Dançando com a Morte Brasileira

Autor(a): Dênis Vasconcelos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 118: Olhares

Era 7h da manhã.

Samanta estava em pé no corredor do quinto andar, em frente ao 507. Vestia sua legging preta e o blusão branco do dia anterior. A sacola ecológica com sua roupa preferida estava, mais uma vez, dobrada para o pós-banho. Olhos grandes, focada na tentativa de ignorar e fingir que nada havia acontecido no início da tarde do dia anterior.

Ergueu a mão e discou: dois, quatro, zero, sete... Tlc. A porta abriu, e o olhar da jovem continuava lutando para parecer natural. Entrou e fechou a porta com suavidade, observando o interior com a luz acesa tão cedo.

— Está acordado? — pensou. — Thaaaales? — chamou, embora em um tom baixo e vergonhoso.

Thales não havia dormido, e quando escutou seu nome, o caderno em que estava usando voltou a ser nanorrobôs pelo quarto. Saiu com pressa, indo até a cozinha, logo parando em frente a ela.

— ...Oi.

— Oi...

Um silêncio. Ninguém sabia como iniciar algum assunto.

Schsch...

A jovem colocou a sacola sobre o balcão.

— Vamos?

— Não vai levar isso?

— Vou tomar banho aqui, então não tem por que eu levar para trazer depois — sorriu.

— Faz sentido — concordou, também com um movimento de cabeça.

Sairam.

— Você cumpriu o que disse, obrigada, fiquei feliz — murmurou no elevador, sem olhá-lo.

Uhum... — murmurou de volta, mas o silêncio no ambiente enquanto o elevador descia era muito doloroso.

Conversou consigo mesmo durante toda a noite; ela era mais jovem, três anos de diferença e ainda uma menor. Não queria apressar nada.

"Foi só uma forma de se despedir... nada demais." — Tá animada pra fazer pizza hoje?

Samanta o olhou.

— Tô!

— Também.

Chegaram à academia. Thales, levando aquilo só como uma despedida, ficou mais tranquilo, zero nervosismo, o que a ajudou a se soltar como no dia anterior. As brincadeiras, a competição injusta agora nas novas máquinas, que não fizeram no dia anterior.

Clap!

Saltos e mãos batendo. Mais uma máquina zerada.

O tempo voou. Nem perceberam que já era 11h da manhã e ainda brincavam e riam. Rrrooon... mas a barriga da garota não estava se divertindo. Deu o sinal, a menina olhou o celular e os dois foram embora, direto para o shopping.

Chegaram ao supermercado, Thales pegou uma cestinha.

— Ué? — disse ela, em tom divertido. Mãos juntas para trás, corpo um pouco curvado para ele.

— Oi?

— O carrinho não é melhor?

— Vou pegar pouca coisa. Ontem olhei os armários. Já tem muita coisa que vamos usar lá.

AaaaahPa! — murmurou de bocão aberto, mas quando viu o menino erguer o dedo rapidinho, deu um passo para trás, tampando a boca com as mãos.

Ele riu.

— Ainda vou me vingar — disse em brincadeira, começando a andar.

A menina riu com um sorriso alegre e o seguiu saltitante com seus passos de soldadinho.

Schsch...

— Maçã?

— É.

— Pizza de maçã?

— É pro suco, cabeçona.

Samanta aborreceu o olhar.

— Então... pra fazer pizza precisa de molho de tomate. Ma...

— Eu como tomate. Só não gosto em hambúrguer... é um crime colocar isso em um hambúrguer.

...Ah.

Samanta deu alguns passos, indo até os tomates.

— Quer que eu escolha?

— Não vamos usar esses não. Sr. Sandro fazia com tomate italiano. Só que, como é chato de achar, comprava o pelado em lata e me ensinou a fazer o molho com ele.

Samanta piscou duas vezes, olhando-o, e voltou ao lado do menino, escolhendo as maçãs.

— Sr. Sandro? O seu chefe na pizzaria?

Uhum. Saudade dele — disse tranquilo, colocando as coisas na cesta e saindo.

Continuaram pegando os ingredientes: cebola, linguiça calabresa, azeitonas pretas e muito queijo muçarela, além do de búfala. Mas também leite condensado, creme de leite, achocolatado em pó, cacau em pó e foram atrás das latas de tomate pelati italiano...

— Isso é pra quê? — disse ela, olhando a cestinha.

Thales olhou com leveza.

— Vamos fazer duas pizzas: uma de calabresa e a minha preferida, que é a margherita. Na de calabresa, quero fazer uma borda recheada com brigadeiro.

Os olhos da menina brilharam. Thales sorriu.

— Sério?!

— É.

— Mas e na outra?

Olhou para frente.

— A outra é especial... só vai ter o carinho e o amor de fazer.

Aaahr! Mas brigadeiro é muito gostoso! — protestou, emburrada, olhando-o.

Thales olhou-a e colocou a mão na própria boca, tendo uma ideia.

— Tá. A sua metade vai com borda.

O olhar dela brilhou com intensidade e ele sorriu contente.

Acharam os tomates, mas ainda faltava um item, que logo encontraram — um avental.

— Ué, só um?

— É, um pra você. Eu já tenho.

— Por que não usou ontem então?!

— ...Esqueci.

Uhumm... — Semicerrou os olhos, mas Thales não os desafiou.

Pagaram as compras e não demorou muito para chegarem aos apartamentos. Samanta correu na frente para abrir com a senha mais uma vez, e Thales apenas permitiu, entrando logo após com as sacolas. Colocou-as no balcão e começou os preparativos.

— Tá... — Schsch... Pegou o avental. — Vem cá.

Samanta foi até o menino. Thales passou a tira pela cabeça e foi para as costas da jovem. Pegou o cabelo com cuidado e o soltou, logo pegou as tiras da cintura e amarrou para ela nas costas, não apertando muito, mas o suficiente para não soltar sozinho.

— Pronto.

Samanta virou-se para ele.

— E a sua?

Os nanorrobôs da regata se adaptaram, mantendo a regata dragão, mas criando um avental da mesma cor preta que o dela para o jovem, um avental que era imenso, já que o jovem era imenso.

A menina travou em choque.

— ISSO FOI MAGIA?! — exclamou, curiosa.

— Não. Isso são nanorrobôs! — sorriu, satisfeito e contente por mostrar o que o deixava curioso no passado, para outra pessoa agora.

— Isso é magia... só inventou um nome legal — murmurou, olhos estreitos.

— Não é magia — respondeu.

— É sim! — exclamou, braços agora cruzados, olhos abertos, ameaçador com um tanto de fofura.

— Então é.

— Viu!

Thales aborreceu o olhar, deixando a vitória para ela.

— Minha magia só serve pra fazer roupa.

— Magia fraca — provocou.

— ...Por isso dou socos.

— ...Faz sentido — concordou com um movimento de cabeça.

— Tá... vamo lá — virou-se para a sacola e continuou: — Pega pra mim no armário sal, pimenta-do-reino e azeite, por favor. Na geladeira, pega um potinho que eu separei com louro e manjericão. O alho já tá aqui.

— Tá!

Enquanto a menina ia, Thales limpou o balcão, descendo a sacola ecológica para o chão e colocando os itens comprados de forma dividida sobre ele. A jovem voltou com tudo, e Thales logo pediu:

— Pega uma tigela de vidro grande no armário pra mim, por favor.

Thales pegou uma faca grande, uma menor, uma colher grande, uma peneira de metal e duas panelas não muito grandes, colocando tudo nos devidos lugares. Pegou o alho, Pa tirou a casca de três dentes. Pegou o azeite e despejou na panela, até tampar o fundo, ainda desligada.

Titititiburn... ligou em fogo baixo, colocando os dentes.

Samanta colocou a tigela no balcão e o menino pegou uma das quatro latas de pelati.

— Vou pe...

Crsh...

Nem deu tempo de virar-se para buscar um abridor de latas. O menino rompeu o metal da tampa com as mãos, sem que explodisse ou sujasse tudo. Uma demonstração de força e precisão bem na sua frente. A jovem abriu bem os olhos, vendo as mãos fortes, e ficou meio corada.

Thales virou o rosto para ela e, ao ver o movimento, ela se virou, escondendo-se por um momento.

— Quê?

— N-nada não...

— ...

O jovem virou-se de volta. Crsh... abrindo as outras três latas e colocando os tomates na tigela. Ainda de costas, deu sua ordem:

— Pega a manteiga na geladeira que vou te falar o que fazer depois.

— Tá.

Buscou.

— Na real... prefere tirar a pele dos tomates e amassá-los aqui ou fazer o brigadeiro?

— ...Tirar a pele e amassar.

Thales entregou a faquinha para ela e assumiu o brigadeiro.

— Tá.

Pegou o leite condensado, abriu e despejou-o inteiro. Titititiburn... ligando em fogo baixo. Pegou uma colher e tirou um pouco da manteiga, Pla jogou dentro. O creme de leite veio logo em seguida.

Thales pegou a peneira e peneirou, por cima, bem pouquinho do cacau em pó para não deixar muito amargo. O achocolatado foi erguido; uma quantidade mais generosa entrou em cena.

Fuuu..hhhmn...

No tempo em que começava a misturar, escutou um soprinho, olhou e viu Samanta usando magia para tirar as peles dos tomates com precisão, sem precisar sujar as mãos. Os tomates se amassavam e viravam um molho bruto e grosseiro.

— Isso é roubar! — protestou.

— Eu chamo de inteligência — refutou.

Finalizou... e o olhou, mas logo recebeu a ordem:

— Fica mexendo aqui, vou iniciar o molho então.

Uhum...

Assumiu a colher, e Thales pegou outra para remover os alhos do azeite já um tanto fritinhos. Shmn... Tss... amassou-os no balcão, fazendo uma pastinha, e os retornou ao azeite. Tsshii... virou os tomates no azeite, Rissp passando a colher na tigela para não desperdiçar nada.

Shubloblo colocou um pouco de água nas latas sujas dos tomates e as limpou, despejando no molho para deixar cozinhando.

Foi até a vasilha que Samanta pegou com os cheiros verdes. Tluc abriu. Dentro, tinha uma folha de louro, dois pequenos galhos de manjericão e um tomilho pequenininho, amarrados juntos por um barbante.

Colocou-os junto ao molho, pegou o sal e a pimenta-do-reino e complementou.

A colher entrou em cena, e os dois ficaram mexendo juntinhos, um do lado do outro... em silêncio, só sentindo o doce aroma do brigadeiro sendo feito contracenando com o cheiro do molho de tomate.

Uma mistura interessante até.

Samanta olhou-o de canto. Thales prestava atenção no molho ainda levemente frio, para pôr meia tampa na panela e deixá-lo cozinhar por bons minutos sozinho.

Lembrou de uma coisinha e o avisou:

— Eeei!!?

Olhou-a.

— Oi?

— Tá esquecendo de me chamar de soldado, general!

Thales piscou surpreso, olhando-a cobrar. Brincaram na academia, mas lá esqueceram.

Ah, é! — Virou-se e pegou a tampa da panela. Pak tampou-a pela metade.

A mão direita foi até a colher de Samanta, que cedeu, e Thales assumiu o mexe-mexe do brigadeiro até dar o ponto. A jovem foi para a esquerda, ficando onde o menino estava instantes antes.

Não entendeu o que ele queria, mas viu-o olhá-la com serenidade... antes de desviar o olhar com uma expressão assustada na direção da porta.

Samanta se virou imediatamente... não havia nada. Quando voltou o rosto... aborreceu o olhar e escutou a gargalhada do menino... depois que passou o dedo sujo com molho no nariz dela.

— Tá cheiroso aí? — brincou.

Ha...ha... — riu ironicamente. Usou o ar e limpou o nariz, deixando o molho sujo no ralo da pia.

Thales parou de rir e assumiu um semblante e postura militar. Samanta percebeu e entrou no jogo com uma continência.

— Soldado! Busque no armário a farinha de trigo, açúcar, o fermento biológico seco e o óleo. Na geladeira, traz uma garrafinha de água.

— Entendido, general!

A menina foi.

— Pegue também o copo medidor do armário em cima da pia!

— Sim, senhor!

Trouxe tudo.

— Lave a tigela e seque, por favor.

Não lavou. Fu... Shi usou magia, tirou toda a sujeira do molho de tomate e descartou no ralo da pia.

— ...Isso serve.

Ela abriu um sorrisão, olhos fechados. Uma risadinha sapeca quando viu o semblante meio confuso e surpreso do rapaz.

Hum... não sei se só duas vão dar, mas a gente faz outras se continuar com fome.

Ela balançou a cabeça concordando.

Uhum!

— Coloque cinco, zero, zero gramas de farinha de trigo na tigela — ordenou com tranquilidade, mas notou o que disse ao ver o rosto dela com dúvida. 

— "Cinco, zero, zero"? — ela riu. — Por que fala números assim?

— ...Costume. Meus irmãos mais novos falam assim, aí acabei pegando — respondeu, finalizando com um sorriso nervoso.

Aaah...

Shii colocou.

— Coloque duas colheres de sal e quatro de açúcar.

Shii-Shhi olhou-o.

— Abre a garrafinha e coloca dois, cinco, zero de água.

Tl-Plobloblossh...

— Quatro colheres de óleo.

Uhum!-Uhum! — concordou com o rosto.

— Agora, coloque duas colheres de fermento, pegue uma colher, misture um pouco e comece a sovar.

— Entendido, general! — Virou-se para a tigela, mas seu rosto mostrava uma grande dúvida. — ...General?

— Oi, soldado?

— O que é "sovar"?

Thales ficou feliz em ver aquele rosto de dúvida. O deixou aliviado. Ninguém no mundo sabia de tudo. Mesmo que fosse analfabeto, sabia algo que a menina, que não era, não sabia.

— É amassar com as mãos, soldado. Quando for a hora, eu falo, mas misture com a colher primeiro.

AH! Faz sentido!

Obedeceu.

Thales acompanhava com os olhos, tudinho. Passou cerca de dois minutos misturando. O menino deu uma atenção para o brigadeiro e notou que já faltava pouco para o ponto.

— Agora use as mãos. Pegue a massa e vá amassando ela no fundo, sem parar. Amasse bem, sem medo.

Uhum!

Passaram-se cinco minutos.

Thales observava e dava dicas oratórias de como amassar. Não queria queimar o brigadeiro, logo não parou de mexer em nenhum instante. Mas o ponto chegou, e o fogo foi desligado. Passou pela menina, que olhou-o vendo as muralhas chamadas costas.

Thales pegou uma vasilha, Risp-Risp... e despejou o brigadeiro nela, raspando a panela toda, mas ainda assim ficou sujeira... que tristeza. Pensou em lamber... mas outra coisa veio em mente também.

— Pode parar de amassar — disse, guardando o brigadeiro na geladeira, Pl antes de ir até ela.

Ergueu a tigela.

— Soldado, limpe a bancada de qualquer sujeira com sua magia, por favor.

Fu-shh... limpou e despejou o ar, levando a sujeira para a pia. Thales desceu a tigela, pegou a farinha de trigo e tacou suavemente pelo balcão. Pegou a massa e colocou por cima de um ponto de farinha. Amassou com sua suavidade e técnica. Samanta observava-o trabalhar com as mãos... Parou.

— Aprendeu?

A menina olhou-o nos olhos sem reação.

— M-mas você não explicou nada!

— Viu? É bom, né?

A jovem aborreceu o olhar, mas assumiu a massa, tentando replicar os movimentos. Thales aproveitou o momento, lambuzou o dedo indicador com o brigadeiro que sujou a panela e...

— Soldado.

Samanta se virou... os olhos se aborrecendo mais uma vez, escutando o menino gargalhar enquanto o nariz dela assumia um tom mais escuro que o normal. O ar limpou o nariz, mas aquilo não podia ser desperdiçado. Glub! Se deliciou com o doce, seu semblante mudando para um agradável instantaneamente.

— General, deixa de ser boco, seu bobo.

O jovem ainda ria, mas mesmo dando risadinhas, pegou a panela e foi lavar na pia.

Passaram-se mais cinco minutos. Observava de pé, ao lado dela.

— Tá. Faça uma bolinha agora.

Fez... e Thales jogou um pouco de farinha de trigo a mais, enquanto a jovem dava algumas amassadinhas.

— Corte ela ao meio.

Samanta ergueu o dedo, e o ar rodava-o como um furacão de lâminas. Passou no meio da massa, dividindo-a e, sem ordem, amassou, fazendo duas bolinhas.

— Muito bem!

A jovem abriu um sorriso meigo enquanto finalizava-as, olhando-as redondinhas em suas mãos.

— Coloque na tigela e pode ir tomar seu banho.

Olhou-o.

— Quê? Mas... ué?

— Essa massa não precisa descansar. Mas o molho ainda não está pronto. Vou deixar mais uns... — Se perdeu. Não queria falar números soltos. — Éhh... mais uns minutinhos. Mas relaxa, é você que está fazendo, não vou fazer nada enquanto estiver lá dentro.

Ela estreitou o olhar, mas abriu-os de repente.

— ...Tá.

Schsh... pegou a sacola ecológica e saiu para o banheiro.

— Já volto então!

Thales viu-a sair. Olhou para a tigela, pegou um pano e tampou, para não ressecar a superfície enquanto deixava aquilo descansar. Procurou por um rolo e encontrou. De madeira, sem muito frufru, apenas madeira.

Achou dois discos de alumínio que pareciam muito para pizza, e isso quebrou muito o galho... já deixou tudo preparado para quando o molho estivesse pronto.

— IA, acha que falta muito pro molho ficar pronto? — murmurou.

— Depende do quanto quer que incorpore. Seria legal deixar em fogo baixo por três horas, mas por volta de uma e meia também fica interessante.

— ...Não tenho esse tempo.

— Como está, ainda está um pouco ralinho. Não quer dizer que não está bom, mas, caso queira usar o restante do molho para outras finalidades, como um macarrão, não ficaria legal.

— Eu tô fazendo uma pizza! — exclamou em murmúrio... Começou a discutir com uma máquina.

— Ok. Coloque o forno para pré-aquecer em um, oito, zero graus e, quando Samanta retornar do banheiro, desligue o molho que, da forma que está, já está bom.

— Obrigado.

Titititiburn...

Samanta demorou cerca de oito minutos para sair do banheiro. Quando Thales ouviu a porta, desligou a panela e retirou com uma colher os cheiros verdes amarrados no barbante que deixou para pegar um gostinho e cheiro.

Quando olhou para o lado da sala, viu Samanta surgir... o avental na mão. O cabelo estava seco, logo, estava mais liso que cacheado e longo... se perdeu um pouco olhando-a. Samanta acabou ficando um pouco constrangida, tentando manter-se sóbria, sem corar de vergonha.

— Entããão...?

Thales balançou a cabeça, saindo do transe.

Ah. Éeeh... Já deixei o balcão no jeito. Pega as massas e use o rolo para abrir.

A menina virou o rosto, a vergonha tentando lutar com a força que fazia para parecer natural. Estendeu o avental. Thales segurou, e a menina se virou de costas.

— Amarra pra mim, general...

Thales corou. Os lábios serrilhados mantando a postura. Colocou e amarrou na cintura. Os dois segurando os rostos travados. Samanta achou o rolo de madeira e segurou sobre uma das duas bolas, que cresceram levemente pelo descanso... mas ficou perdida.

— Como faz? — murmurou sem olhá-lo.

Thales assumiu na mesma vibe, mostrando um pouquinho de como se abria olhando apenas para a massa. Logo deu vez sem dizer nada a princípio. A menina, que não se perdeu no braço do jovem e, principalmente, nas mãos, conseguiu replicar.

— Não precisa ser um círculo perfeito. Deixar um pouco oval ou coisa assim fica rústico, grosseiro, é legal!

Uhum... — murmurou em concordância, mas as duas massas ficaram em um círculo perfeito de bom. A jovem virava e amassava, virava e amassava, com suavidade, carinho... amor. Assim como foi mostrado, assim como Thales aprendeu na Bahia.

O menino pegou o brigadeiro na geladeira, mas esqueceu de um pequeno detalhe... que tentou resolver de outra forma.

— Soldado.

— Sim, general?

— Já viu aqueles sacos de confeiteiro? Para facilitar colocar os negócios lá?

Uhum.

— Éeeh... — deu uma risadinha. — Eu esqueci de comprar. Consegue usar sua magia para colocar o brigadeiro em linha nas bordas?

— Consigo. Mostra para mim onde.

— Tá.

Thales viu o brigadeiro começar a voar e achou muito legal. Sua cara de besta olhando aquilo, a menina rindo um pouco, os olhos dele brilhando. Guiou-a pela pizza que seria calabresa e por metade da de margherita. Ensinou-a a fechar a borda recheada, a dobrar de forma suave e bonita... uma dança, artística.

As pizzas começaram a ser montadas.

Thales mostrando com suavidade, mostrando que aquilo era arte, era uma dança que tinha que sentir cada passo, cada passar de concha cheia de molho. Cada soltar de muçarela sobre. Cada uma das rodelas de calabresa, das contadas azeitonas pretas e das inúmeras cebolas... que foi obrigado a colocar por conta da menina que gostava tanto.

A margherita entrou em cena. O molho sendo colocado como uma piscina sendo cheia. A muçarela de búfala sendo posicionada em cinco pontos, como uma flor, uma estrela... bloquinhos maiores, não ralado como colocou na calabresa. Pegou alguns tomatinhos cereja da geladeira, cortou-os ao meio e completou o quadro culinário.

Sobre os discos de alumínio, os dois colocaram as pizzas para assar. Ambos vendo-as através do vidro. Ambos ansiosos. Ambos curtindo o momento. Thales não sabia o tempo em minutos de deixá-la lá, e perguntar para a IA seria estranho... como iria explicar?

Logo deixou para o olhômetro. Quando estivesse douradinha nas bordas... seria o ponto.

Os dois ficaram no sofá. Conversas rasas, descontraídas. Nada muito pessoal e nada muito profundo. Os dois se sentiam tranquilos, mas também meio nervosos. Não queriam deixar o silêncio prevalecer. Era desconfortável... mas o silêncio era inevitável. Não precisavam estar se falando a todo instante para mostrar ao outro que se importava ou coisa do tipo.

As pizzas ficaram prontas alguns minutos depois, foi então que o menino lembrou do suco. Fez rapidinho e o momento veio. Os queijos derretidinhos, as calabresas na cor perfeita. Thales adicionou algumas folhas de manjericão fresco na margherita e os dois provaram juntos. Os rostos de satisfação... o queijo se esticando como se fosse infinito.

Comeram... aproveitaram as pizzas maravilhosas e Thales a elogiou, contando meio por cima o tempo que demorou para conseguir fazer sua primeira pizza.

Já era quase 13h... Samanta se levantou.

— Vou ir estudar mais um pouco... Então... — olhou para o lado, não conseguia manter contato. — Eu adicionei o seu número de celular no meu. Peguei pelo grupo da sala... Posso te mandar mensagem? — Corou um pouco... mas Thales não estava entendendo quase nada.

"Grupo?"

— ...Eeeh... Pra gente conversar um pouco... e tal. Se quiser também ir comigo pra academia todo sábado e domingo. Às vezes vou dia de semana também...

Thales se levantou.

— Quero sim!

Uhum... — murmurou bem acanhada... não conseguiu criar coragem para um beijo na bochecha mais uma vez. — Tchau então... te vejo amanhã na sala.

— Tchau, soldado!

Ela riu.

— Tchau, general!

Pegou a sacola ecológica que havia esquecido dentro do banheiro e foi embora. Thales a viu fechar a porta... seu sorriso feliz... deu três segundos. Queria ter certeza de que não ouviria.

— IA! Preciso aprender a ler logo! — murmurou em grito, o sorriso saindo para uma feição desesperada.

— Ok, Sr. Thales. Vamos continuar.

Samanta chegou nos elevadores. Entrou no segundo e clicou no seu andar. O primeiro estava fechado, descendo... Quando a porta dela se fechou, o outro elevador se abriu. Nino saiu caminhando com as mãos no bolso.

Snif-Snif... Hãm? — murmurou após farejar. Sentiu o cheiro de Thales misturado com outro que não se lembrava. Chegou na porta, seu olhar apático. Dicou, um, um, um, um... não abriu. — Quê?


Toc, toc...

Thales começava a ir para o quarto quando escutou a porta.

"Esqueceu algo...? Ué? Mas ela sabe a senha." Foi até lá e abriu... Nino o olhava. Não era o semblante apático, era um meio julgador, curioso.

Entrou, abrindo sua própria passagem.

— Trocou a senha? — questionou... sentindo o cheiro de outro humano dentro daquele lugar. "Alguém estava aqui?" Na pia, via dois copos, dois pratos, dois de cada coisinha.

— T-troquei... — murmurou meio sem saída, mas não querendo contar da menina.

Nino o olhou com um tom de preguiça, e, mesmo que aquilo fosse o normal do jovem, aquele olhar era sempre intenso para Thales.

— Por quê? — a voz saia arrastada, mas não propositalmente.

— A outra era muito simples. Queria uma mais difícil, sei lá...

— Colocou o quê?

— Dois, quatro, zero, sete.

"Parece uma data. Um aniversário...? Talvez." — Ah... — Virou-se e ignorou tudo a princípio. "Se não quer falar, não vou forçar." Caminhou rumo à sala, indo direto no videogame.

— Nino...

Olhou-o, vendo o humano não conseguir olhá-lo no rosto.

Hãm?

— Vamos combinar de jogar só de segunda a sexta?

— Quê? Por quê?

— Eu tô... estudando fim de semana.

— Estudando o quê?

— ...Sou analfabeto. Tô estudando português — assumiu, rosto meio triste. Esperava possíveis julgamentos ou até zoações que poderiam machucá-lo. Aquilo era algo que o fazia sentir-se mal, sentir-se menor que os outros...

— Estudando como?

...Mas não foi isso que recebeu.

— ...Pelo... pelo celular! — Ficava sem respostas, a cabeça dando branco a cada pergunta.

— Como, se você é analfabeto?

— ...

Nino mantinha o olhar. Thales travou. O Primordial só perguntava e perguntava... era difícil demais pensar rápido daquela forma.

— A IA me ajuda... — assumiu... fechando os olhos, mas... obteve silêncio. Os abriu. Nino o olhava, mas com a cabeça tombada para o lado, rosto e olhar nitidamente confusos, procurando pela resposta para o que ouviu.

— ...

— IA é uma inteligência artificial que a Srta. Mirlim deixou comigo. Ela responde minhas perguntas e tá me ajudando a aprender a ler e escrever... — disse com um tom quase de medo, de vergonha.

"'Inteligência artificial'?" Veio em mente as duas palavras, uma ferramenta que viu no tempo que usou um pouco do celular que, desde que recebeu, nunca mais tocou. Era completamente inferior à que viu no aplicativo de pesquisa, mas foi suficiente para Nino voltar a cabeça para o lugar, tendo um pouco de conhecimento do que era aquilo que o menino dizia.

— Entendi.

— Pode ser então...? Dia de semana a gente zoa, joga e tal... mas sábado e domingo eu posso ficar de boa pra estudar?

— Tranquilo — murmurou, mãos nos bolsos, caminhando na direção da porta. — Vou à escola. Sei lá. Encher o saco da Alissa.

— Hoje é domingo.

— Tô ligado. Mas ela trabalha 7x0. Todos os dias tem que tá lá, então eu aproveito pra irritar ela — comentou com um sorrisinho. — Vou lá então. Amanhã a gente se vê.

— Vai lá! Falou.

— Falou.

Saiu, o cheiro no nariz... a vontade de descobrir quem era. O olhar apático voltando. Era sua vez de dar uma saidinha de noite para se divertir matando alguém. Mas estava sem vontade de fazer isso... curioso.

Thales fechou a porta e correu para o quarto... Os nanorrobôs materializaram o caderno com todas as anotações do dia passado. Seria mais uma noite virada estudando. Não que só dois dias sem dormir pesasse em alguma coisa nas costas dele.

Passou um dia. Uma semana. Um mês. Um ano... dois anos.

Todos os dias... uma cena se repetiu... e Nino acabou percebendo tudo logo na segunda-feira, quando entrou, seguindo para a sua cadeira, e passou por Samanta. O cheiro... o cheiro era dela. Olhou-a de canto enquanto seguia até o fundo. Tinha certeza, e essa certeza foi confirmada com os olhares... olhares que os dois apaixonadinhos não conseguiam esconder.

Todos os fins de semana iam juntos para a academia e depois para o apartamento do menino, sempre cozinhando algo juntos, brincando e se divertindo sozinhos. O beijo na bochecha virou algo comum. Thales não queria apressar nada, e isso acabava deixando Samanta mais confortável, embora por parte quisesse alguma atitude.

O tempo foi passando.

O menino já conseguia trocar mensagens sem o auxílio da IA, ficando avoado algumas vezes no meio da bagunça que fazia com Nino na escola, deixando o amigo na mão, levando cocão de Alissa sozinho porque o garoto esquecia de tudo da vida ao receber uma mensagem da amada.

Tuc-Tac-Tuc-Tac-Tac!

O som do crânio do garoto sendo feito de pandeiro ao fundo.


23/07/2022.

Era um domingo comum, mas também era o domingo um dia antes do aniversário de 17 anos da garota. Nem se lembrava. Nunca foi algo que gostou, mas naquela manhã, com seu look de academia e suas roupas na sacola ecológica para o apartamento do menino... não esqueceria mais.

Colocou a senha e entrou.

— Surpreeesa! — exclamou Thales, com um sorrisão ao lado do balcão.

O aniversário caiu em uma segunda-feira, logo não iriam se encontrar fora da escola... Thales queria entregar a ela uma linda e gostosa surpresa.

Fez três pizzas diferentes: margherita, calabresa e portuguesa. Todas com borda recheada de sabores diferentes... menos a margherita, só metade dela foi nerfada. Também preparou um sucão de maçã, além de quatro hambúrgueres diferentes que a menina ensinou ao longo dos meses.

Batata rústica era a vontade. A maionese verde, o ketchup caseiro. Em meio a tudo, um bolinho com uma vela do número 17 acesa... Um bolinho camuflado, tipo a calça preferida da garota.

Samanta ficou espantada. Um sentimento que não sabia descrever, mas entrou. A porta fechou. Caminhou. Foi até ele que iniciou algumas pequenas palavras que esperou. Pois não sabia o que dizer, mas falou:

— O bol...

Mwah!

Não falou... não conseguiu.

Samanta ficou na ponta dos pés e os braços abraçaram o pescoço rígido do rapaz. Thales fechou os olhos assim como ela. Suas cabeças paradas. As línguas nem entraram em cena. Não sabiam como beijar. Não sabiam fazer nada daquelas coisas... Mas... os lábios se juntaram, o jovem abraçou-a na cintura, as mãos comportadas, não desceu, só se apoiou para aproveitar o momento.

Os lábios se afastaram. Os rostos quentes, os olhares doces, meigos.

— Obrigada — sussurrou arfadamente com ternura.

— ...Me dá mais um? — pediu com a voz pidona, quase de choro.

A jovem riu, Mwaah... e os lábios se juntaram mais uma vez.

Ainda não namoravam. O pedido ainda não havia chegado. Mas o contato mais íntimo evoluía a cada dia. O beijo na boca substituiu as despedidas na bochecha. O beijo de língua veio... mas as bocas virgens não sabiam muito como executá-las.

— Vamos aprender juntos...

Uhum... — murmurou ela, Mwaaamnh... sentada no colo do menino, beijando-o.

Algo que o excitava... de fato. Às vezes ela sentia bem forte embaixo, era legal, ria como boba, mas não iam para o próximo estágio. Ainda não era hora. Não se sentia pronta.

Os beijos com alguns toques mais vulgares pelo corpo eram o máximo que deixava acontecer, mesmo que não soubesse a dificuldade para ele, que era deixar aquilo mole depois que ela ia embora.

Com o passar do tempo, o interesse dela pelas coisas que ele gostava ia aumentando. Começaram a jogar juntos, jogos e mais jogos, sempre na mesma vibe divertida da primeira... paixão? Sim. Da primeira paixão verdadeira.

...Mas isso não foi maravilhoso para todos.

Nino percebeu que, em todos os jogos de campanha coop que jogava com Thales, o save de repente era excluído... corrompido. Entrava e não estavam na mesma área, no mesmo lugar em que pararam. Mas não era como se estivessem mais à frente, era bem mais atrás na história.

Nino sempre o olhava com o olhar estreito, deixando bem nítida a desconfiança e julgamento... mas Thales fingia demência. Não o olhava e só seguia em frente, trocando de assunto, zoando de alguma forma.

Nino sabia muito bem o que acontecia. Mas Thales acreditava fielmente que ele e Samanta eram um segredo até então. Estando com 20 e ela 17 anos, sentia também um leve receio de julgamento alheio a um possível relacionamento dos dois.

Nino voltou o rosto para a TV.

"Quase se comem em olhares na sala e agora tá nessa. Vai esconder isso até quando?" murmurou arrastadamente em seus pensamentos, só jogando o game, passando por onde já haviam passado.

Deixou quieto.

Deixou Thales seguir com esse "segredinho" mal escondido.

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