Dançando com a Morte Brasileira

Autor(a): Dênis Vasconcelos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 105: Nanorrobôs

Manhã seguinte chegou.

Mesmo com remédios, Sandro não conseguiu fechar os olhos até o sol raiar. O medo, o dinheiro envolvido. Enfim, entendeu por que aquilo era superfaturado: não era o aluno em si, era para quem iria treiná-lo.

Achava Mirlim bonita, sensual; isso mascarava qualquer outra coisa. A aparência externa importava muito mais que a interna. Ninguém jamais diria que Mirlim poderia ser abusiva, só olhando-a em uma entrevista ao jornal na televisão.

"Tenho quanto tempo para isso...? Minha vida vale uma falha? Se eu não conseguir... eu morro? Essa mulher é uma traficante de gente...? Meu Deus... Escravos? Quantos...? Não... Não! Não tenho nada com isso. Só faça o que está no contrato." Seu olhar ainda assustado, sua pele clara dando lugar a uma olheira levemente roxeada por baixo dos olhos.

Ficaram mais confiantes.

"É só delírio..." pensou, erguendo-se para ir até o quarto do menino. "Por que está com medo de pôr em palavras... então?" Mas, ao começar a caminhar, sua mente brincava consigo mesmo, o medo conversava com a cabeça sem respostas. Os olhos voltaram a ser amedrontados, mas seguiu até Thales. "Não disse isso! É só delírio!"

Chegou; Thales ainda dormia igual pedra. Decidiu deixá-lo descansar mais um pouco... e mais um pouco... e mais um pouco. Horas e mais horas se passaram, o menino não acordava... mas estava vivo, só pondo em cheque os meses sem dormir.

Cli.

Apagou as luzes e se virou.

— Amanhã deve acordar... Quanto tempo fiquei acordado? — se perguntou em murmúrio. Olhar baixo, cansado por ele mesmo não ter tido o privilégio do menino na noite passada. Ergueu o rosto... viu um vulto humano, com exatos 1,66 metros de altura... que sumiu da mesma forma que foi visto.

Piscou.

Mmn?

Foi mais rápido que seu desempenho com sua mulher. Seguiu até seu cantinho, Puf... deitou-se e apoiou a cabeça no travesseiro... mas então sentiu-o um pouco duro. Ergueu a mão e o tocou; havia um calendário por baixo dele, marcado no dia 24 de maio... era 24 de abril. Exatos 30 dias.

— Tenho 30 dias? Gulp... só isso? Vai dar?

O prazo do governo era seis meses. Com esses 30 dias, já se acumulariam 94 dias dos 182 que Mirlim possuía para treinar alguém e conseguir que fosse avaliado em rank A... pela própria Alissa. Era só mandar qualquer coisa que Alissa diria que era A para o governo, mas a segunda mais forte não queria dessa forma.

O medo de dormir o tomou novamente, mesmo sabendo que não iria ser morto, não dentro do prazo. Precisou tomar três comprimidos de zolpidem. Já tinha insônia normalmente pelo estresse diário. Costumava escutar vozes, não de seres do além, mas de seus funcionários e dos filhos que trabalhavam com ele.

Era sempre a mesma coisa: ouvi-los conversando, diálogos que sua cabeça ansiosa mesmo criava. Sons da cozinha funcionando, móveis se arrastando, passos sapateando. Esquizofrenia? Sua ansiedade sempre foi muito presente, mas o preconceito de ir descobrir o que tinha em um psiquiatra era maior. Julgava-os como mentirosos, pessoas que o enrolariam eternamente, para ficarem roubando dinheiro toda semana para bater um papo de menos de uma hora.

A velhice chegou, e as coisas só se intensificavam. Ao menos, enquanto estava trabalhando, fazendo suas pizzas, tudo se calava, tudo funcionava como uma dança suave, em um ritmo perfeito, ao som de uma música clássica acompanhada de uma taça de vinho importado.

Mas, ao sair disso, precisava das recompensas imediatas. O sexo com sua mulher já nem podia ser chamado disso. Mal começava e já terminava. Não conseguia segurar, aguentar... aproveitar. A sensação tinha que vir rápido, e o homem nem se prestava a tentar com os dedos ou língua retribuir, mesmo após a frustração de mais uma "transa" com sua mulher.

O vício em remédios veio com força. Mesmo sabendo do risco de overdose... não dava a mínima, precisava dormir, precisava acordar no dia seguinte para fazer suas pizzas... mas o consumo excessivo criou uma dependência e, agora, era um viciado que tentava esconder isso da família.

Comprar seus remédios era quase igual a comprar drogas ilegais. Precisava de receita, então, precisava também comprá-las de alguém. Quando não tinha seus remédios, tremia como se sentisse frio, se masturbava na busca da recompensa, uma, duas, três, vinte vezes escondido se fosse preciso, e mesmo assim, não era suficiente.

Os três comprimidos nem ameaçaram causar efeito.

— Preciso dormir...

Pegou a cartela escondida dentro do travesseiro. Restavam três comprimidos naquela, e o homem não hesitou. As mãos tremiam, tirou-os do tablete e jogou na boca, engolindo de uma vez. A tremedeira passou, a sensação de recompensa veio de imediato ao consumir... mas junto dela, uma forte ânsia de vômito.

Bleargh!

Vomitou todas as pílulas.

Seu corpo não aguentava mais aquelas substâncias. A ânsia continuava, ameaçava e ameaçava, e continuava vomitando tudo que comeu no dia. Aquilo era mais que rotineiro: vômitos excessivos. Sorte. Já era para estar morto.

Mirlim se aborreceu. Observando-o por uma câmera flutuante no cômodo do homem, câmera esta que era impossível enxergá-la a olho nu, Mirlim murmurou raivosamente em seu escritório:

— Contratei um porco de um viciado. — Ergueu uma mão dramaticamente lenta, uma preguiça mais que desleixada, e com um mover simples de dedo, Pahfsh... o pizzaiolo caiu desacordado sobre o próprio vômito.

Manhã seguinte chegou. Sandro acordou com o vômito seco no rosto e na roupa. Desesperado, limpou tudo antes do pessoal chegar e vê-lo naquela situação. Limpou tudo, tomou uma ducha no banheiro dos funcionários e foi até Thales... que ainda dormia como uma rocha.

— ...Preparar algo para ele comer antes — murmurou bem baixinho e saiu para fazer uns biscoitos fresquinhos. "Eu consegui dormir?" Não se lembrava de muita coisa além de cair no chão vomitando, mas, ao entrar no seu lugar seguro, as vozes se cessaram, e o homem começou a trabalhar no café da manhã do seu projeto de vida... ou morte.

Um tempo se passou, os funcionários já haviam chegado e começado a mandar as marmitas e pizzas que o pessoal dos aplicativos pedia. Sandro levou os biscoitos doces com um copo de achocolatado até o quarto do menino, que ainda hibernava como um urso polar.

— Thales, acorda.

...Nenhuma resposta.

Colocou as louças em uma mesa e tocou no jovem, balançando.

— Thales... acorda...

Crash!

O menino acordou assustado, sentando-se, mas ao descer o braço, pousou na cama e a dividiu ao meio. Olhou assustado e voltou o olhar a Sandro, que dividia do mesmo, após uma esquivada de medo.

— Desculpa! Desc... — Seu tom era alto, suplicante.

— Calma! Calma! Relaxa! Não ligue pra isso...!

O silêncio tomou conta.

A vergonha ainda presente no rosto do jovem. Sandro lembrou do café, então pegou e foi até o jovem.

— Acha que consegue comer sozinho?

— ... — Thales abaixou o olhar. Um sentimento angustiante.

— Ei, ei!

Ergueu-o.

— Toma, abre a mão. Vamos tentar.

Obedeceu.

Sandro soltou um biscoito e, quando o jovem foi segurá-lo, Creck! A crocância foi escutada, mas o biscoito se desmanchou, tornando-se uma massinha de modelar... O jovem não aguentou. Lágrimas surgiram em seus olhos... e começaram a escorrer, por mais que segurasse.

— Desculpa... Desculpa, eu sou sujo, uma aberração. Um inútil.

— Ei, ei! Não fala isso! — Se aproximou um pouco mais, mas, quando Thales se moveu um pouquinho para se sentar melhor no chão, o pizzaiolo se afastou em um susto abrupto.

Thales notou... e abaixou o olhar.

— Viu... você sente nojo de mim também...

— N-n... — Moveu a cabeça, olhava para os lados procurando uma resposta. — Desculpa, eu... eu não quis. Não foi por querer!

— Mas, mesmo assim, fez...

— ...

O silêncio voltou.

O menino continuava com lágrimas silenciosas, até que se curvou, apoiando as mãos no chão, comendo com a cara colada na massa que esmagou. Sandro não aceitou, ajoelhou e tocou nos ombros dele, erguendo-o para olhá-lo.

— Não coma isso assim... eu te dou, me desculpa.

— Eu já sou acostumado, não se preocupe, meu senhor — murmurou e desceu o corpo. Sandro tentava segurar, mas era inútil. Thales levantou por vontade própria, não porque o velho conseguiu ter força suficiente.

— Thales, desculpa, desculpa. Eu não sei o que tá passando com ela, mas eu não sou assim...

O menino não dava ouvidos, continuava comendo, passando agora para os ainda inteiros, que foram deixados no chão, dentro do recipiente. Comeu tudo e ergueu-se, ignorando, de certo modo, o velho, que o olhava com olhos arrependidos, olhos que gritavam por desculpas.

Andou até a mesinha, levou a mão até o objeto levemente quente... e teve medo de quebrá-lo... mas o enfrentou. Sua mão cobriu tudo, e, ao fechar lentamente, Trlkshshs... quebrou, e o líquido derramou pela mesa, respingando no chão.

Bebeu assim mesmo e, ao acabar, virou-se para o homem.

— Obrigado.

Sandro desviou o olhar, um braço segurando o outro... triste.

— Por favor... me perdoa.

— Não preciso, só dê sua ordem, senhor. O que é para mim fazer? Amassar aquela massa?

— Não se sujeitar a ser tratado como um animal.

— O... oi?

— ...Essa é minha ordem. Você é gente, assim como eu. Tem carne, ossos e sangue, assim como eu. Não se diminua. Do fundo da minha alma, me desculpa. Prometo nunca mais me afastar. Nunca mais fazer qualquer coisa que o faça se sentir menos que eu.

— Mas... mas eu sou.

— Não, meu jovem, não é.

Sandro se aproximou e, sem medo algum, Phaf! abraçou Thales. Era suicídio; o jovem não tinha controle algum... inexistente. Um toque poderia deixá-lo aleijado... ou morto. Um velho, com ossos fracos. Apostou tudo. Sentia-se culpado demais. Seu abraço nem mesmo chegou perto de envolver Thales... Mas o abraço que Thales fechou o envolvia como um urso.

Tocou o velho... um toque duro, forte. Como uma coberta de aço, mas quente, quente do calor humano, do cuidado, do quanto se segurou por saber que aquilo era precioso, que aquilo era delicado, algo que tinha que ser cuidado, que não podia ser quebrado.

Sandro abriu muito bem os olhos. O abraço era muito desconfortável, mas funcionou. Não era uma massa que não possuía vida. Quando foi aplicado o valor, algo que importava para o menino, ele conseguiu, mesmo que ainda de forma muito ruim, ser cuidadoso.

Ergueu o rosto, olhando para cima. Não o via direito, mas mesmo assim disse:

— Somos iguais, rapaz. Você só é muito mais forte e grande. Eu confio em você, é capaz de fazer uma deliciosa pizza, só precisa confiar em mim! — Soltou o abraço, e Thales, tocado e sem mais lágrimas descendo, soltou, olhando-o.

O homem ergueu a mão aberta, e Thales levou a sua até ele, mantendo cuidado. Sua palma era quase o dobro do tamanho, sem contar a grossura daquele punho. Claro, o velho era baixo e meio franzino, com seus 1,62 metros.

Sentiu a palma dura... mas ainda assim podia sentir, sem sentir dor... como sua mesa teria sentido se fosse viva.

— Viu... Você consegue se segurar. Sou delicado... um velho já com o pé na cova, mas, meu jovem... você precisa ser mais delicado, gentil, suave... precisa se conter mais, se quiser fazer uma pizza, uma pizza de respeito.

— Mas... senhor. Ela disse para mim ficar mais forte. Diz que eu sou fraco, que preciso ficar mais forte! — Afastou a mão, fechando-a para olhá-la cerrada.

— Não estou pedindo para ficar ou ser mais fraco. Estou pedindo para você aprender a controlar a sua força. Você gostou da que comeu ontem?

Uhum... muito.

— Então... Você foi deixado comigo para aprender a criá-las. Mirlim ordenou isso. Ordenou que eu o ensinasse e, quando você aprendesse a fazer com perfeição... bom... haha, ao menos, aos meus olhos, você poderia voltar. Ela disse que você era o escolhido, e que tinha que continuar seu treinamento o quanto antes.

Thales o olhou profundamente, mesmo que sem querer. Se perdeu em pensamentos, lembranças dos agentes dizendo aquela palavra.

"Mas o que é esse treinamento...? Eu sou um servo... Ela quer que eu faça pizzas para ela comer...? — Senhor, o que ela quer de mim...? — disse com o tom mais sincero e infantil existente, confuso, perdido.

Sandro não sabia o que responder.

...Mm... Talvez ela goste de pizzas, não sei. Quer treiná-lo para ser seu cozinheiro particular, algo assim. Não sei bem o que pode ser, ela não disse muito, e o que eu perguntava, dificilmente respondia.

Thales abaixou rapidamente o olhar.

— ...É melhor que ser educado. Dói muito...

"Hm?" Não respondeu, só ergueu um soquinho na direção dele, com um sorriso. — Toca aqui, e vamos continuar o seu treinamento!

Thales olhou a cena. Fechou a mão e a levou até lá. Tp... realizaram... e o homem se virou para irem até a cozinha. Ao sair primeiro da sala, na virada de ponto cego do menino, abraçou a mão quase chorando de dor, mas ao menos estava inteira.

Thales passou, e o homem mantinha um sorriso no rosto como se nada estivesse acontecendo.

— Bora lá!

— ...Bora! — respondeu após um pequeno intervalo, mas acompanhou o sorriso gentil.


O dia foi como o anterior. Quando chegou a noite, os filhos de Sandro trocaram a nova mesa destruída por outra que chegou no meio da tarde, encomendada por Sandro. Todos já haviam ido embora. Sandro conseguiu convencer Thales de se deitar na cama, mesmo que ela tenha cedido ao seu peso.

O colchão ajudava, querendo ou não, tendo se tornado um papelzinho ou não, era melhor que o chão. Sandro tremia igual a um lunático... O dia de trabalho acabou, agora era hora de dormir. Sandro... Sandro... As vozes não paravam, seus funcionários e filhos o chamavam. Queriam ajuda, queriam auxílio em suas receitas.

Começava a suar gelado... seu remédio havia acabado na noite passada. Não queria deixar o lugar, não tinha como ir procurar e comprar a receita de um conhecido médico... tinha mais medo de sair e Mirlim não gostar do que de fato suprir seu desejo. Se afundou no banheiro, desfivelava o cinto com dificuldade, era como se estivesse fraco, sem força para puxar aquele ferrinho e então caiu dormindo.

Mirlim moveu um dedo. Imaginou-se tendo um apagão e mandou em mais uma noite para o seu exótico professor contratado. Seu olhar era severo, sentia nojo daquele homem, mas era necessário. Fechou a aba da câmera e voltou aos seus estudos... experimentos remotos.

Infinitas palavras pipocavam em sua tela, lia-as com perfeição cirúrgica, discando ainda mais rápido do que o computador conseguia computar. Seu pirulito continuava adoçando sua boca, como sempre, mas o gosto de não conseguir o que queria, rápido como pretendia... era amargo demais.


A manhã seguinte chegou.

Sandro acordou com a cabeça apoiada na parede cinza de uma das cabines sanitárias. O banheiro do seu estabelecimento possuía três cabines e três mictórios. Um belo banheiro de restaurante, limpinho, bem cuidado. Sua cabeça doía, era como uma ressaca. Piscava sem entender, olhou para baixo, viu-se sentado, usando suas roupas... e sem cheiro nenhum de sêmen.

— O que tá acontecendo? — ergueu-se parecendo um bêbado. Trlic... Destrancou e saiu pela porta, vendo no espelho o número 29 escrito com batom rosa. Arregalou os olhos, espantado. Correu até lá, Rasg-Rsg! pegou papéis descartáveis para secar as mãos, Shuaa... molhou-os e esfregou como se sua vida dependesse de limpar aquilo.

Demorou um pouco, mas limpou.

"Vai dar... Vai dar... Calma, calma..." Sua mão tremia. Correu até a cozinha, correu até o lugar que lhe fazia companhia. Entrou, e foi como passar pelas portas do céu. Se acalmou de imediato, vendo suas panelas, talheres, tudo ali, limpinho, brilhante. Com um silêncio em sua cabeça, foi preparar o café da manhã de Thales.

Os dias foram se passando. Thales entendia certinho, só tinha dificuldade na execução, mas a cada dia melhorava, ficava mais delicado no toque, amassava com mais técnica. Mas assim como a evolução do menino progredia, a abstinência do homem também. Porém, Mirlim o apagava antes de retirar a minhoca flácida das calças.

Dia 29... Sandro só tinha mais um dia. Era aquele.

"Hoje é o dia... Thales precisa conseguir fazer essa pizza hoje... Hoje..." murmurou em pensamentos, vendo o 1 mais sinistro já desenhado no espelho do seu banheiro. Nem mesmo parecia batom rosa, parecia sangue.

Limpou tudo, preparou o café e Thales já estava diante do seu desafio final. Não sabia que aquilo poderia custar a vida do seu professor, mas aquilo era uma prova pessoal, a prova que todo o treinamento, todos os ensinos, a arte, a dança de como se amassava, como se preparava uma pizza... iam ser colocados à prova ali.

Toda a cozinha estava presente, todos os funcionários olhavam-no. Deram uma pausa no preparo da feijoada e do escondidinho de carne seca que seriam os pratos do dia no delivery, fora as pizzas. Tudo para observar Thales, que já se sentia em casa naquele lugar, acolhido por aquelas pessoas.

— Thales... só faça como aprendeu. Você é mais que capaz, vamos comer a sua pizza hoje, e eu sei que será uma das melhores que vou provar antes de chegar meu último dia na terra.

Clap! Clap! Clap!

Todos aplaudiram.

Thales o olhava com brilho nos olhos. Foi mandado fazer um avental e um uniforme sob medida para o garoto, e naquele momento ele os usava. Curvou a cabeça em resposta e se preparou para confeccionar a iguaria italiana.

Fuuu... — suspirou fundo.

— Pode começar!

A ordem veio, e as cenas seguintes foram mágicas... Uma dança sem igual, um estilo próprio, embora inspirado em seu professor. Soltava os ingredientes com uma naturalidade mais que respeitosa. Cada passo do processo era um ritual meigo, sublime.

As ligações a cada amassada, a massa redondinha, brilhando com as pinceladas. A mesa com farinha, a massa sovada sendo aberta. Aquilo rodava nos dedos rígidos, mas macios do jovem, que a abria no ar, de olhos fechados, sentindo-a como se fosse parte de si.

Rodou-a sobre a mesa, dobrando as bordas com perfeição, como seu professor lhe mostrou centenas e centenas de vezes. Sandro mantinha os braços para trás, lúcido, sua mente imaginava a música que tocava na cabeça do menino, realizando um trabalho tão lindo.

O molho foi preparado no dia anterior e, como foi sempre lhe mostrado, não poupou queijo, não foi mesquinho com a calabresa, mas foi negacionista com a cebola... credo, ácido demais. Os ingredientes se completavam no quadro delicioso formado.

Pegou a pá de pizza e a girou como um mestre shaolin, rodando um bastão. Avançou com seu golpe, Vup! e a pizza entrou a bordo da pá com perfeição. Todos observavam boquiabertos, ao lado do jovem que ergueu e levou a pizza ao forno.

Clap! Clap! Clap!

Um sorrisão se abriu naquela montanha e, olhando a todos, viu seu professor com um sorriso que não era apenas de boca, mas também de olhos... de rosto. A pizza foi assada, comeram e se deliciaram... Thales foi aprovado... mas havia o teste final.

Naquela tarde inteira, trabalhou como um funcionário do restaurante. Ajudou e preparou diversas pizzas que foram vendidas. O dia foi produtivo, bem trabalhado, e no final, após o menino tomar uma ducha, ao sair do chuveiro, Sandro segurava uma toalha e uma roupa que comprou para ele.

Uma regata de bodybuilder preta, com um dragão estampado, pois, em suas conversas, Thales comentou que gostava bastante de jogar Mortal Kombat 1 com seus irmãos, em seu Mega Drive. Junto da blusa, uma bermuda básica de treino, cor cinza, e uma cueca.

O homem não pensou direito em surgir ali no banho, ficou envergonhado vendo Thales com a peça mole, maior que a dele no auge da dureza. Fingiu naturalidade, fechando os olhos para facilitar.

— Mandei o Bruno ir comprar roupas para você. As suas estão uns trapos. Ele não achou nada de Mortal... o jogo que você disse, mas achou essa blusa com um dragão, espero que goste! "...E que a cueca sirva."

Thales ficou feliz com o gesto e abraçou o professor... pelado, ainda molhado.

— Obrigado! — disse com carinho, olhos fechados, tentando passar seu sentimento de gratidão pelo gesto, mas o que passou foi o encostar da peça no homem, que já quase explodia de vergonha.

— N-não... relaxa — disse afobadamente, tentando se afastar sem parecer hostil. Entregou a toalha e se virou quase tonto, deixando a roupa sobre a pia. — Vou ir dormir, boa noite.

— Boa noite! — respondeu, secando os cabelos.

Sandro saiu, indo ao cantinho que dormia. Não estava sentindo abstinência... se masturbar agora pareceria meio gay. Isso influenciou. Deitou, a cabeça apoiada, olhando o teto. Era estranho. Sentia-se estranho. A vontade de se dopar era a mesma de não fazer isso. Girou na cama, olhando com o corpo deitado do lado esquerdo.

— Ela me fez dormir por um mês... — murmurou, em um tom agradecido, esperançoso... doce. — Eu... eu preciso mesmo de remédios? Não... não preciso. Eu consigo mudar! — murmurou em um tom mais alto, animado, perseverante. — Não preciso disso. Gastar todo esse din...

Mirlim moveu o indicador.

— Precisa é ser internado, seu viciado de merda — respondeu-o com voz arrastada. Sandro, agora, babava o travesseiro. Saiu da tela da câmera e voltou a trabalhar.

A manhã seguinte chegou. Thales acordou antes mesmo do professor, mas o aguardou no quarto. Sandro foi até lá sem fazer café desta vez. Viu o menino sentado no colchão no chão e logo disse:

— Seu treinamento acabou. A Srta. Mirlim deve estar o aguardando na sala dela.

Thales se levantou e caminhou até ele. O abraçou.

— Senti que ontem seria meu último dia aqui mesmo. Obrigado por me ensinar a fazer pizza. Muito obrigado, Sr. Sandro.

Foi abraçado de volta.

— Relaxa. Até qualquer dia, quem sabe. Sua pizza é ótima, ela vai gostar.

Soltou, Thales afirmou com a cabeça.

— Você não quer vir comigo até lá?

— Eu não quero chorar. Vai ser difícil demais se eu for até lá...

Thales soltou uma leve risada.

— Então tá. Tchau!

— Tchau.

Sandro sentiu o momento, embora tentasse mostrar-se forte. No início, tudo era pelo dinheiro, depois tudo se tornou um sádico jogo mortal... e por fim foi finalizado com ele se apegando ao rapaz e sentindo o tchau profundamente.

"Espero que ela não maltrate mais você... meu jovem." Seu olhar e expressão mostravam que não acreditava no que dizia, mas sabia... "Não há nada que eu possa fazer... desculpa por te deixar voltar até lá..." Saiu andando, uma lágrima escorrendo. Foi até a cozinha e então percebeu o sentimento.

Sua cabeça continuava pensando no jovem... que triste...

"Que triste vai ser essa cozinha sem você quebrando tudo e me olhando com vergonha..."

Thales saiu sozinho e seguiu até a entrada da escola. Se perdeu em meio ao ambiente. A escola já estava aberta, alunos transitavam para todos os lados. Thales olhava de forma diferente. Notou que havia mais crianças negras que brancas, era quase um mito um aluno de pele clara. Talvez, a cada 100, 5 fossem.

— Não tô entendendo.

Não se lembrava de como chegar na sala de Mirlim, então foi andando pelos corredores e acabou chegando ao campo de futebol, onde viu diversos alunos treinando. Um treino muito diferente do que ele passou... Treinavam artes maciais, não um ou dois estilos, mas diversos.

Mirlim sacou logo o que acontecia na Bahia. O que Alissa disse pesou na decisão. Seu primeiro relatório, enviado diretamente para o governo, foi redigido e enviado, informando que mandou todos os professores da filial da Bahia para outras ADEDAs pelo Brasil que estavam precisando de professores. No lugar, contratou dezenas de professores de artes marciais diversas, para que os alunos pudessem escolher qual aprender e treinar até o fim.

Os baianos não possuíam magia, mas se conseguissem um outro Thales, já valeria o esforço.

Thales passou uns minutinhos observando os movimentos das crianças, os treinamentos simples, calmos, sem brutalidade, ameaças ou espancamentos. Só crianças até mesmo se divertindo com os amiguinhos, nas trocas de papéis de quem executaria o golpe e quem desviaria.

Ficou confuso, abaixou o rosto pensativo e seguiu caçando a sala de Mirlim. Achou o corredor certo. A porta da mulher estava aberta, e ao chegar mais perto, conseguia escutar, Trerrerrrererrerleclec! o teclado sendo espancado pelos dedos velozes.

— Licença, Srta. Mirlim...

Entrou... e Mirlim o ignorou.

Parou diante da mesa; a mulher continuava discando e discando, o pirulito sempre presente. A demora por qualquer palavra, qualquer interação, deixava a mente do jovem à mercê dos pensamentos sobre o que viu no campo, sobre o que passou, sobre o que os agentes disseram, sobre o que era... ele. Deixou a curiosidade sair, criou coragem, e seus lábios se moveram em um desabafo da alma:

— Srta. Mirlim... O que eu sou? O que estava no contrato? Eu fui vendido como escravo? Você comprou a minha família? O que é isso de escolhido? Aqueles dois mentiram? Falaram que eu era o escolhido, que iria treinar e me tornaria um exterminador... Ma... mas e... eu só. Me... me desculpa... ma...

Era muito difícil; sentia dor só de pensar em contestar o fato dela educá-lo. Sua mente o prendia na ideia de ser propriedade dela, de ser de fato um escravo que merecia apanhar se não obedecesse... mas ele queria saber, queria a resposta.

— Desculpa... Desculpa... Ma... mas por que você me colocou lá embaixo? Por que eu preciso ser educado? Isso não parece um treinamento, Srta. Mirlim... E-eu sou só um escravo. D-desculpa se eu estiver desrespeitando você...

Trerrerrrererrerleclec!

Mirlim continuava cagando para ele.

— Pode me educar, me colocar no meu lugar sujo — seus braços não sabiam como se portar, segurou o esquerdo com a mão direita, cabeça baixa, só desabafando — se eu estou fazendo algo errado. M-mas... eu preciso saber o que eu sou! — soltou os braços, meio rígidos para baixo, tremendo com as palavras e seus punhos fechados — E-e-eu também sou gente! E-e-eu... eu não mereço comer como um porco... N-n-não foi isso que me foi prometido! As crianças lá fora estão fazendo algo, e aquilo sim parece ser um trei...

— Me traga um copo d'água.

O menino ergueu o olhar quase em lágrimas. Ela não o olhava, ordenou secamente, não se importando com todo o discursinho sentimental... só o som das teclas se mantinha. O servo virou-se e foi até o distante bebedouro da sala. Pegou um copo de vidro ao lado, encheu de água e levou até Mirlim, que parou um momento de teclar e olhou-o ao receber o copo em suas mãos delicadas. Thales abriu um pouco mais os olhos, mesmo que Mirlim não tivesse dito mais nada.

O copo foi colocado sobre a mesa, e Mirlim voltou a teclar.

— De-desculpa... — após o gaguejo assustado, olhou para suas mãos levemente trêmulas e entendeu. Nunca foi pelas pizzas, e, voltando no tempo, se vendo socando as rochas... "Nunca foi... pela esmeralda?" Não ousou perguntar, mas a dúvida era gritante.

Do nada, Mirlim abriu uma gaveta da mesa e puxou uma fita métrica ao se levantar. Foi até o rapaz e segurou o braço, puxou-o com tamanha força para baixo que Thales pensou que seria arrancado. Forçado a se curvar ainda em pé, Mirlim mediu para ver se houve mudanças.

"Mesma coisa. A carne só está dura igual metal... ótimo." Soltou-o, colocou a fita na mesa e foi andando até a porta. — Me siga. — Passou e Thales acelerou o passo para seguir.

Caminhou acompanhando-a, e o destino foi exatamente o campo, onde diversas crianças estavam treinando com seus professores. Mirlim jogou a mão preguiçosamente para o lado, e Thales entendeu aquilo como uma ordem para parar.

Viu sua treinadora ir até os professores e logo viu todos juntando seus alunos para liberarem o campo. Mirlim caminhou até o escanteio da ponta inferior direita e lançou sua mão como se o chamasse. Thales obedeceu e foi.

— Sua inutilidade é notória, mas ao menos imagino que não seja cego para não ver essa linha que está pisando.

Thales olhou para baixo e saiu de cima dela.

— Desc...

— Não mandei sair.

Voltou para ela e ficou ereto, olhando a treinadora, com atenção para não ser chamado a atenção novamente.

— O campo é um retângulo. Corra exatamente na linha, dando voltas nele. Entendeu?

— S...

— Corra — cortou-o, e Thales disparou, correndo para a direita...

BAM!-PAHCRASH!

Não por muito tempo, pois Mirlim lhe acertou um chute, fazendo-o voar até as cadeiras da plateia. O impacto destruiu várias, mas não importava. Dinheiro não faltava para mandar consertar.

Olhando-o caído, gemendo levemente de dor pelo golpe, Mirlim se mantinha de pé, com sua expressão de soberba, raiva e nojo.

— Levante e seja mais rápido — rosnou e saiu andando de volta ao escanteio.

Thales arfava; o chute no meio das costas deixou-o sem ar por um momento.

"Que isso... de onde vem tanta força...?" Ergueu-se com dificuldade e voltou até ela.

— Corra.

BAAM!

— Airr...!

Mal deu um passo e caiu no chão regaçado.

— Levante e seja mais rápido, estrume. Não me faça espancá-lo até ficar branco. Não gosto de escravo que precisa ser educado. Sua desobediência já está passando dos limites. Levante e corra mais rápido — rosnou e voltou à posição.

Thales se levantou com dificuldade; sua coluna parecia ter saído do lugar. Voltou à posição, esperava a ordem, mas veio com muito atraso de segundos. Ansioso, dava pequenos movimentos como se previsse a liberação, mas Mirlim não dizia nada.

Thales ousou olhá-la. O olhar dela era desdenhoso demais.

"O que esses olhos veem em mim...? Se sou um inútil, por que est..."

— Corra.

Thales disparou... já de olhos fechados, esperando o impacto... que não veio. Abriu-os e continuou correndo. Um sorriso se abriu, um olhar brilhando.

"Consegui! Não errei de novo!"

Cortou o campo correndo bastante. Foram menos de 10 segundos, e já via Mirlim no final da reta... mas o olhar... parecia pior que o anterior. Thales acelerou para chegar o quanto antes... mas a mulher sumiu.

BAAM!

BLEAARRGH!

Um soco afundou sua barriga. Sua velocidade foi a zero instantaneamente. Sobre o punho direito de Mirlim, seu corpo continuava erguido. Enquanto vomitava o que comeu na noite passada, Mirlim o erguia como se não fosse nada, olhando-o como se fosse menos do que o próprio nada.

— Pensei que tivesse sido bem clara. Mas... mais uma vez o meu escravo incompetente não obedeceu minhas ordens. Minha vontade é de matá-lo. Um ser tão fraco... lento... nojento... inútil como você... não merece viver. Não sei o que dá em mim... Deveria me agradecer ajoelhado, beijando meus pés por ainda mantê-lo vivo, seu estrume.

A falta de ar era intensa, o vômito queimava sua boca e garganta... mas as palavras rosnadas, cadenciadas em um tom arrastado, doíam quase como o soco.

— Mas nem isso merece. Não merece nem mesmo tocar meus pés com essa boca fedorenta.

Arf-fr-d-desculpa... — lutava para respirar e conseguir se desculpar. Não conseguia pensar ou fazer nada além de usar toda a energia para isso.

— Vou dar mais uma chance. Corra o mais rápido que conseguir, caso contrário, terei que educá-lo. Imagino que não queira ser educado. Juro por Deus, eu não quero fazer isso... mas você não me dá escolha. Você não obedece. Você que me faz ser obrigada a fazer isso. Você entende, meu pequeno escravo de merda?

— S-s-sim... Srta. Mi-Mirlim...

Pahf!

Soltou-o e caminhou tranquilamente de volta à posição. Thales caiu ainda procurando por ar, mas se ergueu com o braço esquerdo na barriga e se dirigiu, sem nem pensar, para a sua posição.

A-f-frf...

— Corra.

Disparou... Mirlim, mais uma vez, o deixou correr. Thales contornou todo o campo mais rápido que antes. Forçava as pernas como um louco, corria como nunca e sentia que estava mais rápido, que supriria o pedido... Chegava na posição de início e virou... passou por Mirlim, os olhos se arregalaram.

"Eu conc...!"

CRECK!

Foi muito rápido; de uma palavra a outra em sua mente, seu corpo estava de cabeça para baixo, com algo segurando sua perna direita, antes de só escutar um forte estalo, com uma dor aguda subindo sem pena alguma.

— AARRRGH! AIII-AIRR... Ai...! — Mesmo com a dor, tentou fazer silêncio, tentou chorar baixo.

Seu corpo estirado no chão, Mirlim o olhando de cima.

— Levante e seja mais rápido.

CREC!

Segurou e forçou a perna a voltar para o lugar. A dor na carne se mantinha, o roxo instantâneo também. Thales cerrou os dentes, tentando ignorar tudo e obedecer, levantando-se o mais rápido que podia, mas não conseguia... Mirlim não deixava.

BAM! SRRRCRCH!

Nem ameaçou se erguer direito e recebeu um chute, que o arrastou por metros no campo. Ignorou a dor e tentou novamente. BAAAMRRRRCH! Ignorou. BAAAM! Ignorou. BAAAM! Era impossível ignorar. O corpo todo doía, mas mesmo assim continuava tentando e tentando e tentando se levantar... até que conseguiu.

"Hã!?!" Lançou um olhar na direção do golpe passado, Mirlim estava parada na posição inicial, no escanteio... observando-o. "Eu consigo!" Correu feito um lunático, dando a vida na sua performance... e chegou na mulher novamente... Prrrccchh! Que esticou a perna, fazendo-o cair, retirando um pouco da grama com a cara.

— Levante e seja mais rápido — rosnou do escanteio. Não chegou perto ou o educou de forma mais severa. Thales se ergueu e saiu correndo daquele ponto mesmo. Não foi atacado.

"Tá! É só correr!" Completou o percurso, chegava a hora de passar por ela. "Não vou cair!" Desafiou-a em sua mente, chegou na virada, pisou no chão com a estabilidade de um guepardo... conseguiu.

Mirlim lançou o pé e Thales conseguiu saltá-lo... A mulher o olhou continuar o percurso, e pouquíssimo tempo depois, ele chegou novamente a ela. O rosto confiante, a curva perfeita, com um pulinho mais elevado... Não adiantou.

Pahrrrrcchh!

Caiu de cara e saiu arrancando grama.

— Levante e seja mais rápido.

"Eu já sei..." resmungou em sua cabeça e voltou a correr.

"Levante e seja mais rápido. Levante e seja mais rápido. Levante e seja mais rápido." Intensas horas se passaram. Aquela frase havia sido gravada na cabeça do menino que não conseguia descansar. Todas as vezes que passava por ela, caía de cara no chão por não conseguir ser mais rápido.

Já era noite, e nada de uma pausa. Nada de comida, água. Só correr e correr, cair e cair.

Pahrrrrrchh!

— Levante e seja mais rápido.

— Sim... Srta. Mirlim — murmurou, ergueu-se e voltou a correr.

A madrugada veio, a manhã trocou de lugar, a tarde roubou cena e a noite chamou a iluminação dos postes do campo para brilhar nas mais de 35 horas em que Thales corria com seu pé já inchado como uma bola, pronto para explodir em sangue.

Pahrrrrrrrchh!

— Levante e seja mais rápido.

Suado como um porco, morto de cansado, ergue-se novamente e saiu correndo buscando correr mais rápido que a volta passada... que já havia chegado no marco de exatos 1,97 segundos.

Pahrrrrrrrchh!

— Levante e seja mais rápido.

"Eu seeii... pelo amor de Deus... eu já seeei!" resmungou quase se afundando em lágrimas de angústia, com uma mistura ainda mais amarga de fome, alucinações, cansaço e dor.

Uma semana se passou. Mirlim continuava parada, fazendo a mesma coisa, obrigando-o a correr, cair e levantar, milhares e milhares de vezes. "Levante e seja mais rápido." Suas voltas eram muito rápidas, rápidas a ponto da frase nem ter pausa direito. Levantava, passava todo o percurso extremamente rápido e já escutava mais uma vez.

Mais uma semana se passou. Desde que começou a correr na manhã de um fatídico dia, ficou 15 dias inteiros fazendo isso. Passou por Mirlim mais uma vez, e já esperava cair igual merda... mas não foi isso que aconteceu. Mirlim segurou seu braço, fazendo o jovem ir a zero instantaneamente, as pernas voando paradas para a direita. Os olhos esperançosos fixados na mulher o olhando com preguiça.

Pah...

Nem tudo foi flores, foi solto e caiu. Mirlim saiu andando.

— Me siga.

Rrrrooonm...

O estômago finalmente teve tempo para pedir comida. Thales se ergueu e empurrou o estômago com a mão esquerda.

"Não se anime... talvez vamos ter que esperar mais tempo..." comentou... quase chorando.

Seguiu-a até a sala.

TRARARARAARARAARAR!

Um som familiar conseguia escapar de dentro da porta fechada.

"Já escutei isso?" se questionou, mas nada veio à mente.

Mirlim chegou à porta e a abriu. Assim que Thales entrou, viu Mirlim andar até Mirlim dormindo na cadeira, babando o teclado inteiro com sua baba doce do pirulito. O menino não entendeu nada. Ficou espantado, um semblante mais que curioso. As olheiras, o cansaço nem pareciam existir ali.

— Q-q-q-uê? — gaguejou, vendo Mirlim desligar o despertador de Mirlim e tocá-la no ombro direito. Mirlim abriu uma fresta entre as pálpebras, um olhar severo, aterrorizante, quase acompanhava um: Quem ousa me acordar?

Mas, ao ver Mirlim, Mirlim apenas ergueu o corpo, e a Mirlim que ficou com Thales... começou a se desfazer... até se tornar um pequeno chip, que caiu nas mãos de Mirlim, que logo plugou no computador e viu sua IA, simplesmente a IA mais poderosa e inteligente do mundo, além de única e exclusivamente dela, a criadora, resumir em instantes todo o treinamento de Thales, toda a evolução na velocidade.

"0,56 segundos? Tá de brincadeira que ficou esse tempo todo lá e só conseguiu isso...?" Olhou para Thales, que tremeu na base... não só de fome. "Apesar que não comeu ou bebeu nada. Talvez é um pouco mais rápido que isso." Desviou os olhos de volta ao monitor e começou a teclar.

Mesmo com medo de punição, sua curiosidade era imensa, queria entender o que era aquilo.

— Srta. Mirlim...?

Trerrerrrererrerleclec!

Gulp... Éé... aquilo... a... a outra você era magia? — fechou os olhos ao perguntar. O silêncio reinou, já era o esperado. Abriu os olhos, e o inesperado aconteceu.

— Não... Isso é nanotecnologia... A mesma coisa que uso no seu quarto para gerar as estruturas de sustentação e iluminação — respondeu com preguiça. Com pausas um pouco mais demoradas que o convencional.

— Na... nanotecnologia é o quê? Não entendi.

Mirlim desviou o olhar, olhando-o no fundo dos olhos.

— Desculpa — respondeu ele, imediatamente.

Mirlim desviou o olhar ao PC, antes de murmurar a resposta:

— Nanotecnologia é o ramo da ciência e da engenharia que estuda, manipula e aplica materiais e estruturas em uma escala extremamente pequena... na escala nanométrica, sendo direta. Ou seja, na ordem de nanômetros, onde 1 nm é igual a 1 bilionésimo de metro.

Thales não entendeu uma palavra sequer.

— Em resumo... Só eu possuo essa tecnologia. — Um tom soberbo reverberava de sua voz, seu olhar intensificava isso. — Mas já a evoluí. O que eu uso eu chamo de Nanotecnologia Autônoma de Replicação Adaptativa. Coleta átomos do ambiente, principalmente carbono atmosférico, e reorganiza em estruturas programadas... ao meu comando.

O jovem esqueceu até a fome. Nem conseguia distinguir se aquilo era português ou outra língua.

— O ar tá cheio de coisa útil. Oxigênio, nitrogênio, vapor d'água, CO₂... Dá pra montar muita coisa com isso. Tecidos, fibras, até circuitos básicos... e avançados. Aquilo que ficou com você esses dias era um clone. Corpóreo, funcional, descartável. Nada que você não consiga montar com carbono suficiente e uma IA decente.

— Você... montou uma pessoa com ar?! — comentou, perplexo.

Mirlim lançou um olhar diferente de todos os agressivos e desdenhosos de sempre. Era vaidosa, gostava quando alguém notava a tamanha inteligência que a mulher possuía.

— Mais ou menos. Eu só reestruturei matéria disponível no ar e criei um escravo descartável para não precisar perder meu tempo nem meu sono com um escravo burro como você por lá.

Os olhos do jovem continuavam animados, mesmo sendo xingado. Era tudo novo, entendia absolutamente nada, mas era legal, era legal ela o respondendo:

— O seu outro escravo voltou a ser ar?!

Mirlim piscou, pausou os dedos, olhava-o. Mas voltou a atenção para o PC e os dedos a trabalhar.

— Não voltou a ser exatamente... "ar". Em toda essa sala, existem nanomáquinas com capacidade de montagem a nível atômico, flutuando e produzindo milhares e milhares de nanorrobôs. Estruturas compostas de carbono cristalino, polímeros orgânicos e biomassa sintetizada a partir de microextração ambiental. Quando a "tarefa" se encerra, que eu também chamo de "operação", uma ordem dada a um conjunto de nanorrobôs com uma operação importante, tal essa passada, as ligações moleculares entram em estado metaestável, e a estrutura colapsa. Os átomos retornam ao ambiente em estado disperso. Em resumo, não voltam a ser... "ar". Voltam a ser meus nanorrobôs, espalhados pelo ar, esperando uma ordem.

Thales piscou incontáveis vezes... sua dor de cabeça, devido à fome, dava a impressão de que explodiria seu crânio, ao juntar com a viagem que estava tendo nos filmes de ficção científica que já viu passar de tarde na televisão, em um domingo qualquer.

— Então... estão espalhados pelo ar!? Sã-são invisíveis?! Tem como eu ver?! — perguntou, muito animado. Mirlim não o olhava mais, porém a animação alimentava seu ego, e então continuava respondendo.

Nanorrobôs se juntaram em um espaço vazio à mesa, criando um óculos mais robusto. Thales viu aquilo animadíssimo, e Mirlim logo seguiu dizendo:

— Não são invisíveis, só subdimensionados. Atuam abaixo da faixa visível do espectro óptico. Esse visor usa detecção térmica vetorial e mapeamento espectral. Funciona como o sistema sensorial de uma serpente, mas com filtro de ruído atmosférico. Pode pegá-lo e olhar em volta.

Thales não entendeu nada, mas, com um sorrisão, segurou o dispositivo e olhou em volta... com o óculos na mão e o rosto bobo para todos os lados.

— Coloca isso na cara, jumento.

— Ah! Desculpa, Srta. Mirlim!

Mirlim o olhou por um momento, vendo-o pirar de boca aberta, olhando em volta. Seu olhar a ele era estranho, não mostrava sua severidade, muito menos tudo que já demonstrou ao mesmo. Thales virou o rosto na direção dela, mas antes, a mulher voltou a olhar para o computador com um semblante de puro desdém.

— Eu tô vendo! São pequenininhos! Parecem mosquitos, mas, mas, vermelhos! E... mesmo pequenos, parecem grandes... sei lá.

Uhum.

Thales voltou a olhá-los, e foi quando notou um... materializar uma mão mostrando o dedo do meio em nível atômico. Logo, criou uma boca, fechou a mão e simulou um boquete, com o membro empurrando a bochecha no formato da cabecinha.

Thales colocou as mãos no óculos e o removeu, deixando mais que visível seu rosto estranho, franzindo as sobrancelhas, não entendendo menos do que o mais absoluto nada. Achou divertido, era uma dádiva, só não sabia. Saber demais às vezes era torturante para Mirlim... mesmo que fosse rara essa sensação.

O menino se virou e colocou com o maior cuidado possível o dispositivo na mesa, mas, antes de tocá-la, os nanorrobôs se separaram, sumindo com os estilosos óculos robustos.

— Obrigado!

Trerrerrrererrerleclec!

Voltou ao padrão. O silêncio torturante e o ambiente sendo alimentado só com os sons das teclas.

— Srta. Mirlim... Você disse de uma tal operação para os robozinhos... Qual foi a operação passada?

Uma pergunta tão imbecil como essa foi inflamada pela fome da manhã que a mulher sentia.

— Saber se você não passa de um inútil me olhando com essa cara de bunda. Desapareça. Volte ao seu quarto e vá tratar as bolhas em suas pernas e esse inchaço nojento nesses seus pés horrorosos. Permissão para dormir. Amanhã vou buscar você. Entendeu?

— Sim, Srta. Mirlim, desculpa.

Jogou o rosto para baixo, as palavras voltando a doer depois do encanto passado.

— Já mandei desaparecer — rosnou, uma bela onça faminta.

— Desculpa — murmurou baixinho antes de sair de cabeça baixa e com passos ágeis.

Fechou a porta com cuidado para não causar barulho algum, e quando fechou, ouviu passos no corredor, olhou e viu Bill e Will vindo com dois carrinhos meio mesas, lotadas de comida para alimentar a fera recém-despertada.

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora