Dançando com a Morte Brasileira

Autor(a): Dênis Vasconcelos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 115: Camaleãozinho

23/07/2021.

HAARFF!

Arthur acordou todo suado, sentando-se imediatamente. O desespero em seu olhar... até parecia que tinha tido um pesadelo... O dia estava claro, uma manhã de uma sexta-feira qualquer. Mesmo que não usasse despertador, depois que notou que não estava mais em um dia onde o sol não iluminava, lançou a mão esquerda até o criado-mudo e puxou o celular.

07:17.

Arfava profundamente. Paf... deixou-se cair de costas na cama, antes de se levantar para mais um dia.

— Nunca tive um sonho tão realista... Jesus amado — murmurava enquanto fazia seu ritual robótico de sempre pela manhã.

Vestido com roupas leves, arrumou a cama com perfeccionismo; depois, foi até o guarda-roupa, Vuup e pegou suas peças sociais que usaria no dia: uma blusa azul-escura comprida e uma calça em um tom bem escuro de bege, quase preto. Assim como os sapatos, que não podiam faltar.

Antes de sair do quarto, fechou a porta de vidro da sacada. Seu tio o ensinou que sempre que saísse, deveria fechar, para que, caso chovesse, ficasse tudo bem por lá... mas antes:

Vrun!

Lançou o rosto rapidinho para fora, para ver se escutava algo, e, ao escutar o vento e uma moto ao longe, ficou mais aliviado. Saiu e foi direto para o banheiro. A toalha já o esperava. Tirou a roupa e a dobrou pela metade, colocando na arara, antes de ir ao chuveiro que não estava lagado desta vez.

Terminou em exatos cinco minutos. Se vestiu e passou mais dez se arrumando no espelho. Dobra por dobra, tudo tinha que estar perfeito, assim como via seu pai vestido nas fotos e vídeos. Tudo, tudo era contado. Tudo tinha que seguir uma dedicação, uma disciplina que, na cabeça do jovem, era necessária para honrar as memórias do pai.

Quando finalmente saía, ia até a cozinha, onde sempre deixava o que comeria pronto — na geladeira — na noite anterior. No dia de hoje, era uma banana e uma maçã picadas, com açúcar, em uma vasilha.

Nhami-Nhami!

Comeu bem rápido.

Shhuuaa...

Lavou o objeto, o secou com um pano, o guardou e depois secou a pia... O apartamento diariamente era mais limpo que ele, já que os sapatos pesavam na balança por precisarem passar por chãos sujos.

Correu até o banheiro ainda com o pano em mãos. Fricsh-Frisch... Ptu! Escovou os dentes, Shuuaaa... lavou a pia e secou com o pano. Deixou o tecido dentro do cesto de lavar roupa e finalmente foi até a porta... mas, antes, parou na bancada, onde deixava a foto do esquadrão inteiro do seu pai.

Vendo-os, o menino sorriu e disse com firmeza:

— Vou ser como você... Eu prometo que vou dar o meu melhor. Prometo que vou me dedicar e me tornar alguém que você poderia se orgulhar, papai.

Saiu... O peso de fechar aquela porta todos os dias era o mesmo.


Chegou na escola tranquilo. Caminhava de boa, vendo os corredores cheios e alunos já indo para suas salas, como ele mesmo. A sala de aula de Alissa ficava um corredor depois do que a mesma tinha um escritório particular, e era lá... que Nino e Thales, naquela bela manhã... decidiram aprontar.

Pa-Pa-Pa!

Nino deu três tapas altos na porta da mais forte, e os dois iniciaram uma corrida para sumir de lá... mas não deu tempo. Arthur havia chegado no corredor, na direção que os dois corriam naquele exato momento.

VOM!

Ao ver a porta de Alissa se abrindo com grosseria para dentro, Fush! deu um passo para trás, se escondendo no corredor para não ser assassinado junto. A mulher parecia um ogro: corcunda, dentes cerrados e quase com espuma.

Quando o som da porta veio, Thales e Nino ficaram pálidos. Mal tinham dado um único passo correndo. Nino não usava o máximo de sua velocidade; não queria abandonar o amigo para trás. Mas... foi o primeiro. A alma dos corpos saiu quando Nino foi forçado a parar pela gravidade, logo sendo arremessado pela área externa, indo na direção da lua.

AAAAAAAAAAAAaaaaaa...!

A voz foi diminuindo conforme o "míssil humano" sumia... Thales virou o rosto cheio de choro desesperado para frente. Conseguiu chegar onde Arthur se escondia — Arthur o olhou assustado... Thales mais ainda — mas apenas até lá. O corpo parou, e, da mesma forma que seu amigo, também foi lançado ao céu pela gravidade, da mesma forma que um profissional de lançamento de dardos arremessava um em uma olimpíada.

AAAAAAAAAAAAaaaaaa...!

Os olhos de Arthur nem piscavam. Muito curioso, decidiu olhar de fininho no corredor. A ponta da cabeça surgiu, logo um olho viu Alissa... abrindo com ferocidade os olhos, olhando-o.

— ATÉ VOCÊ, MOLEQUE?!

...Não deu tempo de se explicar.

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!

Saiu voando na mesma direção. Uma velocidade tamanha que não conseguia mover os braços nem as pernas. Sua boca escancarada em grito, o vento forte no rosto o dobrando inteiro, bochechas de esquilo, nariz bem balãozinho.

O "dardo humano" foi perdendo velocidade, sua cabeça indo reta para cair em um lago chamado Lago Cruz de Malta, no Parque Jardim da Luz... a 4,30 km da escola. PLUSH! mergulhou fundo... estranho, aquele lugar não era tão fundo assim.

Desesperado, nadou para cima nas águas esverdeadas.

Lodo?

Saiu e apoiou os joelhos, ficando de quatro sobre a grama verdinha. O lago era em forma de cruz, circular; as bordas eram brancas e havia pequenas estátuas da mesma cor em cada uma das extremidades.

Harf-Arf!

Arfando e não acreditando que estava vivo... escutou uma risada alta e, ao olhar para frente, viu os dois culpados do mesmo ter ido parar lá, rindo como dois idiotas, imitando Arthur gritando enquanto caía, apontando para o novo integrante completamente encharcado.

— Não tem graça! Destruíram a minha roupa nova! — exclamou furioso... Os dois o olharam em silêncio, se entreolharam e voltaram a rir da cara dele.

Arthur ficou ainda mais irritado e seu semblante não escondia, mas, de repente, abriu-o em susto, quando viu Thales ficando sério, começando a se erguer, e Nino surgindo diante de si, criando uma lâmina de pedra, que se formava como lava e queimava ao mesmo tempo em chamas vermelhas.

Arthur se jogou para trás erguendo a mão, achando que Nino fosse atacá-lo por alguma razão... mas o menino de preto passou ao seu lado, e Arthur então viu, atrás de si, uma anomalia de 3,10 metros de altura que tinha surgido do nada. Era rosa... Uma anomalia que já havia sido registrada anteriormente.

Nome registrado: Boto-cor-de-rosa. Massacre 1. Os surtos referentes a essa anomalia aconteciam mais na região amazônica. Mas não apenas no Brasil, mas sim em todos os países por onde a floresta amazônica passava.

O surto, quando sentiam fome, era absurdo. Sempre viviam em grupos com mais de 20 membros, porém acontecia uma disputa com os cujos mais bonitos do bando. A beleza era ditada pela quantidade de gomos que havia no tanquinho das criaturas. Quanto mais numerosos, mais era a beleza para eles, embora o restante do corpo fosse horrendo.

Ao desenvolverem seus poderes de se transformar em uma figura masculina muito bela e charmosa, uma competição acontecia onde quem engravidasse mais mulheres vencia, e assim, quem vencesse, devorava cada um dos membros do bando para ficar mais forte.

A mulher ganhava barriga em um único dia. O ser que crescia dentro dela era uma nova anomalia, que ia devorando o receptáculo por dentro, sem que ela pudesse fazer mais nada, pois sua mente era a primeira a se corromper, logo virando uma espécie de zumbi, que ia até o lago ou rio mais próximo e se afogava, até morrer com mais um Boto-cor-de-rosa da nova geração que iria nascer.

Mas nem sempre apenas engravidavam. Quando sentiam muita fome, era comum transar com as mulheres e logo em seguida revelar sua verdadeira forma para assustá-las e devorá-las enquanto gritavam de desespero.

Assemelhando-se a um golfinho amazônico: o bico fino e longo, mas com dentes tortos e podres que mal permitiam fechar a boca. A pele do rosto era derretida, uma deformidade grosseira que deixava um de seus olhos sempre bem mais baixo que o outro... mas aquele ali era diferente, estava machucado.

Geralmente possuíam um único metro de altura, e, quando usavam o poder, se transformavam em um homem, ficando com 1,90. Mas aquele era grande demais. Em seu tanquinho tinha apenas sete gomos. Nunca seria um dos participantes da competição. Já nascera para ser alimento para outro ficar mais forte, porém ele não aceitou.

Tendo o canibalismo já presente em sua espécie, aproveitou enquanto o bando dormia para matá-los e devorá-los um por um... mas um acordou e tentou lutar; porém não conseguiu vencer. Foi acordado com um ataque, já estava debilitado, e, mesmo que tivesse conseguido ferir o agressor, morreu e virou nutrição para a aberração que cresceu mais dois metros.

A anomalia se ergueu do fundo de onde destruíram e afundaram para viverem escondidos, com medo e querendo se defender... mas nenhum ali era gay. O poder só funcionava em mulheres, mas gays também eram atraídos, mesmo que apenas para servirem de alimento.

Nino não via um homem tentando sensualizar; via uma aberração e foi logo a cortar.

Shk!

Quando Thales finalmente firmou os pés para avançar e salvar Arthur, Nino já havia rasgado aquela coisa na diagonal, indo certeiramente no coração, e aquilo se abriu, revelando diversos pedaços e até mesmo outras anomalias inteiras semelhantes, cheias de sangue rosa com líquidos gosmentos e fedorentos de cor branca.

Plashhs...

Eram muitas.

Algumas caíram na água e ficaram boiando com o corpo da maior; já outras caíram na grama, próximas de Arthur, que viu aquilo com um misto de nojo e curiosidade.

— É um Boto-cor-de-rosa!

Nino já havia desfeito a espada, estava ao lado de Thales quando os dois ouviram aquela entonação alegre, bem estranha. Ambos o olharam de forma julgadora.

— Quê? — disse Nino.

— Eu gosto de ler relatórios e anomalias catalogadas no site da ADEDA, e já li sobre essa. Ele finge ser um homem bonito para atrair mulheres — respondeu com entusiasmo, olhando a anomalia morta.

Nino e Thales se olharam, dando uma risadinha com os neurônios pensando da mesma forma.

— O cara pesquisa por boto rosa com tanquinho na internet.

Ambos riram... menos Arthur, que os olhou com reprovação.

— Não levam nada a sério — murmurou, cansado e descontentamento, mas os dois não ligaram e continuaram rindo.

Arthur puxou o celular para ver onde estavam no mapa. Logo pegou o endereço, tirou uma foto da anomalia e mandou uma mensagem com as informações para a Limpeza ir buscar as carcaças de lá. Caminhou até os dois idiotas. Seu rosto mostrava vergonha, mas ele tinha que manter sua classe e educação:

— Obrigado por me salvar... Mas não muda o fato de que estamos longe pra dedéu da es...

— Pera? O quê? Longe pra quê? — perguntou Nino, revoltado com o que ouviu.

Nem Thales aprovou aquele vocabulário, e o menino odiava palavrões e nunca disse um na vida. Arthur aborreceu o olhar e só continuou reclamando:

— Por culpa de vocês, eu estou todo molh...

Burn!

Arthur e Thales pareciam que tinham visto a morte. Olhares arregalados depois que, do nada, uma explosão de chamas vermelhas envolveu os três, secando-os e removendo cada sujeira de suas roupas sem que nem sentissem calor.

— ...Seu... Seu controle mágico é incrível... — Não conseguiu deixar de elogiar o menino que xingava segundos antes.

— Eu sei — respondeu ele, sem modéstia.

Arthur deu alguns passos, indo embora.

— Temos que ir logo. Já vai dar 8h e vamos atrasar bastante.

— Quê?

Arthur parou e virou-se para Nino, que mantinha um sorriso estranho no rosto. Chegou em Arthur e abraçou o pescoço do menino com um braço.

— Quem disse que vamos para a escola hoje?

— Quê? — dessa vez, Arthur que disse.

— Você está sob uma nova jurisdição. Hoje nós três vamos nos divertir pela cidade!

— Você nem sabe onde estamos!

— Óbvio que sei.

— Onde então?!

— Se eu acertar... você vem, caso eu erre, você pode ir. Fechado?

Arthur sorriu confiante.

— Fechado.

— Estamos em Bom Retiro, no Parque Jardim da Luz.

Ficou em choque.

— Como sabe?!

— Só sei. Agora vamos!

Nino saiu empurrando o jovem e Thales seguiu... Quando Arthur virou para a mesma direção, viu que atrás de si tinha uma placa com o nome do parque e também do distrito. Aborreceu o olhar, mesmo que Nino nem tivesse se dado ao trabalho de ler a placa.

Seguiram pelo sul do parque e saíram na rua Praça da Luz. Viraram à esquerda. Nino andava de olhos fechados como um idiota. Thales seguia parecendo um mafioso de filme de comédia, e Arthur corcunda, cheio de preguiça de segui-los por um dia.

— Poderi...

SHHI!

SHHI!

Os dois idiotas colocaram um dedo nos lábios e mandaram o menino ficar em silêncio juntos.

— Só curta esse momento — responderam e voltaram a andar.

Harrff...

Continuaram "curtindo o momento". Atravessaram a Av. Tiradentes, seguiram pela R. São Caetano, dobraram para a R. Dom Antônio de Melo, e Nino chegou onde queria e se lembrava de ver quando absorveu todas as informações do mapa do Brasil... uma sorveteria.

Os dois entraram ainda caminhando como imbecis.

Arthur olhou, e não ficou zangado.

"Ah, sorvete é legal!" Entrou... e presenciou os dois já com montanhas de sorvete em cima de um exodia formado com cestas de casquinha. Assustou-se, assim como a mulher que viu os dois imbecis enchendo com todos os tipos de granulados, doces e coberturas possíveis antes de irem até a balança.

Arthur pegou uma cestinha humilde com poucas bolas de sorvete de frutas e se juntou na mesinha quadrada, de três lugares, na parede de cerâmica branca, com seus companheiros do dia. Afofou sua bunda na cadeira de grades preta e assento vermelho e viu que as montanhas já haviam virado montinhos.

Terminaram e foram até o caixa...

Ish... esqueci o meu cartão — lamentou Nino.

— Dá pra pagar com o celular no aplicativo do banco — Arthur deu a solução.

— Não uso celular.

Arthur aborreceu o olhar.

— Prove.

Nino afundou as mãos nos bolsos e as puxou, revelando que não havia nada lá. Paf... deu um tapinha no ombro do rapaz, mantendo um sorriso ordinário no rosto.

— Te esperamos lá fora. — Saiu com Thales, e Arthur estreitou os olhos, antes de...

— Deu 390 reais, garoto — comentou a caixa.

Arthur olhou-a e tirou o cartão da carteira.

— Débito, por favor.

Saiu... viu os dois apoiados na parede como mafiosos. O menino piscou sem entender e os dois jogaram o rosto, indicando a direção e que era para seguir. Arthur, mais uma vez, voltou a andar sem saber para onde ia com os dois idiotas que o faziam passar vergonha com tantos olhares que roubavam na rua, não só pela forma de andar, mas também porque Nino havia se tornado muito famoso quando viralizou.

Voltaram para a R. São Caetano e subiam sem rumo. Nino procurava uma viatura da polícia. Isso não tinha como saber onde estava pelo mapa que viu ano passado. Queria de propósito fazer Arthur passar vergonha e teve a ideia de fazê-lo abaixar as calças de um policial militar.

...Ria em sua mente.

"Vai ser bem simples. Desafio ele em um pedra, papel e tesoura, e se ele ganhar, vamos embora. Se ele perder, me obedece e abaixa as calças do policial. Ele é bem fraco. Consigo ver o que vai jogar para jogar o que mata sem ele nem pensar."

Caminhavam pelo lado direito da rua... e foi então que, antes de passarem a faixa de pedestres da R. Possidônio Inácio, Nino escutou uma voz, e olhou de canto para a esquerda. Um olhar afiado... sentia ódio.

Na frente de uma loja vermelha, uma menininha estava diante de um velho estranho com o corpo curvado na direção dela.

— Tá perdida, mocinha? — disse de forma suave. Seu rosto inteiro sorria, embora de olhos fechados. Cabelo branco, calvo, incontáveis rugas.

Nino observava, e viu a menina balançando a cabeça negativamente, meio assustada, não respondendo com palavras. A mãe logo saiu da loja segurando o braço da filha.

— Lorena! É para ficar perto da mamãe! — deu uma pequena bronca, curvada e próxima da criança.

— Diculpa, mamãe!

A fofura a fez aliviar o rosto imediatamente. Logo ergueu o corpo, segurando-a no colo e olhou para o velho.

— Obrigada por não deixar ela sair por aí — disse com gentileza.

— Por nada — respondeu.

A mãe entrou novamente na loja de roupas... e um choro bem baixinho, o velho ouviu. Vinha de trás, e o mesmo foi na direção. Havia um edifício de dois andares, branco, e entre ele e a loja vermelha, um beco com uma porta de grades também vermelha... que estava aberta para ele.

Lá atrás, uma criancinha chorava com as mãos no rosto. Carros passavam na rua, mas nenhuma pessoa na calçada naquele instante. Deu alguns passos. O beco estava mais escuro que o normal. Era dia, não fazia sentido, mas não precisava.

Se aproximou mais um pouco.

— Tá tudo bem, meni...

CRUNCH!

A criança se deformou como um monstro em um pesadelo grotesco, o engoliu e matou com uma mordida, antes de desaparecer em fumaça preta.

Burrrp! — Nino soltou um arroto alto, e os dois companheiros abanaram as mãos na frente dos rostos, enojados pelo fedor.

— Meu Deus... Comeu um defunto, foi? — Thales brincou.

— ...Tipo isso — Nino respondeu.


Caminharam um pouco, mais uns minutinhos, e chegavam em uma ponte sobre o Rio Tamanduateí. Entretanto, Nino achou sua próxima forma de constranger o menino. Descendo a R. Pedro Álvares Cabral, três garotas viravam a esquina.

— Gosta de menina, Arthur?

O menino corou, olhando-o com pressa de confirmar.

— Óbvio!

— Já ficou com alguém?

Corado, desviou o olhar.

— ...Não ligo muito pra iss...

— Segure ele! — Nino fechou os olhos e ergueu o indicador como se tivesse uma ideia. Thales segurou Arthur com um agarrão de braços por trás. O menino ficou assustado e, quando viu as garotas vindo e Nino nitidamente indo abordá-las, parecia um pimentão cozinhando no suor.

— Bom dia, garotas... Se me dão licença, meu querido companheiro aqui nunca deu um beijo na boca. Eeee... — Nino falava com segurança. Ergueu a mão e deslizou os dedos na única mecha rosa do cabelo preto da garota do meio. — ...ele achou você muito bonita. Acha que aquele garotão ali merece um beijinho e o seu número?

As três olharam para Arthur e o menino preferia a morte do que aqueles olhares desconfortáveis. Voltaram o olhar para Nino, e a menina abordada em questão respondeu:

— Ele não. Mas você eu quero — respondeu com um sorriso sem jeito, meio envergonhada, vendo a reação das amigas zoando-a de maneira leve.

...Arthur já havia morrido; aquilo era só uma casca vazia, nem mais corada, e sim pálida.

"Nunca mais repita isso... inseto. Que nojo." pensou Nino, olhando a humana. Não tirou o semblante confiante e meio atacante do rosto, mas, não querendo sentir-se mais enojado tendo contato com uma humana, deu outra proposta: — Claro... Mas apenas se beijar o meu colega primeiro.

A cor de Arthur voltou, e não era algo que o jovem queria.

As meninas olharam-no, e a abordada confirmou com a cabeça para Nino. Thales deu alguns passos, e Arthur se sentia um condenado à guilhotina. A menina se posicionou na sua frente. As amigas olhavam sorridentes, brincando com a cena.

Assustado, viu-a fechar os olhos e vir com os lábios. Aterrorizado, com medo de fazer errado. Não querendo, pois queria esperar o momento certo, especial, com quem amava. O menino começou a tremer. Os lábios da menina chegaram próximos demais, abriu-se um pouquinho e a ponta da língua chegava ao encontro...

Shuaaashh!

Não aguentou. Era muita pressão. Não conseguiria e então fugiu.

Usou magia. Seu corpo parecia que havia caído em um tanque de lubrificante. Deslizou com facilidade, mesmo que Thales tivesse segurando firme. Agachou no chão, deixando um rastro da água azul neon por onde passou. Correu e não parou.

Nino viu o fugitivo e deixou... o que queria já havia sido feito. Mas, antes mesmo da menina abrir os olhos, Thales e ele desapareceram, deixando-as lá.

— Quê? — uma das meninas disse.

A abordada abriu os olhos depois de avançar, avançar e não encontrar o jovem. Piscou sem entender e olhou para as amigas, que dividiam da mesma dúvida.


Seguiram o menino, que acreditava que havia escapado dos dois... mas não havia, não.

Harff-Rf... Por q...

— Medroso.

AAAH!

Levou um susto com os dois aparecendo ao seu lado e jogou o corpo para o lado. A rua para a qual correu era bonita, cheia de árvores, um bocado de motos estacionadas: R. Alfredo Maia. Na frente dos meninos havia um quartel da polícia militar; na rua da frente, um batalhão da ROTA.

Era o lugar perfeito para Nino usufruir do seu plano, enciumado por um jovem que só interagia com Alissa sobre coisas de atividades e aulas... Para o pequeno Primordial, isso não importava.

— Não sou medroso!

— Por que fugiu então?

— Porque eu não queria! Vocês estavam me obrigando. Acham isso legal?! — falava baixo, mas com uma entonação forte e irritada.

— Você disse que gosta de meninas.

— Não quer dizer que vou sair por aí dando em cima de todas!

Ah, relaxa. Vamos caçar um Boto-cor-de-rosa com o tanquinho bem trincado pra você, já que o seu bumbum tá pra jogo — zoou Nino, mas nem riu. Manteve um olhar apático, encarando o menino.

Arthur o olhou desacreditado.

— Isso não foi legal. Não teve graça.

— Pra mim teve.

— Mas pra mim não. Me peça desculpas.

— Por que eu faria isso?

— Porque eu me senti mal.

— Rapaz... seu bumbum deve estar piscando.

Arthur ficou irritado e avançou peitando Nino.

— Não tem graça! Peça desculpas!

Nino continuou com seu olhar apático, mas Thales entrou no meio.

— Gente, calma! Desculpa, Arthur. Pensei que iria rir, sei lá. Não pensei direito.

— Obrigado. Mas também quero ouvir dele. Peça desculpas.

Nino o olhava, cogitando:

"Mato ou não mato? Mato? Humm... Acho que ma..." Quando seu pensamento foi cortado pelo que viu no fundo, atrás de Arthur. Bem atrás, do lado direito da R. Jorge Miranda, Nino viu um camaleãozinho verde pular da sacada do edifício do Regimento de Polícia Montada 9 de Julho, em meio às bandeiras do Brasil e do estado de São Paulo, até o chão do passeio.

Aquele serzinho passou ao lado de uma mulher que vestia um vestido vermelho... e copiou a aparência da humana, tornando-se ela e saindo andando no sentido contrário, indo à esquerda de Nino.

O menino arregalou os olhos, e Arthur notou, virando-se para olhar para trás. A mulher original já não podia mais ser vista; já havia passado da esquina da direita, mas a anomalia podia, e Arthur não entendeu, virando-se para o menino novamente.

— O...

— Uma anomalia! — Nino exclamou e já ia correr, mas Arthur segurou seu pulso.

— Para de mentir!

Nino o olhou, ficando irritado. Vup puxou o braço e se desvencilhou, encarando Arthur. Thales entrou no meio mais uma vez.

— Chega! Os dois! Nino, pede desculpa logo.

— Não tô mentindo, aquela mulher não é real! Uma anomalia virou ela!

— Só pede desculpas — pediu Thales e, por puramente ser ele, Nino pediu.

— Desculpa, tá legal? Agora anda logo.

Nino correu e os dois seguiram... era tarde, a mulher havia sumido. Olharam para os lados, Arthur a viu bem ao longe, no outro lado.

— El...

— Não é ela. Aquela é a real. A anomalia copiou ela e veio pra cá — cortou Nino, irritado por ter perdido a mulher de vista.

— Gente.

Os dois olharam para Thales, que observava dois carros estacionados... dois carros iguais. Não apenas o modelo, como adesivos e placas. A anomalia escutou Nino exclamar e então notou que foi vista; logo mudou de disfarce.

— Não eram dois carros estacionados quando passei aqui.

Nino olhou e analisou.

— São iguais. — Rodeando os veículos, continuou: — Um é a anomalia.

Arthur olhou-os meio descrente. Mas também não se lembrava de ver dois carros. Falta de atenção? Os carros eram iguais. Gêmeos com mau gosto?

Nino não queria perder tempo. Estendeu a mão, e dela emanava fogo vermelho. Direcionou para um dos veículos, seu rosto mostrava que dispararia sem medo... mas não o fez. Pli! Pli! O dono do veículo chegou e destrancou-o. O carro que apitou foi o de trás... Nino sorriu.

Burn!

Uma explosão calculada aconteceu, assustando o dono do veículo real. A explosão foi controlada para não atingir o carro, mas o carro no qual queria... também não foi. A anomalia voltou à forma original e desviou do disparo, que passou e o esquentou, mas não o feriu.

Correu rapidamente.

A cauda balançava de forma fofa e desesperada. Lágrimas saindo de seus olhos esbugalhados. Seu rosto era bem expressivo, um camaleão pequeno, verde, sem nenhuma arma visual como garras ou dentes... era um Errante 1, embora nunca antes visto ou registrado. Mas havia uma peculiaridade. Era um Errante 1... mas, de uma hora para outra, podia se tornar uma Calamidade 4.

Saiu em meio à fumaça, e os três demoraram a ver, mas quando viram, Arthur teve uma reação diferente dos outros dois que avançaram; o menino ficou levemente paralisado.

"Titá...?"

A anomalia chegava próximo da curva, mesmo que no meio da rua, quando Nino surgiu descendo uma nova espada. Tink! Não usou nada além de uma espada com um leve curvar feito de pedra.

Golpeou somente segurando pela mão direita, mas uma borboleta voava à esquerda e a anomalia copiou-a, assim diminuindo o corpo, vendo o reflexo de si inteira na lâmina que brilhava como o metal mais puro já forjado.

Vul!

Ergueu um corte vertical no instante em que notou o erro, mas a anomalia assumiu uma nova forma, voava como o pernilongo que avistou mais cedo. Nino errou novamente e isso o irritou profundamente.

Zzzziu!

Mais ou menos no centro entre as duas faixas de pedestres, havia um bueiro, cuja tampa tinha um furo. A anomalia não perdeu tempo e entrou, fugindo do trio... ou achou. Lá dentro, voltou à sua forma original, mas apressou o passo, desesperado, quando um clone de Nino emergiu das sombras do lugar correndo atrás com ódio, querendo matá-lo.

O camaleãozinho corria por sua vida. Seu rosto expressivo, linguinha para fora e olhos cheios de lágrimas. Queria viver. Um Errante medroso. O corpinho rebolante, quadril jogando para um lado e outro na maior velocidade que conseguia... mas era ínfima.

Vul!

Nino tentou um corte... errou, a anomalia roubou a aparência de uma barata e voou... entrando no meio da infestação que se agitou com o clone que invadiu sua moradia. Não era um clone com inteligência própria, que ao voltar para o criador trazia as informações. Nino controlava-o remotamente.

Sem saber se havia muito metano e sulfeto de hidrogênio no ambiente, não incinerou aqueles milhares de seres nojentos para não ter que lidar com uma explosão no esgoto da cidade... Mas não deixou barato.

Correndo atrás da infestação que fugia, empunhou a espada com as duas mãos e saiu cortando uma por uma, uma por uma, sem exceção; uma hora iria achar, e sua velocidade colocava um tempo limite de pouquíssimos minutos.


— Cadê ela?! — perguntou Thales, vendo Nino parado olhando o bueiro.

Nino disparou em silêncio, mas não desapareceu por completo. Permitiu que Thales o visse, e o amigo foi atrás na direção. Nino ia na direção do rio, onde, caso não o matasse no esgoto, o pegaria saindo em uma das cascatas.

Shk!-Shk!-Shk!

Perninhas e asas vermelhas caiam sobre a água podre. O volume de seres diminuía, seu olhar afiado mirava em cada uma simultaneamente e, ao mesmo tempo, para todas de uma vez... foi quando seu rosto virou em câmera lenta para a esquerda; um rato que se escondia lhe voltou um olhar amedrontado.

Sh-Tin!

Desviou da lâmina com um pulo, e Nino furou a parede. A anomalia caiu sobre a lâmina assustada e viu o punho do menino chegando do nada. CRASH! Quebrou a parede, mas errou o ser que se transformou em um pernilongo, voando por sua vida... Ótimo acerto; a fumaça impedia Nino de vê-lo, mas péssima ideia: as baratas começaram a tentar devorá-lo enquanto passava no meio.

Zzz! Zziu!

Desviava com uma destreza cagada. Era um camaleão, nunca havia voado até o dia em questão. Mas conseguia replicar os poderes do ser em que copiava no momento. Logo conseguia voar, mas não vinha com manual de instrução. Ou aprendia na marra, ou virava história de uma família que nunca viu até então.

Sendo um lobo solitário, corria para a sobrevivência da sua espécie.

Voltou a ser um rato, era mais seguro naquele momento. Nino já não mais o seguia, o túnel ficou pequeno demais e a luz... no fim ele já via. Correu como nunca, as patinhas tocando a água suja em pequenos pulinhos velozes.

Vu!

Saltou feliz em meio ao brilho. Um sorriso genuíno que não conseguia esconder... foi quando escutou o ar sendo cortado por uma lâmina fria. Nino surgira mais irritado que antes. A anomalia foi rápida. Vul! Nino errou o pernilongo novamente.

Plash!

O Primordial não calculou tudo. Seus olhos sedentos só queriam matar aquilo. Caiu no meio do rio, era raso, mas afundou-se até os joelhos na água mais podre do que as carcaças que revelou ao matar a anomalia anterior.

Olhou para cima, o mosquito voava e sumiu de sua visão ao ir para a rua. Vlush! Saltou na direção, e seu olhar afiado calibrou e prendeu em sua presa mais uma vez. A espada descia, uma peninha...

CRASSH!

Um caminhão vinha relativamente rápido, ora bolas... não tinha como prever um menino saindo do rio cheio de esgoto do nada. Nino afundou na frente do veículo. A forma certinha do corpo, o motor foi destruído.

Do vidro trincado, o motorista assustado podia ver a cabeça e rosto... Nino permanecia de olhos fechados, mas quando abriu, o homem tremeu; o menino o olhava e aquele olhar era pura ameaça.

Nino cerrou os dentes e avançou na direção novamente. Acelerando na Rod. Chico Xavier, não havia mais restrições. Pegadas pretas de queimado eram deixadas no solo, a lâmina brilhando como magma viva deixava isso muito claro.

A anomalia entrou em desespero, e, em meio a isso... copiou o amigo do menino. Vu-...! Nino desceu a espada pronta para explodir bem próximo; sabia que na área da explosão o ser seria atingido e eliminado, devido a um corpo tão pequeno... mas... aquilo assumiu o corpo de Thales e o menino travou. Arregalou os olhos e parou.

BAAAM!!

Recebeu um soco cheio no meio do peito, a velocidade em que avançava fez como a física ditava: o soco parou o peito, afundando a mão no jovem, já as pernas continuaram em movimento, indo para frente e subindo, antes do menino ser arremessado inexpressivo para trás.

Voou com brutalidade, passando até mesmo do caminhão que destruíra com o corpo. Seu rosto se mantinha paralisado. Pousou em pé, sem dor ou qualquer coisa além de choque. A espada em sua mão.

Fu!

O verdadeiro Thales passou por ele, avançando na direção do alvo que o menino falhou na execução.

"Por que...? Por que eu parei se sabia que não era Thales...?"


Thales corria com passos pesados. Sua velocidade era bem alta, e o serzinho entrou em desespero mais uma vez ao notar isso... Não podendo fugir, avançou no novo desafiante. Na mesma velocidade, ambos chegaram próximos. O tempo passou com lentidão. Os dois posicionaram um pé à frente, impulsionando um soco de direita.

Ambos mirando o rosto, mas a anomalia só copiava o jovem; o resto... o resto era história. BACRREEECK! O soco era poderoso, mas como o próprio já havia experimentado o azedo, o amargor de saber na pele o quanto era frágil, viu em primeira mão a potência que seu soco conseguia atingir no próprio corpo forte e musculoso.

Thales flexionou os joelhos, descendo o golpe do rosto para um soco reto na boca do estômago. O punho afundou, o choque destruiu ossos do tórax e partiu a coluna... mas, o sangue que jorrou, a baba que se misturou... em meio a tudo, o jovem notou o rosto daquele ser.

A dor foi muito alta, o camaleãozinho perdeu o controle do poder e começava a voltar para sua forma original, mas ainda em forma de Thales, o rosto expressivo voltou, e quando o voo que o impacto gerou começava a empurrá-lo para trás, Thales viu os olhos do pequeno ser... os mesmos olhos tristes, sem esperança, que viu em Robson nos primeiros dias em que o conheceu.

Thales sentiu dor... dor física. Era como bater no seu amigo; aquele serzinho só queria viver e fugir, assim como o amigo. O ver voando com os olhos cheios de lágrimas, sentindo dor, foi doloroso... mas quando viu o vulto preto passando do seu lado foi mais.

Nino não falharia mais uma vez, e de alguma forma... Thales sabia.

A anomalia foi arremessada muito rápido e longe. Cruzou pelos ares a Rua João Teodoro e São Caetano. O corpo girava, sentindo muita dor, por cima de um enorme galpão de feira, quando viu o menino de preto surgindo novamente em um salto...

Shk!

Oh, no...! No, no, no, no, no, no, no. Silly! To dry it! But it exploooded!

O camaleão copiou Nino.

Virou o menino, e Nino acertou o corte, dividindo a anomalia de fato ao meio, com fogo vermelho queimando por onde a espada passou, mas o jovem se assustou, não pela coisa copiar sua imagem... mas por vê-la se regenerar e sangrar sangue preto com uma fumaça de poder escuro saindo do corpo.

Não havia mais volta.

O olhar do menino, assim como o corpo, mostrava a mais profunda ira. A mão agarrou a cabeça da criatura, CRRR-CR...! amassando o crânio e destruindo o rosto que seu ego tanto achava perfeito.

O corpo do menino ficou levemente fino, distorcido, uma representação do que sentia por dentro, o macabro, o maligno. Olhava profundamente para si, e BRRRUUMMM!!

Passavam voando em alta velocidade por cima daquele edifício. Ninguém os via com clareza e muito menos via a cópia se regenerando com o sangue que era para se manter escondido. A mão do menino brilhou em vermelho neon, antes de explodir, destruindo só um pouco do corpo... o que o deixou ainda mais irado.

Era muito forte, muito resistente... era uma cópia exata?

Pessoas que passavam nas ruas tomaram um susto. Uma bola de chamas se formou e sumiu do nada em poucos segundos. O pânico por parte começou, mulheres gritando desesperadas sem nem saber o que acontecia e homens olhando-as querendo só que calassem as bocas.

PAHFF-PAHFF!

Mesmo que o copiasse, a dor que sentiu ainda era forte demais, e, não sabendo da força que tinha ao copiar o menino, voltou à original, depois que regenerou e colidiu com o chão, quicando duas vezes.

Ficou incapacitado. Era tarde. Era sua morte.

Caiu próximo de carros estacionados junto de caminhões naquele estacionamento. Já Nino aterrissou imediatamente em pé, próximo de uma passarela que passava sobre trilhos de trem, esticando o braço direito para frente e puxando com ódio o outro para trás.

A flecha de fogo vermelho subia ao céu como um incêndio florestal. As mulheres voltaram a gritar olhando, e os homens as olhavam com olhares de julgamento. Nino iria disparar... mas então hesitou por um momento.

Arthur surgiu na frente daquilo, fazendo um escudo humano a menos de um metro na frente da anomalia. Esticava os braços para frente, e gritava com a garganta:

— NÃO FAZ ISSO! ELE NÃO FEZ NADA! SÓ TÁ FUGINDO!

— Saia da frente — rosnou, o olhar fixo no alvo.

Thales surgiu e entrou na frente, porém bem próximo de Nino.

— Nino, não faz isso. Não é uma anomalia má, só tava fugindo porque nós atacamos!

— Saiam da frente — rosnou.

— NINO, POR FAVOR! ELE SÓ TÁ ASSUSTADO! É INOFENSIVO, CARA!

— Anomalia é anomalia. Não existe anomalia inofensiva, todas pr...

— Existe sim! Eu tenho um amigo que é uma anomalia!

Os olhos do menino saíram do camaleão acuado, cheio de medo no chão, e se cravaram nos olhos de Thales. O corpo de Nino não se moveu, muito menos o rosto, somente os olhos; e Thales conseguia sentir cada gota de um ódio e raiva que jamais imaginou que veria em uma pessoa.

— Não minta pra mim.

— Não tô! Eu passei por um treinamento antes de vir pra cá... ele me ajudava. O corpo dele era gelatinoso e ele conseguia tratar meus ferimentos quando engolia meus braços com o corpo. Minhas feridas eram fechadas a ponto de não ficar cicatriz. Ele não falava, mas me entendia e eu conversava com ele por pedras. Uma era o Sim e a outra o Não. Ele me respondia e me ajudava. Me alegrava em momentos difíceis demais... Entre às perguntas, eu perguntei se ele tinha amigos e ele disse que sim. Perguntei se ele tinha vontade de sair de onde estava preso comigo e ele disse que sim.

"Preso?"

— Quando eu conheci ele, ele me olhava da mesma forma que essa anomalia. Ele nunca me atacou, nunca demonstrou que queira o meu mal. Só me ajudou. Existe sim anomalias boas. Só é difícil de encontrar. Confia em mim. Por favor... não mata essa anomalia.

Nino mantinha o olhar. Um lado queria acreditar que Thales aceitaria a verdade como Nathaly, mas o menino decidiu que nunca iria contar. Mesmo gostando do amigo, era muito distante o que Nathaly era para o que Thales começava a ser.

— Não importa. Vocês estão agindo como crianças inocentes. Não é a mesma medida. Não é a mesma história de ajuda e amizade com essa anomalia que você diz que é amigo. Essa coisa me copiou. Vocês sabem a gravidade disso? Isso não é inofensivo. Se sair vivo daqui e se transformar em mim mais uma vez, pode causar um massacre pela cidade. Matar centenas e até milhares de pessoas.

— Olha pra ele! Acha que essa coisinha faria isso?! — exclamou Arthur.

— Seu imbecil. Tá confiando a vida de pessoas em uma anomalia só porque é fofinha? Você é retardado? Não é porque parece frágil, é pequeno ou fofo que essa merda não pode te matar. Fugiu. Fugiu, sim. Deve ser um Errante, sim. Mas se virar um de nós, pode matar uma galera. É difícil de entender?

— Mas, Nino... Se ele virar um de nós... temos você. Você vence, não vence? — perguntou Thales.

— Óbvio. Mas não muda toda a merda em jogo.

— Eu assumo qualquer risco. Qualquer coisa que acontecer de errado, eu assumo, eu juro! — disse Arthur.

Nino mantinha-se parado, a flecha ganhando mais chamas do ódio que aumentava. Uma veia saltou em sua testa.

— Caralho, não é possível isso... Você tem problema? É só a merda de uma anomalia.

Nino não se importava nenhum pouco, era óbvio. O caos o atraía, mas o caos que aquela coisa podia criar com a sua imagem era muito revelador para o seu gosto. Queria e a cada segundo cogitava disparar e exterminar os dois, mas Thales continuava também em sua frente, e ele nunca iria disparar aquilo no amigo.

"Devia ter ignorado e soltado. Controlava o fogo e matava só aquela merda... mas quis ter compaixão com a porra do humano imbecil com a cabeça de uma criança mimada. O que você quer com essa coisa, seu inseto?"

— Nino, por favor, não é só uma anomalia... — murmurou Thales, a voz em tom baixo, mostrando um sentimento triste e sincero. Nino notava, mas não queria, não podia arriscar que aquela coisa saísse de lá viva.

— Thales, por favor, saia da minha frente.

Thales não acatou. Deu dois passos, Tss-... e seu peito tocava na ponta da flecha mágica. Queimou-o, mas Nino controlou as chamas para parar de feri-lo.

— Nino, por favor, não mata ele.

Arthur virou-se e agachou, colocando as mãos abertas próximo do bichinho que tremia cheio de medo. A anomalia viu o sorriso do menino e olhou as mãos. Ergueu o corpo e foi com uma lentidão hesitante até subir. Deitou-se, mesmo que assustado, e Arthur levantou-o.

— Você acha que uma anomalia perigosa subiria na minha mão sem me atacar?

Thales deu visão para o menino olhar, assim como ele. Nino continuava com o rosto muito irado. A proximidade do ser com o menino dificultava o controle da tamanha explosão carregada na flecha... mas o jovem calculava enquanto observava. Porém, a balança era injusta.

O tom de Thales pesava muito mais do que querer exterminar a todo custo aquilo.

— Você me entende?

Os dois olharam para Nino, mas Nino falava com a anomalia, que piscava assustada com o olhar que recebia. O serzinho não deu sinais de entender, mas a possibilidade de estar fingindo veio à mente de Nino, que decidiu lidar de outra forma.

Abaixou os braços e a flecha sumiu.

Thumf!

— Valeu! — Thales agradeceu, abraçando o menino.

— Ainda não disse minha decisão — murmurou em resposta.

Thales o soltou e Nino deu alguns passos, indo até Arthur, que virou a anomalia para o lado do corpo, protegendo-a enquanto encarava o menino se aproximar.

— Um único sinal... uma única ameaça, e eu mato essa coisa. Mas ela só sai daqui viva hoje se você ligar para o diretor e ele permitir — sua voz saía arrastada e ameaçadora. — Não me escuta, mas talvez ele, você escute.

— Ele vai me deixar levá-la.

— Claro, claro. — Nino colocou as mãos no bolso, fechou os olhos e saiu andando para trás em desdém. — Claro que vai.

Arthur não gostou do tom, mas chegou próximo dos dois e esticou a anomalia para Thales, que a recebeu e segurou com cuidado, fazendo carinho e vendo o serzinho ficar mais pacífico e cada vez menos assustado.

Tentava mostrar a Nino que não havia mal ou perigo algum, mas o menino apenas esperava Louis negar para poder exterminar aquilo logo. Olhava com desdém e preguiça na direção do jovem ansioso, com o celular no ouvido ligando para o tio.


Vrr, Vrr...

Louis, como sempre, estava lotado de trabalho, e Katharine o ajudava em mais um dia. Deu o dia de treinamento livre para sua turma no Allianz e foi ajudar seu namorado. Coisa que Alissa nem cogitava começar. A turma era fraca demais para um treino livre: seis classe A contra um tanto de pré-adolescentes fracos.

O celular vibrou; ele viu que era o sobrinho.

Atendeu já sabendo de muita coisa que estava acontecendo:

— Art...

— Tio!

"Tio?" Nino estranhou, olhando-o com curiosidade.

— Arthur, onde você tá? Tô recebendo um monte de coisa aqui, por que tá na rua? — perguntou em um tom severo, chamando a atenção. Katharine até olhou na direção.

— Alissa m...

Ah... entendi. O que você quer? — mudou o tom e também a expressão imediatamente.

— ...

— Alô?

— Eu... o que você recebeu aí?

— Vídeos de pessoas mostrando uma anomalia rosa partida com outras menores dentro, sendo retirada pela Limpeza de um parque, e uns vídeos bem ruins de uma explosão de fogo. Ah, também de Nino recebendo um soco do aluno novo, mas depois o aluno novo surgiu e socou ele mesmo. Aí depois que fui entender que aquilo era uma anomalia. Eu liguei para a Limpeza. Foi você que matou a do parque?

— Não. Foi o Nino.

Ah... e a outra, mataram já? Parecia ser bem forte. O soco que Nino levou foi bem estranho. Sei lá. Copiou a força do Thales? É Thales, né?

Uhum...

— Que foi? Me ligou pra quê?

— Não matamos a anomalia.

— Ué...? Fugiu?

— Não... ela tá na mão do Thales. Ela é inofensiva, só tava fugindo. Nino queria matar... ainda quer porque disse que ela se transformou nele e que poderia fazer um massacre por aí com esse poder... mas eu não acredito. Ela não é má, eu juro.

Louis não conseguiu entender direito e balançou a cabeça, antes de apoiar o braço na mesa e usar a mão aberta na testa.

— Não tô entendendo. Você não quer matar? Você quer ficar com ela?

— Sim! — Um sorriso feliz e esperançoso se abriu.

— Arthur... meu filho... você tá maluco?

Logo se fechou em frustração e, um de canto, surgiu em Nino.

— Ma-mas... tio, é sério, essa anomalia não é má!

— Arthur, anomalia é anomalia. Eee... eu... eu não tô entendendo. Eu vi como ela é, mesmo que com um frame um pouco esticado. É bonitinha e tal, mas, filho, ainda é uma anomalia.

— Eu prometo que assumo toda a responsabilidade, por favor!

Louis respirou fundo. A voz do menino era quase de choro, e uma cena do passado voltou em sua mente. Na rua de terra onde morava, um dia, quando voltava com a mãe e seu irmão para casa, ele e Luan viram um gatinho preto e branco... sendo crianças, foram correndo brincar com o bichano.

Era bem dócil, miava e se arrastava em suas mãos e pernas agachadas... pediram para levá-lo. Mas a mãe disse não. Choraram... queriam muito adotar o felino. Mas não podiam. Não... não podiam. A cena voltou forte na mente do diretor... sabia que não podia, mas, diferente da mãe, decidiu achar um meio de explicar:

— Arthur, você acabou de dizer que essa coisa copiou Nino. Você viu os vídeos na internet dele e da irmã contra a última Calamidade que surgiu? Você tem noção da força e poder que os dois têm?

— Sim, mas...

— Mas nada, Arthur. Agora faz mais sentido. Mesmo que não queira, Nino está certo. Eu vi o soco que aquilo deu imitando Thales, foi forte demais. Ela pode parecer fofa... meu filho, se eu contar quantas vezes fui atacado por anomalias que pareciam normais e só animais fofinhos... você fica maluco.

— Tio, eu j...

— Imagina a seguinte situação: você é forte, eu acredito que ainda vá superar Luan. Mas imagine que você leve esse ser para o seu apartamento, achando que ele vai ser só o seu pet fofinho e brincalhão... mas, de repente, no meio da noite, ele sente uma fome muito forte e seus instintos de anomalia atacam. Logo, você vira alvo.

— M...

— "Ah, mas tio...! Você acabou de dizer que eu sou forte". Sim, eu disse. Mas se ela copiar você, também será. E para matá-lo enquanto dorme, sem você ter tempo de reação, é ainda mais fácil sendo forte. Deu para entender?

— M-m... mas.

— Vou dar outro exemplo então. Imagina se essa coisa copia Alissa. Pronto.

Arthur abaixou o rosto, muito triste.

— Não é simples. Eu tô falando sério, Arthur. Eu confio em você. Confio que essa coisa pode ser inofensiva, mas ainda assim, imagina quando sair na mídia que o sobrinho do líder da ADEDA cria uma anomalia inofensiva de estimação? Imagina a quantidade de crianças e adultos com a cabeça de uma batata, sem personalidade alguma, que só seguem trends e fazem coisas populares no momento. Imagina essas pessoas também querendo ter uma anomalia inofensiva; como seria? Vão lá e encontram Errantes com essas características, seres assustados, pequenos, fujões e até fofinhos. Adotam e, do nada... morrem enquanto tiravam uma soneca. Imagina esse peso, Arthur. Imagina isso caindo bem nas minhas costas por permitir que o meu sobrinho tivesse uma para si.

Silêncio... só um pesado silêncio na chamada por cinco segundos. Arthur não tinha como responder, e também entendia a gravidade de tudo agora.

— Arthur... ligue para a Limpeza e deixe a anomalia com eles.

— Vão matá-la!

— ...

— E... eu... eu só vou fazer isso se me prometerem que não vão!

Louis apoiou as costas na cadeira, deitando-se um pouco esgotado com tantos trabalhos e se vendo naquele menino que só queria proteger um serzinho que via como o seu melhor amigo do passado. Não teve coragem de pedir ao tio para ir buscar por Titá, e passou anos longe da sua pelúcia.

— Ok... vou ligar para lá e dar uma ordem. Serão feitos testes e exames para provar que, de fato, essa anomalia é dócil e não agressiva. Se provarem, eu arrumo uma forma de legalizar a adoção de anomalias que passarem por esses testes antes. Assim, acredito que ao menos o peso de alguma morte ou um surto diminua.

Arthur gostou da ideia, mas ainda não confiava muito.

— Tá, mas eu também quero pelo menos uma foto a cada três dias dele, para ver se está sendo tratado bem.

Louis encarou o monitor entrando em inatividade com um olhar caído.

— Ok. Vou ligar para Brasília. Mande mensagem ou ligue para a Limpeza explicando a ordem, ok?

— Tá! Obrigado, te amo, tio!

Louis sorriu.

— ...Também te amo.

Arthur desligou... e a paz de espírito do homem acabou quando Alissa entrou no escritório, entregando alguns papéis grampeados. Olhou para ele ao receber. Katharine segurava a raiva que crescia.

— O que é isso?

— Uma atividade para você entregar para Arthur. Não chegou ainda e não parece que ainda vai chegar para a aula de hoje. Ah, avisa que é para segunda, ok? — Virou-se sem esperar e já ia saindo... Mas Louis leu o nome "Luan" na primeira folha de relance e a chamou.

— "Luan"? O que tem aqui?

Alissa virou-se, olhando-o com tédio.

— Não possuo magia elemental. Não sei ensinar isso, só ensinar a melhorar o que meus alunos já sabem. Então peguei e resumi todas as formas de ensino dos professores que já passaram na ADEDA, assim como seu irmão e os membros do primeiro esquadrão, para meus alunos estudarem neste fim de semana e tentarem me apresentar um possível segundo elemento mágico. Acredito que não vão conseguir, mas quem sabe, né?

Ah, entendi.

Aaah, Katherine... vê se não copia, tá? — provocou enquanto saía rindo da prima.

Assim que saiu, a prima demonstrou a raiva e foi até Louis.

— Por que ela veio aqui?!

O homem a olhou meio sem entender.

— Ela literalmente disse o motivo.

— Mas ela precisava vir pessoalmente? Por quê? Tão conversando, é?! V...

Começou a falar e falar, e o homem só olhava para frente, para o nada, perdido... com sua cabeça tentando ignorar tudo... cansado de tudo... esgotado de tudo.


Arthur foi mais tranquilo até os dois.

— Não deixaram eu ficar, mas disseram que vão fazer testes e avaliar se ele é inofensivo mesmo antes de me trazê-lo de volta.

Nino o olhou aborrecido.

— Por que você quer tanto essa coisa? — Um sorrisinho se abriu. — Aaaah, saquei. Queria pedir para isso virar o boto para você ver o tanquinho mais de perto, né?

Ele e Thales riram e Arthur aborreceu o olhar, retirando o "Titá" das mãos de Thales.

— Isso não tem graça — murmurou.

— Pra mim tem — retrucou Nino.

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora