Dançando com a Morte Brasileira

Autor(a): Dênis Vasconcelos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 108: Descarte Repentino

Mmn...

Sentindo o gelo que era o chão, o menino despertava de um sono pesado. Sem camisa, nem se lembrava do presente deixado de lado. Os sonhos foram tão intensos que o pirulito acabou da noite para o dia. O palitinho estava caído, e Thales abria os olhos lentamente, sentindo o desconforto da sua cama de pedra e seu amigo gelado no peito.

Seus movimentos acordaram Robson. Sentou-se com as costas apoiadas e olhava o amigo, que o olhava de volta. Silêncio. Piscadas confusas vendo a geleia o encarando esbugalhadamente. Olhou para os lados. Algo faltava. Coçou a cabeça. Precisava de um corte.

— ...Robson... cadê ela?

Robson nem se mexeu, compartilhava da mesma dúvida.

— Ainda é o mesmo dia?

A anomalia olhou para o lado e balançou a cabeça, negando... mesmo sem ter certeza. Thales olhou para o lado. A cesta não estava mais lá. Robson a havia vaporizado. Acordar sendo espancado era obviamente uma merda, mas...

"Por que a Sinhá não veio...? Tá no prédio dela com aquela mulher?..." Abriu bem os olhos. "Aquela mulher era como eu... Então...? Ela é uma escrava? Mas não tinha machucados."

[ — Me espera no quarto vermelho, vestida, pronta para ser usada. ]

Uma memória veio à mente.

"Ah... Será que ela conseguiu ser útil ontem? Espero que sim... não quero que tenha precisado ser educada... dói muito." Mal sabia que era isso que a mulher foi atrás. Mas uma educação um pouco diferenciada...

Passaram-se alguns minutos sentado. Robson, meio desanimado e com preguiça, vaporizou os olhos e se deitou ao lado do menino, que esperava animadamente por Mirlim surgir, mesmo que estivesse com vergonha e...

"Será que aquela voz contou pra ela...?" Corava enquanto pensava, mas possibilidades eram criadas. "E se ela gostar...? O que faço? Será que eu me declaro? Isso é gostar de alguém mesmo?"

[ — Paínn... como conheceu a mainha? — perguntou Thales. Tinha 12 anos na época. Sentado à mesa com o pai, esperavam a mãe finalizar o urubu que o pai derrubou com uma pedrada na cabeça.

— Hahaha! Eu conheci a sua mãe pegando manga em cima da árvore! Cheguei lá e tomei um susto. Uma menina mais moleca que eu, chupando as mangas todas sentada num galho — a mãe sorria genuinamente, uma leve risada acompanhando tudo, com os olhos brilhando, lembrando da cena... Lavava a louça enquanto mantinha o olho na panela cozinhando a ave. — Eu pedi uma, e ela olhou na minha cara. Pegou uma e jogou, mas jogou tão rápido que não consegui desviar. Regaçou o meu nariz e ficou sangrando.

— KAKAKA!

A mãe começou a gargalhar lembrando, e Thales via, junto de alguns dos seus irmãos já nascidos na época, o pai olhando com aquele brilho para a sua mulher de costas na cozinha. O menino admirou aquela cena, mesmo que não soubesse ou já tivesse sentido aquilo.

— Aí, ela desceu do pé de manga e foi ver o que aconteceu. Limpou o sangue com a própria blusa, me perguntou se tava doendo, e eu pedi um beijinho de desculpas. Ela sorriu e, depois disso, tamo aqui, com ocê e seus irmãos.

O menino riu, assim como os irmãos mais novos, que só seguiam o fluxo, pois nem falavam direito. A risada da mãe roubava a cena, e o pobre almoço naquele dia era imbuído de uma alegria em meio ao que nenhum ser merecia passar para sobreviver mais um dia. ]

— ...

A lembrança bateu forte. Continuou sentado por mais alguns minutos. Já era outro dia, nunca saberia se não saísse de lá.

"Ela não vai vir...? Aquela escrava é mais útil que eu...?" Assumiu um rosto triste, pensativo. A ansiedade despertava em seu ser. Sua perna dobrada começava a se mover, pequenos pulinhos para se controlar.

Constantemente olhava para o quilométrico quarto.

"Me esqueceu? Me trocou pela escrava... é a pele dela? É mais clara que eu... é isso?... Por que não me usou no lugar dela? Minha massagem foi ruim? Não fui útil lá dentro?... Desculpa..." As vozes o torturavam. As possibilidades, os "e se", alguma coisa o atormentava.

Não aguentou.

"Se ela não estiver na sala... eu volto." Ergueu-se e vestiu a regata regaçada. Robson criou os olhos e o olhou. Vendo a cena, notou Thales parando do nada após três passos. "Mas e se ela não estiver...? É... é porque me trocou mesmo? Escolheu ela...? Mas eu sou o escolhido! Não pode ter outro!... ou pode?" As pernas tremiam, a dúvida persistente.

Agiu.

Voltou a andar... tentando não pensar.

Robson abaixou o olhar e vaporizou os olhos, voltando a dormir... mesmo que dormir fosse quase pior que permanecer acordado. Sonhos humanos, pesadelos em como deixou de ser sua raça. Os experimentos. Os testes. O sadismo de não se importarem com a vida da horrenda anomalia.

Saiu da salinha e a trancou. Guardou a chave no bolso e abriu a segunda, notando que era dia. De fininho, olhou o corredor. Não tinha ninguém. Andou até a sala de Mirlim. Fechada. Toc, toc, toc... tocou três vezes... NADA.

O nada de resposta era mais alto que seus pensamentos otimistas. O coração aumentava a velocidade gradativamente. Olhava a porta e aquilo parecia indestrutível, mas então seus ouvidos captaram um som.

Trerrerrrererrerleclec!

Escutou algo escapando por baixo da porta. Teclas sendo pressionadas a milhão.

"Ela está aqui!" quase exclamou em voz. — Sinhá...?

Nada.

Perdeu. Deixou a ansiedade falar mais alto que a noção de descer e esperar e abriu a porta, lentamente, visualizando gradativamente o interior da sala, até que viu Mirlim no computador, usando a mesma roupa do dia anterior. Entrou e fechou a porta.

Envergonhado, andou até a mesa.

Mirlim não o olhou em nenhum momento e, muito menos, mostrou hospitalidade. Seu rosto era o mesmo de todas as manhãs: o desdém, o desinteresse, o ódio, o nojo do ser à sua frente. Thales viu que não estava igual à tarde anterior, e mesmo assim continuou lá.

— Sinhá...?

Trerrerrrererrerleclec!

— Éééh... você não me acordou hoje. Aí eu vim sozinho.

Silêncio.

— ...Obrigado pela comida, tava muito boa — comentou com um sorriso gentil, um tom meigo.

Silêncio.

"Aquela voz contou...? Foi isso?" — Obrigado por ontem... desculpa se não consegui ser útil no seu prédio. Eu juro que posso melhorar.

Silêncio.

Silêncio.

Silêncio.

Não conseguiu segurar. Os braços, tensos para baixo, tremiam ao cerrar dos punhos. Abaixou o rosto para sentir mais conforto no que ia falar. Fechou com força os olhos, não queria chorar:

— Sinhá... é porque eu sou escuro? Aquela suja era mais clara que eu, então merecia mais ser usada, ontem? Você educou ela no meu lugar? Ontem e hoje cedo? Não me educou hoje, nem foi lá embaixo... você me trocou?

Mirlim continuava apenas teclando, não se importava naquele momento com mais nada além disso. Os olhos nem se moviam. Li­am com precisão as palavras que iam passando e continuava pesquisando, programando, aprendendo e criando um projeto que estava consumindo muito do seu tempo atualmente.

Thales ergueu o rosto e viu que a mulher não se importava.

— Você negou que eu era sujo. Mas agora nem me olha. A Sinhá sente nojo de mim? A escola tem outros como eu, mais escuros que eu... não faz sentido. Você é racista ou só é comigo? Por que manteria esse lugar se odeia a minha cor? Todos são escravos também? M... mas... mas... POR QUE SÓ EU PASSO POR ISSO?!

Não aguentou... gritou e viu os dedos de Mirlim pararem, e o olhar ser direcionado ao mais profundo que podia ir dos seus.

— Quer ir embora? Vá. Está dispensado. Procure os agentes que o trouxeram e diga que eu mandei que você fosse embora.

— Nã-n... desculpa, Sin...

— Esqueça o que me deve. Comprar você foi jogar dinheiro fora. Não é grato. Só reclama. Eu o educo, educo e educo, e continua um mal-educado. Não serve pra nada. Então, já que não quer ficar, pode ir. Suma. Desapareça, e não precisa mais voltar aqui. Posso escolher outro, um que vai dar valor, obedecer e provar sua utilidade.

Trerrerrrererrerleclec!

Abaixou o rosto e voltou ao trabalho.

— Não! Desculpa... desculpa... esqueça o que eu disse, por favor!

Silêncio.

— Por favor! Eu sou útil! Eu... eu posso provar, Sinhá!

Silêncio.

O menino ficou desesperado. A liberdade parecia mais dolorosa que seguir ordens suicidas. Via que a mulher não o queria naquela sala, e mesmo querendo se ajoelhar de testa no chão e ficar por dias, se fosse necessário, até receber sua educação, virou-se e saiu atordoado.

Passou pela porta, e parecia ter passado pelo portal da perdição. Podia ir onde quisesse. Fazer o que quisesse. Ir até seus pais. Ir até a praia. Ir até o Sr. Sandro. Ir... ir... ir... Podia fazer o que quisesse, mas era confuso. Cadê a linha? Cadê a operação? A ordem? A estranheza que sentia ao adquirir sua liberdade... o medo de sair e desfrutá-la o fez continuar preso, mesmo com ela.

Não sabia onde ir, se não fosse...

"O meu quarto..." O vazio que cresceu em seu peito o fazia sentir vontade de chorar. Queria preencher, precisava tampar aquilo. Uma redenção, uma desculpa.

O passarinho saiu da gaiola e queria voltar. Voar era assustador. A gaiola o deixava protegido do mundo... das escolhas... dos fracassos... Na gaiola podia dormir, recebia comida... água.

Era melhor... não era?

"Por que eu disse aquilo? Por que eu não fiquei quieto? Desculpa... desculpa... desculpa..." Andava apressado até o fim do quarto, e o som dos passos angustiantes acordou mais uma vez Robson dos seus eternos pesadelos do seu passado científico.

Não chorava, mas a rigidez do rosto mostrava que segurava as lágrimas.

"Preciso da esmeralda! Preciso mostrar que sou útil!" Olhou para Robson, que buscava entender o rapaz. — Robson... vamo trabalhar!

BAAAAM!

Tudo tremeu.

A poeira subiu, e os nanorrobôs voltaram a criar as sustentações e as fiações com luz. O soco abriu um largo caminho de 60 metros, e Robson se juntou, limpando toda a sujeira.

Trabalhava como um louco e, em mais um dia, não reparava sua evolução: sua velocidade, força, resistência, energia... não reparava. Socava aquelas rochas, o buraco se abria, corria e avançava com mais um soco, dobrando os joelhos e acertando um pouco mais baixo.

Robson vinha igual a um aspirador de pó, sugando tudo e, infelizmente, sentindo o gosto horrível de tudo... também. A mineração voltou à ativa e não parou. Foram horas socando e socando, nem estando próximo do seu limite, do limite onde suas mãos começariam a sangrar.

O tempo nem parecia passar para ele.

A motivação, a energia, mesmo sem comer nada no dia... que já havia virado outro. Era cerca de 8h da manhã. 25 de maio. Já haviam se passado 124 dias dos 182 que Mirlim tinha para o treinamento.

Thales passou um pouco mais que um dia inteiro socando sem reparar... e foi quando Robson sugou mais uma leva de pedregulhos grandes que notou... dentro da sua gelatina, uma coisa não vaporizou.

Tipk!

Caiu no chão após vaporizar as impurezas e coisas que a rodeavam. O sonzinho chamou a atenção da anomalia, que direcionou os olhos para o lado e viu então... um trapézio em um tom forte de verde. Abriu ainda mais aqueles grandes olhos e ingeriu novamente.

BAAAMM!

Thales continuava socando, quando, de repente...

Pk! Sentiu algo bater na sua cabeça. Robson cuspiu a esmeralda nele. O jovem se virou de imediato, foi um sustinho, e viu a pedra planar no ar. Conseguiu segurá-la antes de cair.

Robson chegava com um olhar bem feliz, e logo o de Thales acompanhou.

— ISSO É UMA ESMERALDA?!! — gritou, muito contente.

O amigo moveu o corpo como uma confirmação de cabeça.

— PRECISO IR LÁ! JÁ VOLTO! — gritou, saindo correndo, indo o mais rápido que conseguia. Robson o olhou por um segundo e se virou, finalizando a limpeza do último golpe.

Thales trancou a porta e saiu da salinha muito rápido. Passou o corredor e chegou até a porta... que estava entreaberta... e, quando olhou para dentro, o mundo se silenciou. Não ouvia mais nada. Tudo perdeu o som e a cor. Não era um desmaio... era pior.

Dentro da sala de Mirlim, Mirlim se encontrava como sempre: sentada, enquanto teclava. Mas, em sua frente, tinha uma criança de cabelo curtinho, com a pele um tanto mais escura que a de Thales. Usava uma calça jeans, um sapatênis escuro, um boné e uma blusa comum que mal era vista, por estar coberta por uma jaqueta azul-escura do time de futebol Bahia.

Conversava com Mirlim.

Aquela criança parecia animada, gesticulando quase em risadas... assim como a mulher, que sorria, e era nítido — pequenas risadas enquanto batia um papo. Thales via aquilo com um olho... escondido. A esmeralda quase escorregando da mão direita, que perdia as forças.

Saiu.

Voltou como um bêbado. O coração destruído... mas um coração quebrado batia naquela velocidade? Não sentia as pernas... mas pernas dormentes andavam tão bem na direção do seu cativeiro? Segurava a joia quase em um abraço... aquilo era a única coisa que o mantinha de pé...

Os olhos não piscavam.

Thales entrou na salinha. Tentava abrir a porta... esqueceu que precisava da chave. Abaixou o rosto para pegá-la no bolso... era o que precisava para as lágrimas se suicidarem no chão. Não via nada. Tentava enfiar a chave às cegas. Apertava a joia como se fosse seu coração sangrando, após um monstro rasgá-lo... sua cabeça... suas expectativas.

Enfim entrou.

Quase não trancou. Mas era necessário. Precisava deixar o lugar escondido. Deixou a chave na porta. Puxar aquilo parecia puxar uma lâmina cravada na barriga. Seus passos dormentes continuaram pelo corredor que seu corpo moldou. Acelerava a cada um. A marca do pé se cravando na terra... até que não aguentou e disparou, segurando com firmeza, na mão esquerda, a joia, e cerrando a direita em um soco com tudo na parede.

BUUUUUMM!!

Tudo tremeu.

Um tremor forte.

Um terremoto repentino.

Robson voou alguns centímetros do chão. Criou os olhos ainda no ar e, vendo toda aquela destruição e fumaça, sua forma se abriu como uma boca, sugando tudo como uma bola rosa. Mais um pouco que ficasse no ar, uma estrela dourada surgiria e o levaria embora.

Sugou tudo, mas Thales nem pensava: avançava e avançava, socando sem parar. Havia colocado a esmeralda no bolso traseiro da bermuda, e seus punhos iriam continuar descontando sua frustração e raiva até sangrarem... não ligava, não pensava, só queria socar.

BAAAM! BAAAAMM!!

Robson estava muito preocupado com aquele nervosismo, aquela ira.

— UUMM DIAA!

BAAAAM!

— UMM ÚNICO DIAA!

BAAAMM!

— EU SOU O ESCOLHIDO!

BAAAAM!!

— NÃO EEEELE!

BAAAAAMM!!

As lágrimas caíam. Misturavam-se à poeira e, antes de tocar o solo, eram sugadas pela anomalia. Em poucos minutos, quilômetros eram aumentados, e Thales não parava de avançar transtornado. Imparável... desesperado por ter sido trocado.

Uma semana se passou, e o jovem nem notou. Não dormiu, e muito menos descansou. Suas mãos sangravam absurdamente da força que aplicava há tanto tempo contínuo, mas essa dor o fazia se sentir vivo. Preenchia o vazio de não ser corrigido por ela... de não tê-la visto por tanto tempo...

"Tá com aquele moleque... É sujo como eu... mas por que, com ele, ela sorria... ria..." — CONVERSAAAAAVA?!

BUUUMMM!!

Sua frustração, ainda mais vivida que a vida, não foi suficiente internamente, em sua mente, e precisou gritar... precisou descarregar... precisava extravasar, deixar aquilo sair... mas uma semana em um treinamento suicida voluntário não era o suficiente?

O grito assustou Robson, que olhava o jovem com o punho do soco ainda erguido. A cabeça baixa, da mesma forma que executou o golpe. Sangue escorria sem enrolação dos punhos, mas Robson não sentia liberdade para ir tratar... Thales, aos seus olhos, não parecia querer.

"Ela sorriu... com ele... nunca comigo... nunca... não é justo... não é justo... E se ele... e se ele for realmente melhor? E se eu for mesmo substituível?"

Rangeu os dentes e ignorou a mente.

— Vou mostrar que sou melhor que ele... vou treinar e vou voltar pra desafiar ele... vou vencer... ela me escolheu... eu fui escolhido primeiro, isso não é justo... ISSO NÃO É JUSTO!

BUUUUMM!!

Robson sugou tudo mais uma vez.

Rrrrooomn...

Thales colocou a mão na barriga, deixando, em sangue, a marca da sua palma no tecido. Olhou para o amigo.

— Tá com fome também?

Robson se aproximou, o olhando com serenidade.

— Eu... eu vou subir e achar algo pra gente comer. "O Sr. Sandro deve me deixar fazer uma pizza..." — Trago algo, prometo! — sorriu, em meio ao caos. Olhos fechados, e Robson aproveitou para pular, envolvendo o corpo, limpando do suor e sangue, além de tratar as mãos.

Bhlob!

Aterrissou no chão.

— Obrigado... Já volto!

Disparou.

Correu por quilômetros e quilômetros para sair daquele quarto que parecia infinito. Chegou até a porta e pegou sua chave de volta, colocando-a no bolso junto da esmeralda, após trancar. Olhou à direita no corredor. Viu a porta de Mirlim fechada.

Fechou um pouco a cara e foi para a esquerda, mesmo que a saída fosse pela direita. Caminhou um pouco, passou por corredores dando a volta na escola até chegar no portão... mas precisava passar próximo do campo de futebol, e foi quando olhou, e lá viu a criança que vira na sala de Mirlim, com a própria Mirlim, treinando ao longe.

Mirlim mantinha um sorriso no rosto, um olhar acolhedor, tranquilo. A criança dava socos no ar, um treinamento leve. Era notório que se divertia... era notório o tratamento diferente para o outro.

"Escolhido... Eu sou o escolhido... Não ele... NÃO ELE!" Virou o rosto, fechado. Voltou pelo corredor de onde veio, já que a mulher não estava na sala, e, pouco tempo depois, chegou no restaurante do seu amigo, que não via há um tempinho.

Mentiu.

Não disse o que havia acontecido.

Sandro sabia que estava mentindo. Afinal, se estivesse tudo bem, por que o menino chegaria perguntando se poderia vir mais vezes comer pizzas? Mais de um mês longe, do nada chega roncando fortemente de fome? Foi acolhido. Mas tudo tinha um preço. Ajudou na confecção de algumas pizzas em uma horinha de trabalho e recebeu uma imensa que o mesmo fez, com borda recheada de brigadeiro, para comer.

Mas não comeu ali.

Levou até o quarto e, junto de seu amigo, dividiram. Seu treinamento solo se seguiu, fazendo tudo que já havia sido ordenado. Não sabia o que fazer além daquilo. Tentar outras coisas não fazia sentido, então... após comer a pizza, saiu e correu como um lunático, seguindo o caminho que lembrava até o Porto de Salvador.

Outro cargueiro havia chegado, embora fosse menor. Thales ofereceu ajuda para descarregar tudo, e os trabalhadores aceitaram instantaneamente. Iriam receber da mesma forma no fim do mês — óbvio que aceitaram — e ainda nem mesmo utilizaram os guindastes... Thales queria fazer tudo sozinho.

Foram 23 dias... treinando corrida, indo e voltando do Porto — além das dezenas de quilômetros que o quarto já possuía —, fazendo os operários felizes sem precisar trabalhar um único dia. Thales se ajoelhava para implorar, se fosse preciso, mas queria descarregar tudo sozinho. Era seu treinamento. Era o que precisava para derrotar o seu rival.

23 dias acordado. Alucinado no seu objetivo. Queria sangue. Não o seu. O dele. O da vitória. O do seu lugar de volta. Socava as rochas como se socasse as costas daquela criança. Corria pelas avenidas como se corresse em volta dele, deixando-o tonto, confuso com sua velocidade.

Descarregava e erguia aqueles contêineres como se o segurasse com uma mão envolvendo toda a cabeça, erguendo o corpo da criança mole, mostrando que venceu, que era merecedor de ter suas desculpas aceitas... de voltar a ser o escolhido.

Todos os dias, de manhãzinha, chegava no restaurante, acordando Sandro, que não aguentou a sobriedade e havia recaído logo após Mirlim parar de desmaiá-lo, aos remédios para dormir.

A esposa o largou quando percebeu o vício compulsivo em pornografia, e o velho agora morava de vez no restaurante. Perdeu a casa no divórcio e quase todo o dinheiro do contrato que fechou com Mirlim.

Ficou apenas com o restaurante e uma motinha velha de bens... Afundou de vez nos remédios e faltava pouco para o coração parar ou uma overdose o levar. Os filhos ainda trabalhavam com ele, mas era sempre um climão quando o nome da mãe era mencionado.

Devido a Thales estar indo constantemente, o velho tentava esconder mais os remédios ou estar dopado. Ao menos, quando entrava na cozinha, era sempre a mesma magia: nascia de volta a vontade de viver... uma pena que ela saía assim que as luzes e o funcionamento acabavam.

Thales mantinha o combinado. Ajudava no preparo da comida que iria ser servida no dia e algumas pizzas, para levar o café da manhã seu e do seu amigo lá embaixo. Outra coisa que era rotineira era sua curiosidade destrutiva. Sempre ia olhar o campo, mesmo com medo, mesmo que o machucasse, sempre ia ver se os dois estavam lá.

Quando estavam, era doloroso. Mas era ainda mais quando não. Quando não sabia onde estavam. Quando não escutava nada ao tentar colocar o ouvido na porta. A ansiedade atacava, o medo consumia, e foi isso que o fez, no penúltimo dia antes de completar os 23, dormir, pois... no dia seguinte, iria desafiar aquela criança que roubou o seu lugar.

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