, a apresentadora puxou um pequeno recipiente de metal:

— "Para fazer os bolinhos, vou utilizar aqui um pouquinho de óleo para passar na mão, e para o recheio..." — puxou um prato com tabletes de queijo, exibindo-os para a câmera de cima. — "Vou utilizar mussarela!"

Nino, já se adiantando no armário, procurava por óleo, e quando voltava para a bancada, olhou para o seu queijo. Sem nem raciocinar, pensar ou qualquer coisa que envolvesse sanidade, notava que era o mesmo queijo — mas de forma inconsciente.

Seu ser só queria concluir aquele momento com sua primeira mãe.

O olho, assim que notou que eram quadradinhos de queijo, se revelou novamente: Frurursh... Cortando o queijo como o exemplo mostrado.

— "Eu cortei elas em pedaços, mas caso não goste, pode utilizar requeijão. Fica ao seu critério. Deixei um prato aqui do lado..."

Nino apareceu na bancada já com o prato em mãos, seu pescoço inclinado em um ângulo estranho enquanto mantinha os olhos fixos na sala — atento à televisão como se cada palavra fosse um comando divino.

— "...para ir colocando os bolinhos preparados. Depois de passar o óleo na mão, pega um pouco da massa, e você pode fazer o bolinho do tamanho que quiser. Você abre na mão, assim, ó, coloca o queijo e é só fechar, escondendo todo o queijo, dessa maneira, fazendo sua bolinha, ou disco..."

O Primordial replicava a receita melhor que a própria dona.

Uma precisão inumana.

Não errava — era perfeito na execução de cada movimento.

Acabou em segundos de preparar os dez bolinhos que deu para fazer com os sete gomos de linguiça.

A vovó, por outro lado, demorou um tempinho e, enquanto Nino aguardava a conclusão dos dela...

...uma menina acordava.

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