Dançando com a Morte Brasileira

Autor(a): Dênis Vasconcelos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 106: Mil forças diferentes

O jovem ignorou e foi direto até a salinha. Teve uma surpresa ao entrar e fechar a porta. A segunda porta estava visível e, além disso, havia uma chave na tranca para destrancá-la.

— É para mim?

Tlrc...

Entrou e trancou-a.

Cabeça sempre baixa, cada passo o fazia lembrar do cansaço, além das feridas horríveis espalhadas pelo corpo. O cabelo já mais volumoso, o início de um possível black power. A roupa que recebeu com tanto carinho já estava toda desgastada, um pouco alargada, devido a tantas quedas, com o tecido sendo forçado.

O chinelo zoado que trouxe de casa foi perdido em meio às corridas. Descalço, seguia na torcida para que nenhuma bolha nas pernas, ou a principal do pé, estourasse. Perder sangue naquele momento o faria desmaiar... e o jovem sabia, pois a cada passo o sono aumentava, junto da visão mais embaçada.

— Por que... por que as coisas estão sendo assim...? Se sou um escravo, se sou sujo, inútil, por que só eu sou isso...? Se a escola está cheia de sujos como eu, por que eles podem sorrir e rir, e eu preciso ser educado e deixado sozinho...? — murmurava por uma resposta; a tristeza prevalecia nesses poucos segundos.

Desceu todo o túnel e chegou no quarto quilométrico. Não via o fim... mas lembrou de que...

— Não. Não tô sozinho aqui! Meu amigo que ficou! — A tristeza foi diminuída, a fraqueza deu lugar a uma última corrida naquele dia. Passou todo o trajeto, quase galopando, passos pesados, quando ouviu algo, e Robson ouviu também, o que o fez abrir os olhos para olhar.

O jovem chegou ao fim e, assim como Robson, viu uma cesta simples no chão, no último ponto em que viu Mirlim, antes de sair de lá. Dentro havia pães doces, bolinhos fofos e bem apetitosos, biscoitos com grandes gotas de chocolate e uma jarra de suco natural de maracujá.

Contracenando com tudo, havia três pães recheados com salada de ovo e uma garrafinha simples de água.

"Foi os agentes...?" pensou, lembrando deles levando os carrinhos com comida há pouco.

Thales e Robson desviaram o olhar da cesta ao mesmo tempo, olhando-se. A anomalia viu todas as feridas e se moveu, rastejando até o rapaz.

— E aí? — disse suave, rosto gentil, deitando-se no chão para facilitar para Robson.

A anomalia o engoliu, deixando só o rosto para fora, pois vaporizou as sujeiras do cabelo. Os inchaços, todas as bolhas horrendas, foram retiradas. O alívio e frescor tomavam conta do menino, que relaxava e esquecia do sono... que voltou quando Robson se retirou.

— Você sabe o que é isso? — perguntou depois de se levantar e ir até próximo dos alimentos. Sentou ao lado, era basicamente no canto entre a parede e a parede de rochas que socava e socava.

Olhou para Robson, mas o amigo não sabia falar e muito menos demonstrava uma resposta.

Mmm... Ah! — Trck!-Rrk! arrancou duas pedrinhas da parede e colocou-as no chão, entre ele e Robson. — Essa é Sim e essa é Não. Você me entende?

A anomalia voltou o corpo para o Sim.

— Legal! Eeeh... Foi a Srta. Mirlim que deixou isso aqui?

Apontou para o Não.

— Você sabe quem foi?

Não.

"Deve ter sido ela... ela é muito rápida, ele não deve ter visto..." pensou, observando o apetitoso café da manhã. Estendeu a mão... mas ficou receoso. — Você acha que eu posso comer? Ela não disse nada, e sempre deixava a minha ração molhada no chão.

Olhou para o amigo, e Robson não sabia o que responder.

Rrroonnm...

Seu estômago respondia, mas não era confiável.

"E se for um teste?... E se for para saber se sou obediente e não comer sem permissão...?"

Rrroomn...

Em palavras menos grunhidas: "come logo! Tô morto de fome, pivete!" Atendeu ao estômago. Levou a mão hesitante, mas não passou para a linda área; ficou nos pães com ovo e água.

— Essa é a minha ração... talvez não fique tão brava se eu só comer isso — murmurou.

Virou-se e já ia morder, quando viu os olhos esbugalhados de Robson o encarando.

— Você quer? — Estendeu um dos três pães. Robson hesitou. — Pode comer, eu falo que só eu que comi. Só eu vou ser educado, não se preocupe, amigo.

O olhar do amigo abaixou na direção do pão. Rastejou e então engoliu a mão, vaporizando o pão e agradecendo com um movimento alegre pelo sabor que nunca havia experimentado. Thales riu um pouco, aquele serzinho correndo e girando igual um disco de makita, porém molhado.

Comeu os outros dois pães e bebeu toda a água. Namorava a distância o restante dos itens, mas tinha receio demais de que, a cada item a mais consumido, aumentasse o grau da educação que já imaginava acordar recebendo. Ficou ali, sentado com as costas apoiadas. Robson mais à frente, não muito longe, atrás das duas pedrinhas...

Lembrou do Sim e Não.

— Robson...?

Os olhos se moveram no corpo e voltaram-se a Thales.

— Existem outros iguais a você?

Não.

— Não?! Você é único?!

Sim. Não.

Mm?! ...Então... existem anomalias da sua raça?

Sim.

— Você é como elas?

Não.

— Não...? Então... elas que não são iguais a você?

Sim.

Thales tentava entender; era um pouco confuso conversar com algo que não falava, e muito menos ter plena certeza de que ele o entendia.

— ...Você tem família?

Robson não respondeu, mas olhou para a grande parede à direita. Thales a olhou, Trak! e lascou outra pedrinha, juntando-a às outras.

— Essa é a Tinha.

Robson apontou para ela e Thales ficou triste, um olhar entristecido, vendo seu amigo que não conseguia muito mostrar o que sentia e, mesmo assim, no fundo daquele olhar, ele via um ser que se sentia perdido, sozinho e em perigo.

— Foi a Srta. Mirlim?

Não.

— ...Outra anomalia?

Sim.

— Da mesma raça?

Não.

Mm... Sua raça é diferente de você, mesmo você sendo dela, né? Mas, então... eles não são bons como você?

Não.

— Se pudessem me matar, eles me matariam?

Sim.

— ...Você me mataria?

Não.

"Então existem anomalias boas... Não são todas ruins... Assim como existem pessoas ruins, mesmo que a maioria seja boa..." Seus amigos e família passaram em sua mente, um sentimento de saudade forte.

— Você tem amigos?

Sim.

— ...Sente vontade de voltar para casa?

Sim.

Mm... Você mora no mato?

Não.

— Na terra?

Não.

— No...

Enquanto dizia, Robson agilizou as coisas e simulou ondas em seu corpo, deixando claro que sua casa era no mar, e Mirlim o tirou de lá.

— Ah! Na água... Não é perigoso? Peixes grandes ou anomalias lá embaixo?

Uma pergunta inocente. Também era muito perigoso andar na rua, trombar com alguém ruim, ser assaltado, abusado. Assim como na vida de uma pequena anomalia havia os perigos da natureza e suas incontroláveis anomalias, havia também no mundo "civilizado", "moderno".

Sim.

— ...Quando você voltar pra lá, e reencontrar seus amigos, você se lembraria de mim?

Robson subiu o olhar ao rosto do jovem e desceu, apontando para o Sim. Thales sentia sinceridade, mesmo em meio à melancolia. Robson não era o que foi um dia, ficou inteligente, mais forte do que era em natureza, mas isso custou o que ele era.

Foi forçado a ser outro "alguém", forçado a deixar sua casa, seu habitat, seus amigos, que, mesmo Errantes, tinham propriedade de Massacre ao viver em bandos... Sua aparência foi modificada, seu rosto não era mais seu. Suas nadadeiras... Ops... não eram mais necessárias. Um Sr. Batata, sem nariz, sem boca, orelhas, pele... hmmm... um estômago ácido? Derrete tudo, e ainda podia controlar o que derreter? Propriedade mudada, DNA modificado. Seu corpo, tudo virou sua geleia ácida.

Era só uma anomalia horrenda. Uma como milhares de espécies pelo mundo. Valeu a pena não saber mais quem você era? Morrer era mesmo a pior opção? A dor de todo o processo desumano, afinal... você não era, foi realmente a melhor opção, entre morrer nas mãos de Mirlim? Seus amigos o reconheceriam? Veriam você voltar e nadariam ao seu encontro? Ou seriam hostis com aquele que preferiu ser outro ser do que morrer sendo o que sempre foi?

— ...Você acha que um dia a Srta. Mirlim vai deixar você ir embora?

Robson o encarava e, lentamente, hesitante, como quem queria negar a resposta que daria, mas não conseguia, apontou para o Não. Thales desviou o olhar e apoiou a cabeça na parede, olhando para frente, para o nada.

— ...Ah...

Segundos depois, palavras da sua alma começavam a sair:

— Não sei o que ela quer de mim. Não sei se mentiram pra mim. Não sei nem quem sou eu. Conheci algumas pessoas, todos eram brancos, mas não me tratavam como a Srta. Mirlim. Me diziam que eu era igual a eles: osso, carne e sangue, mas quando olho para a Srta... eu me vejo como um sujo. Não sei se sou, não sei o que é verdade. Mas ela me faz sentir isso. Já passou na TV uma novela de escravos... Eu acho que todos lá eram tratados melhor do que eu estou sendo.

Robson não fazia ideia do significado da maioria das palavras usadas, mas o olhava, sendo um bom ouvinte.

— Eu... eu não sei o que ela é ou quer. Por que só eu sou tratado assim? O Escolhido... foi o que disseram, mas fui o escolhido pra quê? Pra... pra... pra quê? Receber educação? Todos os sujos da escola são melhores que eu? São mais educados que eu? Não precisam de educação...? Só eu? Todos estavam rindo... se divertindo no campinho de futebol... E-eu, em meio às lágrimas, sorrio... Sempre fui assim. Não tenho nada, não sou nada, mas ainda assim abraçava meu pai...

Thales começou a chorar.

— Tinha minha mãe para dizer que tava tudo bem... Tinha meus irmãos para alimentar, não podia desanimar. Não podia voltar pra casa sem comida, não importava se eu ficasse dias caçando, procurando algo... eu... eu não podia... mas mesmo assim, eu sorria, eu ria, eu tinha algo...

Se desmanchava em lágrimas, as mãos sendo apoio para o rosto.

— O que eu sou...? Eu só quero ajudar... Eu só queria dar a eles algo... orgulho, não sei... sei lá. Queria mudar isso, mudar tudo. Sair da pobreza, mas, cara... cara, eu não sei nem ler, nem lembro o dia que nasci... Só lembro que preciso sorrir e mostrar aos meus irmãos o exemplo de irmão mais velho. O irmão forte, o irmão que nem sei se eu sou. Eu não tenho irmão mais velho, não tenho um exemplo para dar exemplo do que ser... O que sou eu?

Robson chegou mais perto, encostando na perna do menino, tentando chamá-lo, mas Thales continuava com seus pensamentos fragmentados, sem respostas, em meio à exaustão física e mental.

— Sinto vontade de arrancar a minha pele... Se eu fosse branco, seria diferente? Se... se eu... Se eu fosse limpo, seria diferente? Não precisaria ser educado? Eu estaria aqui agora? Me olhariam com nojo? Teriam medo de... de chegar perto? A Srta. Mirlim me olharia como se eu também fosse um ser humano?

Silêncio... quebrado por fungadas.

— ...Às vezes eu penso que sou uma anomalia. Você é uma anomalia boa, mas, por todas as anomalias ruins, você paga por isso. Eu... eu acho que sou bom. Sou uma pess... ...Que... Sou bom, mas por outros da minha cor, sou visto como ruim.

Robson engoliu parte da perna do menino, que agora o olhou.

— Desculpa... Foi mal... Seei... lá. Foi eu que decidi. Eu que me vendi por 20 mil reais. Ninguém me arrastou. Eu mesmo me arrastei até esse lugar... Não sei por que tô chorando, desculpa por isso.

Blobhs!

Huumumhuhu!

Robson saltou no rosto do menino e o engoliu, limpando todas as lágrimas. Thales levou um susto com a brincadeira e tentou removê-lo; a anomalia estava fazendo cócegas, mas tocá-lo era impossível, não era sólido em parte alguma. As mãos entravam no corpo.

Pssh!

Saltou ao chão e olhava para o amigo gigantesco. Criou um rabinho e balançava; era fofinho, e Thales riu um pouquinho, vendo seu amiguinho fazendo graça. Rastejava para um lado e outro, andava na parede, teto. Só tinha um objetivo: fazer Thales esquecer tudo que disse, tudo que sua mente em conflito acabou deixando sair ao armazenar mais que o limite de espaço disponível.

Passou um tempo; os dois agora se encontravam deitados no chão. Robson encostado no peito dele, e Thales com o braço fechado, quase em um abraço, protegendo seu amigo mais fraco. Ainda era manhã, nem o horário do almoço havia chegado, mas, ainda assim... eram 15 dias acordado.

PAH!

Manhã seguinte chegou, e um chute no meio da barriga o despertou. Robson abriu rapidamente os olhos e viu Mirlim ao seu lado, olhando para Thales se contorcendo logo cedo, de dor, mas ainda assim não protegendo o corpo. Deixava-o livre para Mirlim golpear onde e como quiser.

— Sente em silêncio — rosnou.

Thales obedeceu.

— O que você comeu?

— Pão com ovo e bebi uma garrafa de água, Srta. Mirlim.

— Mandei?

— Não, Srta. Mirlim.

— Deixei para comer, mas já que não comeu, a anomalia vai.

Robson olhava para cima, a perna direita de Mirlim quase tocando seu corpo do lado esquerdo de tão perto. Mas, do nada, a mulher sumiu da sua visão, e, ao abaixar o olhar caçando-os, viu a cesta com as comidas em sua frente. Olhou para os dois, e o olhar da mulher era bem claro.

Engoliu toda a cesta e se encantou com a quantidade de sabores novos de uma só vez.

— Deixou pra mim mesmo, Srta. Mirlim? — perguntou, olhando-a, sem a mulher direcionar o rosto severo a ele.

Aham.

Bloblobloblobloblo...

Um som roubou a atenção.

Thales viu seu amigo criando bolhas de ar maiores que o normal em seu corpo, que saíam pela extremidade mais alta. Os olhos da anomalia lembravam mais uma pessoa tendo um orgasmo. Peidando infinitamente, experimentava o mais próximo do que seria algo como o sexo humano.

— O q...

— Todos os alimentos, exceto os pães com ovos e a água, tinham laxante. Caso tivesse comido mais do que a sua ração, seu verme, você estaria cagando sangue uma hora dessas.

— Não tem perigo pra ele, não?! — Um tom de voz mais alto que o habitual, a preocupação era nítida, escutando o motorzinho que parecia o fusquinha, vindo do seu amigo.

— E daí se tiver? É só uma anomalia. Me siga — rosnou, sem paciência, e saiu andando.

"Não! Não é só uma anomalia!" Não ousou respondê-la em voz alta, mas seu semblante gentil levemente se aborreceu.

Olhos fechados, braços cruzados, passos preguiçosos... Thales chegou próximo, e Mirlim murmurou, objetiva:

— Pule.

— Q...

PHAAAAAAAANNNNNNFU!-BAM!

Aumentando o buraco no formato do seu corpo ao lado da entrada do túnel, saiu e viu Mirlim entrar andando tranquilamente, mantendo os olhos fechados.

"Esqueci disso..."


Chegaram no campo de futebol, já consertado dos estragos antecessores. Mirlim parou e o menino não ousou dar mais nenhum passo. Manteve o olhar nela de costas, vendo o campo vazio ao fundo, daquele lindo dia de céu azulzinho... sem nuvens. Isso não era nada bom; o sol iria castigar sem piedade e, já acostumado...

"Quanto tempo vou ficar aqui?"

De repente, nanorrobôs começaram a nova operação. Um quadrado gigante, relativamente fino, se moldava flutuando. A tecnologia, um dispositivo era criado, sendo possível ver a olho nu, e Thales se admirou com aquele "enxame" de robozinhos trabalhando juntos.

Um quadrado imenso de cor cinza predominante e preto em detalhes e extremidades foi formado. No centro, o número 1, gigante, gravado em uma tela que parecia vidro. Aquilo era como um alvo, e desceu até tocar o chão, ficando em pé, imponente na direção dos dois... 10 metros de altura, e 10 metros de largura da mais pura nanotecnologia.

— Dê o soco mais forte que conseguir nessa coisa — rosnou, e Thales voltou a atenção a ela, que não se virou para ele. — Não se preocupe, não vai machucar a sua mão — completou, e caminhou para o lado, abrindo espaço para o jovem correr e golpear aquilo.

— ...O soco mais forte que eu conseguir...? — murmurou quase que só para si. Olhou para os punhos se fechando e abrindo. Subiu para o alvo, o olhar travado como uma águia caçando. — Eu consigo... Sniiiff...

Avançou, cortou o espaço entre os dois corpos e seu punho direito foi lançado sem dó.

BAAAAMM!!

O som ecoou e saiu da escola, sendo ouvido por carros que passavam pelas Av. Octávio Mangabeira e Simon Bolívar. O número 1 saiu por um momento, dando espaço para toda a coloração do quadrado piscar em vermelho de FALHA e aparecer o "dano" que o golpe causou.

"168 mil kgf? Só?" resmungou em pensamentos Mirlim.

A mulher mentiu; Thales segurava sua mão latejando. Uma dor que nunca sentira dentro do quarto. Era insana. A confiança que depositou na fala de uma pessoa que mostrava a cada dia que não se importava com você... era a mais pura inocência.

— Senh... sen... Srta. Mirlim, vo-você mentiu pra mim... — disse quase em prantos. Sentia que os ossos foram empurrados para trás.

— Não ligo. Faça mais uma vez, com a mesma mão.

— Po... por favor. Minha mão vai quebrar.

? Não se preocupe, só quero ver mais uma vez.

Thales a olhava. O mesmo início...

"Tá mentindo mais uma vez?" Não havia escolha. Soltou a mão direita e caminhou até próximo da mulher, do ponto onde disparou antes. Segurava o choro, e no instante em que seus olhos ganharam foco, sua motivação gritava que aguentava. Mirlim estendeu o braço esquerdo desleixadamente em frente ao jovem, bloqueando-o.

Não entendeu. Olhou-a, e Mirlim o olhou nos olhos.

— Essa sua forma de socar não tem personalidade nenhuma. Você não consegue ser mais que só um monte de bosta? Não consegue nem mesmo desenvolver uma forma de socar mais efetiva? — Mirlim desviou o olhar e deu dois passos desdenhosos, saindo de perto. — Correr e pular em um ataque é a coisa mais boçal, neandertal possível. Mais previsível que você falhar uma ordem minha. Ao invés de pular, avance com o pé colado no chão. Sempre olhe no olho, sempre avance seu golpe na altura da cabeça, e, quando o seu soco estiver indo para acertar, dobre os joelhos, abaixe o corpo e acerte o golpe em uma altura um pouco inferior.

"Pera..." Thales escutava abatido, mas aquelas palavras fizeram sentido em sua cabeça. "Tá me ensinando a lutar contra algo?"

— Execute o que eu disse — rosnou, voltando um olhar de canto de rosto para trás. — Agora.

Thales se concentrou. Os passos vieram em sua cabeça: o movimento de correr olhando no olho, lançar o soco na altura da cabeça e abaixar o corpo para acertar o...

"Peito!"

BmVul!

Disparou. 

O chão deu uma leve tremida, e seu ser surgiu no alvo, projetando seu punho fechado. O corpo desceu, o movimento foi exato e o soco chegou ao alvo. BAAAAAMM!! A dor foi mais intensa. Segurou a mão, forçando ao máximo para não chorar ou gemer alto.

O alvo piscou em vermelho, revelando a força que foi aplicada, antes de voltar ao normal com o 1.

"321 mil kgf? Não faz sentido. Não deveria quase duplicar." Olhou-o agonizando em silêncio. "Não bateu o mais forte que podia antes... ou sua força só aumentou?" O menino conseguiu colocar uma dúvida na mulher. 321 toneladas de força ao impacto não a impressionavam.

— Preste bem atenção. Vou dizer o que deve fazer só uma vez — murmurou desdenhosamente e começou a caminhar na direção e próximo do grande alvo.

Thales fingiu não estar sentindo dor e, quase como um soldado em continência, a observou explicando:

— O alvo tem um sensor piezoelétrico calibrado em Newtons, margem de erro inferior a zero vírgula zero um por cento. Mede impacto, tempo de contato, impulso linear... Está exigindo exatamente 9,80665 Newtons. Um quilo-força. Se passar disso — Tp Mirlim tocou com a unha do indicador direito no alvo e aquilo piscou em vermelho, revelando a força aplicada, 2 kgf, antes de voltar ao normal com o número 1 — o sistema não aciona o colapso. Protocolo de bloqueio baseado na curva de Hertz. Dissipação calibrada para carga única. O sistema ignora qualquer excesso.

Thales fingia entender aquela língua.

— Tem medição térmica, e o feedback sonoro tá desativado porque não achei um som legal... "Colocar um áudio meu gemendo não seria ético... embora eu ame me escutar..." deu-se uma pausa e pensou em sua galeria cheia de vídeos transando.

Olhou para Thales; era notório que o cérebro estava fritando.

— É um teste de precisão vetorial de força aplicada via biomecânica humana calibrada por feedback neural em tempo real. Em resumo: se socar forte demais, o alvo nem sente. Se socar fraco, também não. Tem que ser exato. Controle. Não força.

— ...

— Só precisa socar o alvo na força exata que ele requer. Aqui diz 1 — Tp tocou a unha, e o número mudou para 2 — Agora diz 2 — Tp tocou novamente e foi para 3 — Agora diz 3. É isso que irá fazer, porém, até o número 1000.

Thales entendeu, o semblante ficou confiante, mas, antes de abrir a boca e dizer que conseguia... Mirlim finalizou:

— Mas caso erre — Tp tocou novamente, o quadrado piscou em vermelho, logo revelou a força aplicada, um número tão grande que teve que ser resumido em 1E15 kgf. Em números: 1.000.000.000.000.000 kgf. Em palavras: um quatrilhão de quilograma-força. Para Thales, foi só mais uma piscada em vermelho, assim como aconteceu com ele — O número em que chegou volta ao 1 inicial.

A ficha começava a cair para o menino.

— Precisa acertar a sequência perfeitamente do 1 ao 1000. Errou uma vez, volta ao início. Tudo de punho cerrado. Não tem permissão para dormir, descansar ou fazer qualquer coisa que não seja executar a operação. Se não morrer no tempo que passará aqui, volte à minha sala — terminou seu murmúrio besuntado de desdém e saiu caminhando tranquilamente dali.

Thales afirmou com a cabeça, deixando o olhar sair do rosto dela ao chão. Ergueu as palmas abertas, olhou cada dedo de suas mãos. Era confuso, não eram apenas números. Aquilo lá era um 1? E depois do 1 vem o 2?

"São 10 dedos, né...?" Mirlim não havia saído completamente; sua preguiça de andar estava bem forte aquele dia, e ainda não havia passado da porta para chegar ao primeiro corredor dos que teria que passar para chegar em sua sala. Thales a olhou... e do fundo da alma criou coragem para pedir ajuda:

— Srta. Mirlim...?

Mirlim parou e virou um olhar de canto na direção.

"Não me ignorou!" — E-eu sou analfabeto. Não teria como me ensinar a contar os números? Não sei se consigo fazer isso sem saber nada. — Abaixou o rosto na súplica. — Pode me educar, me deixar sangrando para depois me ensinar, mas eu preciso saber como contar...

O rosto se manteve voltado ao chão, já o olhar da mulher continuava fixo. O silêncio era torturante.

"Já deve ter ido embora... né?" ele pensou, já aceitando.

— Olhe para mim.

Mas a ordem veio, e o menino ergueu o rosto, obedecendo.

"Colocar uma IA para ensinar ainda demoraria algumas horas. A capacidade cognitiva desse menino é bem complicada. Uma forma uga-uga, uma linguagem burra, que uma criança conseguiria replicar."

Mirlim já havia idealizado uma ideia quando ordenou, mas seu cérebro precisava de uma revisão, que logo foi executada. A primeira ideia era uma contagem de dedos, mas o número seria apenas falado.

"Preciso mostrar."

Dez quadrados, semelhantes ao principal, porém, com um metro de altura e largura, surgiram no campo, sendo moldados por nanorrobôs próximos de Mirlim.

— Todo novo número que eu falar, você olha para um novo quadrado, começando da esquerda para a direita, ok?

— Sim, Srta. M...

— Para de me chamar assim! É insuportável! — rosnou, chegando ao ponto de cerrar os punhos. No dia anterior, quase matou Bill e Will. O spam que Thales arrumava com isso a saturou absurdamente. — Só responda o que eu falo e abaixe a cabeça.

— Desculpa...

— Olhe o primeiro quadrado da esquerda — O menino olhou, e a contagem começou. — Zero. Um. Dois. Três. — Ia acompanhando assim como foi ordenado. — Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove. Repita apontando para cada um.

— Zero. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove.

— Olhe para mim. Você já entendeu a sequência. Só isso importa agora. Determinado momento irá chegar no um e o zero juntos. Depois de um tempo, no um com zero, zero. Não é necessário saber pronunciar esses números cheios, só entenda que, depois do um, vem o dois e, depois do dois, vem o três. Os números irão se substituir até chegar no mil. Um, zero, zero, zero. Rum... Espero que não tenha entendido. — Virou-se e voltou a andar — Volto para buscar seu cadáver em alguns meses.

"Eu consigo... Eu consigo!"

Thales abaixou o olhar e lançou-o de volta aos números.

— Tá... Não é tão difícil — murmurou baixinho e foi até o alvo para vê-lo mais de perto. — Então... se esse é o um, eu preciso dar um soquinho beeeem — Ergueu o punho cerrado e se aproximou lentamente — fraco! — Bm piscou em vermelho... e o menino percebeu... — ...Não vai ser fácil nada. Oito, zero, três? — Olhou os dedos e contou. — Três números!... Tem que ser só um...? E ainda o número um??!

A desesperança chegou cedo. Não era nem de perto um treino que o machucaria. Seu soco mais forte foi 321 vezes mais forte que o exigido no último golpe de precisão. Mas o menino só sabia socar forte... e fazer pizza. Mesmo com mais noção da sua força, aquilo exigia uma precisão nível cirúrgico... sem margem alguma para erro.

E assim... horas e horas foram se passando. FALHA, FALHA, FALHA. Aquele vermelho que aparecia e logo saia parecia zombar dele, minando a paciência que era tamanha daquele jovem adulto. Subia com dificuldade até as primeiras dezenas e logo voltava tudo com mais uma FALHA.

Os primeiros dias foram passando e passando. O vermelho, do nada, após uma insana contagem que já chegava a três números, era mais que assustador; o fazia dar um sobressalto. Mas o menino não desanimava, pelo contrário: o susto o acordava, tirava o sono para recomeçar com mais garra.

Via na frustração um novo erro que não iria cometer novamente. O início, as primeiras centenas, já foram mapeados. A precisão do impacto do seu punho cerrado. Tu-tu-tu-tutututu! Seus soquinhos cadenciados tocavam rapidamente e, ao afastar, o número mudava para o próximo estágio.

13 dias se passaram, e o jovem ainda estava lá. Seu recorde foi nove, um, um... mas errou, e depois do erro parecia ter desaprendido. A pressa começou a atrapalhar. Seus soquinhos cadenciados, no peso certo, começaram a falhar. Chegavam no sete, zero, zero e não passavam dali.

A fome e o sono já pesavam, e a paciência que manteve por tantos dias... deixava-o sozinho, cada vez mais e mais. A dor nos olhos, mantê-los arregalados embaixo do sol, embaixo de duas fortes chuvas que tiveram na semana, embaixo de noites frias, à mercê dos ventos que faziam naquela região.

— Pelo amor de Deus, Thales. Pela Nossa Senhora. Foca, foca! — apoiou as mãos na cabeça. A dor era pulsante. Tantos números, tantas repetições. Estava ficando louco, biruta. O vermelho piscava em sua mente. Não errava mais pelo punho, errava por achar que errou.

Agachou no chão, os olhos cheios de veias, encarando a grama.

— Precisamos comer, não é? Você quer dormir, não quer? Vamo logo... Eu confio em você. Temos que sair daqui. Robson tá sozinho lá embaixo. Você quer fazer companhia, não quer? Quer conversar com alguém, não quer? Quer parar de contar, não quer? Então vamo... Vamos...!

Ergueu-se, retirou as mãos da cabeça, fechou o punho direito e posicionou próximo do objetivo.

— Eu consigo. Eu consigo. Srta. Mirlim... a senhorita não vai voltar pra pegar meus ossos, porque eu vou sair daqui e vou te mostrar que sou útil, que não sou o que pensa de mim. Não gastou seu dinheiro à toa. Eu valho aqueles 20 mil. Se a senhorita me escolheu para te servir... eu vou provar que mereço servir você!

Fechou os olhos, o suor escorrendo pelo rosto; o calor daquela tarde era de 32,8°C. Respirou fundo, a testa um pouco curvada, antes de erguer o olhar e começar... Tu-tu-tututu...

— Um. Dois. Três. Quatro. Cinco...

Passou mais um dia inteiro... e, no final da madrugada do segundo, com o sol nascendo ao fundo, Thales chegou ao um, zero, zero, zero... Puff! Sua voz tremulava. Seu soco, com o sucesso, com a marca da vitória, ainda estava levantado. Não acreditava. Seus olhos se encheram de lágrimas, junto do sorriso de ponta a ponta que se abriu.

O alvo desapareceu, voltou a ser bilhões e bilhões de nanorrobôs espalhados pelo ar da ADEDA de Mirlim Schmidt. Thales mantinha o sorriso eufórico. Acabou. Enfim acabou. Sem reação, sem saber se já deveria ir até a sala dela, nem notava que o Sr. Sandro o olhava de longe, com um sorriso meigo por vê-lo sorrir, mesmo que visivelmente destruído pelo cansaço.

O velho não quis se revelar. Não queria que o menino ficasse triste por ter que se despedir mais uma vez ou algo assim. Em sua mão, uma maleta gorda. O homem demorou 30 dias para criar coragem e ir até lá pegar o dinheiro que pediu ainda na formulação do contrato, em espécie, pois era mais fácil para comprar suas drogas "legais".

"Tchau, meu jovem..." murmurou em pensamentos antes de se virar e seguir para a entrada principal.

Thales correu igual um doido, só queria chegar na sala de Mirlim logo, mostrar a ela que não era um inútil, que tinha o seu valor.

— Eu disse! Eu disse! — cortou os corredores e, ao chegar no corredor da sala dela, viu a mesma caminhando com os braços cruzados, indo até a porta da própria sala. Quando ouviu passos, virou um olhar de canto para trás, e Thales viu o profundo rosa, mais forte que o sol, com o típico enfeite entre os lábios, o palitinho do pirulito.

Parou a corrida, cerca de dois metros de distância dela, abaixou a cabeça e disse com tom alegre:

— Eu consegui! Acabei a operaç...

— Demorou 15 dias pra isso? Sério?

O ânimo, a alegria, foram embora instantaneamente.

Ram... Tanto faz. — Desviou o olhar e rosnou preguiçosamente sua ordem: — Volte pro seu quarto. Amanhã vou buscá-lo. Durma. Não quero um peso morto atrás de mim. Não sabe contar. Não sabe ler. Deveria ter vergonha. Deveria se esforçar mais. Há tanta gente de verdade que queria estar no seu lugar, e você só me decepcionando e mostrando o quanto não merece estar perto de mim.

Thales não aguentou e começou a chorar.

— Por favor, me descul...

— Não quero escutar sua voz. Muito menos desculpas. Já mandei voltar ao seu quarto. Suma.

O menino se virou e foi direto até a salinha... seus olhos deixando as lágrimas saírem, profusas, salgadas... queimando seu rosto tão gentil. Mirlim olhou-o de canto por um momento breve; seu rosto não mostrava toda a severidade passada, e entrou em sua sala, onde continuava deitada, babando no teclado ligado, piscando em RGB em mais uma manhã.

O clone de nanorrobôs se desfez, formando um chip que pousou sobre a mesa para atualizar Mirlim com todos os dados das análises da sua supervisão sobre Thales durante os incessantes e torturantes 15 dias, além de também o pagamento do contrato e tudo que Thales destruiu no estabelecimento do Sr. Sandro no mês anterior.

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